Miklos Féher. Dez anos depois, o que mudou?


Guimarães, domingo à noite, 25 de Janeiro de 2004. O Benfica, orientado por José Antonio Camacho, está a ter dificuldades para chegar ao golo frente ao Vitória e o espanhol decide lançar Miklos Fehér a meia hora do fim, para o lugar de João Pereira. O nulo mantém-se teimoso no marcador até ao minuto 90,…


Guimarães, domingo à noite, 25 de Janeiro de 2004. O Benfica, orientado por José Antonio Camacho, está a ter dificuldades para chegar ao golo frente ao Vitória e o espanhol decide lançar Miklos Fehér a meia hora do fim, para o lugar de João Pereira. O nulo mantém-se teimoso no marcador até ao minuto 90, quando o húngaro assiste Fernando Aguiar para o golo. Era importante segurar os três pontos, por isso Fehér impede o adversário de fazer um lançamento lateral já nos descontos. Olegário Benquerença mostra-lhe o cartão amarelo mas o jogador pouco reage, exibindo um sorriso esforçado e passando a mão esquerda pelo cabelo duas vezes antes de se agachar e cair de costas desamparado, com os braços abertos.

A descrição é possível porque a realização da Sport TV estava a focar o futebolista nesse preciso momento. A partir daí, o mediatismo tomou conta do episódio. As imagens de Tiago a chorar ajoelhado no relvado ou de Camacho sem reacção no banco de suplentes correram mundo, enquanto as bancadas soltavam um tímido “Fehér! Fehér!”, que ganhou força quando uma das pessoas que prestava assistência pareceu dar indicações de que o jogador estava a reagir.

O mediatismo da morte de Fehér abalou o mundo do futebol, especialmente em Portugal. Dez anos depois, o i procurou saber de que forma a morte súbita está a ser tratada em Portugal e como reage o público em geral aos exemplos que vão aparecendo na comunicação social. “A seguir ao Fehér, a onda de primeiras consultas durou quase seis meses. Os jovens apareciam espontaneamente, ou acompanhados pelos pais, para ver se tinham algum problema ou corriam risco de morte súbita. Ultimamente, sempre que ocorre uma situação, o fenómeno repete-se, mas dura menos tempo”, garante-nos o professor Nuno Cardim, cardiologista do Hospital da Luz e director clínico da Corclínica. O médico de 52 anos está há cerca de um ano a organizar com Pedro Granate um congresso subordinado ao tema, que terá lugar no Hospital da Luz a 17 de Fevereiro.

O tratamento dos media nos casos de morte súbita no desporto faz com que se fale cada vez mais do tema e essa atenção generalizada ajuda a prevenir. “As pessoas estão muito mais alertadas para esta problemática”, começa por justificar, acrescentando depois que um caso como o de Fehér já não passará em branco com tanta facilidade actualmente: “Porque é um fenómeno recorrente e porque já há avanços nas técnicas de imagem e também na genética molecular. Há dez anos não havia técnicas de imagem tão desenvolvidas como hoje.”

A preocupação do cidadão comum também serve de auxílio. O exemplo de Fehér e a onda de consultas espontâneas ajudaram a detectar “vários” casos de risco, pelo que acaba por ter um efeito positivo. “Mas as pessoas querem logo tudo e isso não pode ser. Se uma pessoa tem um exame físico normal, uma auscultação normal e um electrocardiograma normal, não há justificação para andar a fazer ecocardiogramas especiais, nem ressonâncias magnéticas, nem estudos genéticos.”

A sequência de análise é sempre essa. Numa primeira instância, faz-se o historial clínico da pessoa, a auscultação e o electrocardiograma. Depois, caso haja suspeitas, parte-se para uma nova série de exames, que já incluem o ecocardiograma, as ressonâncias magnéticas cardíacas e as TAC cardíacas. “Um outro avanço dos últimos anos é o estudo genético”, aponta-nos o cardiologista. “Mas é importante desmistificá-lo. Neste momento não é um estudo de primeira linha, não serve para rastreio da população geral. Mas em casos em que há dúvidas pode ser muito útil”, continua. O problema, para já, passa por não haver um conhecimento completo do código genético: “Se o teste for negativo, não serve para excluir a possibilidade porque a doença pode estar num gene que ainda não foi descoberto e de que não se está à procura.”

Cada vez mais casos? As notícias dos exemplos de morte súbita fazem com que cresça a sensação de que são cada vez mais. Nuno Cardim não tem dados concretos, mas pensa que sejam mais. “Mas cresceu porquê? Porque há cada vez mais pessoas a fazer desporto. Por isso pode acontecer que o número de casos também acompanhe. Por outro lado, a nível profissional os treinos são cada vez mais exigentes e os jogadores são mais pressionados, pelo que se calhar também há uma maior tendência para o consumo de drogas que aumentem a performance física. E depois há ainda os casos de pessoas que começam a fazer desporto sem fazer uma avaliação cardiovascular prévia, que é necessária.”

Os desenvolvimentos científicos durante o decénio ajudaram a detectar mais casos mas continua a haver exemplos impossíveis de prever. “A morte súbita existe no desporto e vai existir sempre. Conseguimos diminuí-la até um nível muito baixo, mas há casos de doenças genéticas muito raras (canalopatias) que só mesmo quando se faz a autópsia branca, com exames especiais, são detectadas”, lembra Nuno Cardim. No desporto profissional, há ainda exemplos em que o “coração de atleta”, com espessamento das paredes do coração, pode ser confundido com as miocardiopatias hipertróficas. “Provavelmente foi o que aconteceu com Fehér”, especula.

O antigo avançado húngaro integra-se num clube onde também estão Pavão, Marc-Vivien Foé, Hugo Cunha, entre outros, e do qual Fabrice Muamba escapou por pouco, graças à actuação rápida dos responsáveis e à presença de um desfibrilhador, um aparelho que ainda só existe em 25% dos principais estádios portugueses, de acordo com a UEFA.

 

Professor Nuno Cardim, Cardiologista do Hospital da Luz e director clínico da Corclínica

“Devia haver desfibrilhadores em todos os estádios”

O caso de Fehér poderia ter sido detectado? As alterações do coração de atleta que resultam do esforço confundem-se muitas vezes com doenças cardíacas. O que o Fehér tinha era uma miocardiopatia hipertrófica, que nos EUA é a principal causa de morte súbita. Só que em algumas situações, no coração de atleta, é muito difícil distinguir da doença. Provavelmente foi o que aconteceu.

Qual deve ser a preocupação principal das equipas? Devem fazer um historial clínico, um exame objectivo, um electrocardiograma como primeira etapa. Depois, se houver suspeitas, parte-se para o ecocardiograma, a ressonância magnética e o estudo genético. Outro aspecto importante é que este processo deve ser liderado por especialistas em medicina desportiva ou cardiologistas que se distingam neste tipo de doenças. Existe uma nova geração de cardiologistas que se dedica especificamente a elas.

E a partir do momento em que acontece um episódio, qual é a margem de manobra? Poucos minutos. São dois ou três até o sistema nervoso ter lesões irreversíveis.Devia haver desfibrilhadores em todos os estádios, mas ainda não há. Podem ajudar a salvar a vida dos atletas que escapam ao crivo que nós tentamos que seja o mais apertado possível.