Andrade. “Perdi o meu lugar no Benfica à conta da expulsão no dérbi”


Parque de jogos do Tenente Valdez. Andrade, coordenador da formação do clube, assiste a uma conversa entre o presidente e a mãe de um miúdo que quer desistir do futebol. Pelos vistos o pai pressiona-o para ser melhor, irrita-se com ele. Episódios destes são o dia-a-dia do homem que fez a vida negra a Del…


Parque de jogos do Tenente Valdez. Andrade, coordenador da formação do clube, assiste a uma conversa entre o presidente e a mãe de um miúdo que quer desistir do futebol. Pelos vistos o pai pressiona-o para ser melhor, irrita-se com ele. Episódios destes são o dia-a-dia do homem que fez a vida negra a Del Piero, João Vieira Pinto e Deco. Agora já não morde os calcanhares a ninguém nem paga pela fama de caceteiro, como aconteceu no Benfica-Sporting de há dez anos.

Costuma haver problemas destes aqui?
O problema não é dos miúdos, é dos pais. Metem-lhes coisas na cabeça: “Como é possível não seres convocado? Aquele treinador não presta!” Os pais pensam que vão ter Cristianos Ronaldos. Isto é acima de tudo um divertimento para as crianças depois da escola, para se livrarem do stresse. Agora Cristianos Ronaldos? Hoje em dia nem o Sporting consegue, quanto mais o Tenente Valdez…


Quando começou a jogar o Ronaldo ainda nem era nascido.
Foi no Domingos Sávio. Jogava sábado pelos infantis e domingo pelos iniciados. Destacava-me um pouco, mas também porque havia poucos jogadores. Era convocado e mesmo assim faltava gente para fazer os 16. O meu irmão jogava nos juvenis, era um bom jogador. Nós recebemos o Sporting, lembro-me perfeitamente, e eles gostaram de mim. Deram bolas e camisolas ao Domingos Sávio para me levar.


Lembra-se de quantas foram?
Epá, isso não, eheh. Sei que foi material, mas não me lembro da quantidade.


Quem começou por encontrar no Sporting?
Ora, os meus treinadores foram o César Nascimento e o falecido Osvaldo Silva.


E jogadores?
Epá, na altura em que fui para lá acho que já estava o Figo. E o Peixe também. No meu ano foram o Porfírio, o Poejo, o Nuno Valente. Depois seguimos todos juntos até aos juniores.


Esteve com alguns deles no descalabro do Mundial de sub-20, em 1993? O que aconteceu?
Ehhh, são coisas… olha, foi falta de humildade! Como Portugal tinha sido campeão nos dois últimos mundiais, fomos lá cheios de peito. O que aconteceu? Ficámos em último. O pensamento era: “Os outros foram campeões, oh!, nós também vamos ser.” Toda a gente queria ganhar-nos. O primeiro jogo foi contra a Alemanha, a quem ganhámos antes do Mundial.


E com quem perdem no último minuto, golo de Carsten Jancker.
Foi. A bola bateu-me na cara! É verdade, há um cruzamento, eu tento que a bola passe por cima de mim para ir buscá-la do outro lado. Quando me viro a bola bate-me na cara e fica nos pés dele. Golo. Nunca mais joguei, o Agostinho [Oliveira] queimou-me logo. Depois, olha, estive a passar férias na Austrália. Ainda tenho fotos dos cangurus e dos coalas. Foi a primeira vez que vi aquilo na vida. E também foi a primeira vez que vi um telemóvel!


O Euro de sub-21 correu melhor. Como foi aquele jogo com o Del Piero [Portugal vence a Itália por 1-0 na primeira mão dos quartos-de-final, depois perde 2-0]?
Esse foi o que ficou na memória de muitos portugueses, pela marcação que fiz ao Del Piero. Calhou ser assim. Estava a jogar a defesa direito e o Del Piero caiu naquela zona. Comecei a encaixar bem nele. Na segunda parte ele passou para o outro lado e fui atrás dele. Ele não fez nada porque eu estava muito concentrado e é como se diz: há que desconcentrar os outros, picá–los.


Era o que fazia ao João Vieira Pinto no Estoril, no Estrela e no Belenenses?
Os jogos com o João eram sempre grandes confrontos. Para já porque ele era um grande jogador. Uma distracção e pronto, era o suficiente para ele resolver. Mas as minhas marcações começaram a resultar. Nas camadas jovens nunca fazia marcação, jogava sempre a líbero. Depois, com o Fernando Santos, nos seniores do Estoril, é que passei a fazer isso. Até começaram a tratar-me por Carraça. E assim subi no futebol. Hoje posso dizer que tive uma carreira que muitos gostariam de ter tido. Passei por muitos clubes, joguei em 13! Só isso quer dizer muita coisa.


O Benfica foi o maior dos 13. Acha que chegou lá por esses jogos com o JVP?
Isso já não sei. O Benfica não é como os clubes mais pequenos. Não precisa de nenhum jogador para fazer marcação directa, os outros clubes é que têm de lhe fazer isso. Por acaso acho que só fiz um jogo assim, só de marcação.


Ao Deco?
Sim, ao Deco, num Benfica-Porto. Esse jogo até ficou 0-0. O Deco estava num pico muito alto da carreira, era a máquina do Porto. Opá, e pronto, consegui anulá-lo dentro da minha maneira de jogar, dos meus limites, que toda a gente sabia quais eram. O meu objectivo era ganhar e enquanto não ganhasse não descansava.


Era isso que faltava a alguns jogadores nesses anos difíceis do Benfica?
Foi uma fase complicada. O meu primeiro ano foi difícil, não para mim, mas para o clube. Eu estava nas sete quintas, quem está no Benfica está sempre bem. Ainda está para aparecer um jogador que diga que no Benfica está mal.


E como era Graeme Souness? Cá não deixou grandes saudades.
Foi uma excelente pessoa, adorei trabalhar com ele. Hoje também vou buscar um pouco dessa mentalidade para os treinos dos meus atletas: muita bola, treino físico mas com bola. Todos os atletas gostam de trabalhar é com bola. Correr sem bola é muito complicado.


Se os métodos e a filosofia eram bons, então o que falhou?
Não sei… por vezes o próprio grupo pode não funcionar bem. E depois começou a ser a imprensa a dizer que era só grupinhos: dos ingleses, dos portugueses, dos brasileiros…


Não era assim?
Não. Tínhamos todos uma boa amizade. Quando acabava o treino cada um ia para a sua casa, mas nunca houve conflitos. Joguei em clubes mais pequenos e onde era muito pior. Mas o que vende nos jornais são os grandes, há que puxar pela atenção dos leitores e dos adeptos.


A goleada em Vigo, com o Celta, também chamou muito a atenção.
Tive vergonha naquela altura. Sentimo-nos humilhados. Às vezes vejo os recortes, não tenho vergonha de os guardar. Os bons e os maus momentos são sempre recordações. E mal o jogo acabou a minha vontade foi puxar a camisola e pô-la em cima da cabeça, sem pensar que à minha volta iam estar uns 50 fotógrafos. E o que apareceu nas primeiras páginas? Não a minha cara, mas a camisola por cima da minha cabeça, como se estivesse a esconder-me. Não me escondi, porque temos de assumir os nossos erros. Mas foi aquele momento, de nervosismo. Foi uma semana muito complicada, porque vínhamos também de uma derrota nas Antas [2-0, Capucho e Jardel].


Nessa altura já era colega do João Pinto.
Era bem melhor! Ficávamos sempre da mesma equipa, eheh!


Assim ele já não sofria.
Nem ele nem eu! Apanhei grandes jogadores no Benfica. Adorei trabalhar com o Nuno, era um miúdo muito desinibido, esperto, parecia que adivinhava onde a bola ia cair. Mas não só. O Michel Preudhomme foi o jogador mais profissional que encontrei em toda a minha carreira. Fazia a diferença porque treinava para isso. É como o Ronaldo, que faz trabalho extra. O Michel naquela altura já era assim. Ficava no fim, ia antes. Foi fantástico, tive um enorme prazer em jogar com ele.


E que adversários lhe deu mais prazer defrontar?
Além do Del Piero, apanhei o Robbie Fowler, que também já se destacava no futebol inglês. Ah, e ainda cheguei a jogar contra o Romário, contra o Roberto Carlos.
Por falar em Brasil, também esteve nos Jogos Olímpicos de 1996 [Portugal perdeu o bronze para o escrete, 5-0].
Pois estive, foi um grande feito para nós.


Mas o Andrade é expulso no primeiro jogo, com a Tunísia. O que aconteceu?
Não me recordo bem. Sei que levei dois amarelos, acho que foram duas faltas. A vontade de ganhar por vezes traz dissabores, não é? Há excessos que não podemos ter. Mas olha, fomos a melhor equipa europeia, parece que não mas é um grande feito. Ficar no quarto lugar não é triste para ninguém.


Muita gente acha que o Andrade era expulso demasiadas vezes. Mas nunca viu mais de dois vermelhos numa época. A que se deve esta ideia?
Eheh, por vezes não é o que as pessoas vêem, é o que ouvem. É o passa a palavra. Tenho a noção de que não era muitas vezes expulso. Levava muitos amarelos, isso sim. Castigava muito os outros, mas também levava. E por vezes o adversário também ludibriava o árbitro. Cheguei a levar amarelos injustamente, que nem os árbitros souberam reconhecer. Um dos jogos onde fico mais marcado…


… é o Benfica-Sporting, certo?
Exacto, fica 2-2 [golos de Simão, Zahovic e dois de Jardel] e fui expulso injustamente! No lance do primeiro amarelo o Hugo Viana agrediu-me e eu é que levei cartão. O senhor Duarte Gomes lembrou-se de me dar amarelo. No segundo lance nem toquei no central deles, um assim meio mulato [Phil Babb]. Faço um carrinho, ele pica a bola e tenho a certeza que nem lhe toco! E o senhor Duarte Gomes, não sei o que lhe passou pela cabeça, deu-me o segundo amarelo. Fiquei queimado e perdi o meu lugar no Benfica. É tão difícil conquistar um lugar no onze do Benfica… Os atletas vivem muito disto, de ganhar o seu espaço nos clubes. Ganhei o meu e assim, num jogo, perdi-o.


Antes já tinha estado em Braga, onde jogava sempre.
Fiz uma época fantástica. Mas aconteceram outras coisas marcantes na minha vida, como o falecimento do Pedro Lavoura, num acidente de automóvel. Também joguei com o Fehér, era meu colega de quarto. Pronto, são coisas que também nos marcam. Regressei ao Benfica, perdi o lugar nesse jogo e fui para Espanha. Mas estive lá um ano, no Tenerife, e vim embora.


Não gostou?
Não encaixei bem lá, não tenho espírito de emigrante.


Mesmo assim teve mais experiências no estrangeiro: uns meses em Chipre e uma semana no Canadá.

No Paphos havia cinco gregos. Bem, no final dos jogos era cá uma guerra… E este apuramento do APOEL para os oitavos da Champions mexe muito com eles. Saí de Chipre em Dezembro, não aguentava mais. E só fui para lá porque a minha mulher foi comigo, senão não ia. Depois ainda fui ao Canadá, estive uma semana no Toronto. Mas, lá está, espírito de emigrante não é comigo. Ah, e também estive no Burnley, em Inglaterra. Mas não dava mesmo, sou muito ligado à família. Dessa vez fui sozinho, só com empresário. A força não é a mesma, a cabeça está mais cá do que lá.


Foi também pela falta de força que deixou de jogar no fim da época passada, depois de passar por Olivais e Moscavide, Odivelas e Loures?
Os domingos já cansavam muito, a vontade não era a mesma. Do que eu gostava mais era o ambiente, a adrenalina antes do jogo, o convívio, o aquecimento, o jogo. Treinar já não era comigo, mas jogar sim, disso eu gostava. E estou aqui no Tenente Valdez há dois anos, sou coordenador da formação e treino os iniciados. Vou dar treino agora, às sete e meia. Agora, em relação ao dérbi, espero que seja um bom jogo. Gostava que fosse um grande jogo e sem casos. Mas isso é mais complicado.


E que não haja ninguém mal expulso, não é?
Isso mesmo! E que não haja confusões no túnel.