Ary dos Santos. Uma canção feita de gomos de saudade


Concerto em jeito de tertúlia, ou tertúlia em jeito de concerto, simbiose que seria do agrado do poeta que será “tudo o que disserem”, menos castrado no génio e na ousadia. Logo evoca-se um duo produtivo, a cargo de Fernando Tordo, que às 18h00 apresenta o espectáculo “Ary Rima com Lisboa”, no Jardim de Inverno…


Concerto em jeito de tertúlia, ou tertúlia em jeito de concerto, simbiose que seria do agrado do poeta que será “tudo o que disserem”, menos castrado no génio e na ousadia. Logo evoca-se um duo produtivo, a cargo de Fernando Tordo, que às 18h00 apresenta o espectáculo “Ary Rima com Lisboa”, no Jardim de Inverno do Teatro S. Luiz. Para a história ficam as parcerias com o intérprete de “Tourada”, e muitos outros hinos transgressores que pisaram o palco do Festival da Canção. Uma canção que hoje se escreve com saudade do poeta irreverente, nascido em Lisboa em 1936, e desaparecido a 18 de Janeiro de 1984, há precisamente 30 anos. Aos 16 revelou a veia poética ao integrar a Antologia do Prémio Almeida Garrett. Saiu de casa e ganhou a vida a vender máquinas para pastilhas elásticas e como criativo em publicidade, poucos anos depois de aderir ao Partido Comunista Português, ao qual deixaria o seu espólio. Em 2003, Alberto Bemfeita, colega na agência Espiral, lançou uma fotobiografia do amigo “Zé”, pretexto para uma conversa em tempo de data redonda.

Quando conheceu Ary?
Antes da Espiral já nos conhecíamos de vista, encontrávamo-nos em qualquer lado. Mas foi na Espiral que trabalhámos juntos na publicidade e onde nos tornámos amigos. Foi em 72. Ia a casa dele, frequentávamos as mesmas coisas. O que é interessante nisto é que eu e o Zé nos tornámos amigos e passados anos ele faleceu. Fiz a sua biografia para os 20 anos da morte. Senti que não havia ninguém que falasse no Zé Carlos.

Ainda hoje há pouco compilado.
Sim, segundo o que me dizem é difícil realmente. Na fotobiografia tinha um grande espólio e muitas conversas com ele e com colegas. Foi tão preenchida… Tinha uma grande admiração por ele. Foi uma pessoa que a todos nós deixou uma grande saudade. Não era fácil lidar com ele.

Tinha um feitio particular?
Tinha um feitio muito particular. Aquilo era uma coisa terrível, mas também não podíamos viver sem ele. Esperávamos por ele de manhã para começarmos a trabalhar. Era um poço de talento. Na publicidade fez coisas lindíssimas. Trabalhei em contas com ele, como a da Knorr. Era fácil trabalhar com ele, mas ele era também muito exigente. Tínhamos todos um à-vontade… Era um homem que devia ser estudado nas escolas, em casa. Era um poeta extraordinário e muito criativo. Não era só o peso dele. Quando dizia que era gordo… “eu sou imenso, não sou gordo”.

Peso que não se ficava pelos quilos.
Não, era realmente imenso. Trabalhar com ele foi para todos nós um grande prazer e uma grande lição de vida, de saber e de amizade. Era um amigo, e não queria que fosse meu inimigo, porque era um problema.

Os inimigos não tinham vida fácil?
Não era um homem mau, mas tinha repentes muito grandes, e como era muito inteligente era capaz de desfazer uma pessoa com as palavras. Tenho muitas saudades do Zé. Quando há qualquer coisa lembro-me sempre do José Carlos Ary dos Santos. Dou-me também com muita gente que trabalhou na música com ele, como o Nuno Nazareth Fernandes. Falamos muito dele. “Olha, o Zé fazia assim, o Zé fazia assado.”

Tocava numa série de áreas.
Sim, e tinha coisas de génio. Era uma pessoa à parte. Ensinou-nos muitas coisas.

Como era o Ary publicitário?
Ele era director e criativo. Eu sou mais da parte visual, designer. Fiz grupo com ele em diversas campanhas e para diversos clientes. Quando se começa a trabalhar com uma pessoa como o Ary temos medo.

Da ousadia?
Era a ousadia. Depois há a parte em que nos põe à vontade. Estamos escudados, entre aspas, por ele. Se fizermos alguma coisa ele acrescenta. A nós, publicitários, costumam chamar-nos exagerados, porque fazemos coisas que parecem não ter nexo nenhum, mas no fim de contas, se pensávamos que não podíamos fazer isto ou aquilo, ele dizia logo: “mas porquê?” Ainda fazia pior. Era um gozo trabalhar com aquele homem. Essas são as saudades que fomos sentindo, apesar de ter continuado, e continuo, na publicidade. Era um prazer esperar por ele de manhã, e por aquele barulho que fazia logo pelo corredor fora. Estávamos no prédio do Franjinhas, na Braancamp. Tomávamos o café na sala dele. Nas reuniões de criação era espectacular. Faz falta. Não havia os meios que há hoje e tínhamos trabalhos excepcionais.

Que campanhas recorda em especial?
“Minha lã, minha lã, meu amor” é o grande achado. Trabalhava muito bem as contas. Lembro-me de muita coisa. Na Knorr só utilizava as velhinhas e as criancinhas. Sabia o que o cliente tinha. Tinha uma visão. Escrevia muito, mas muito bem. Estou muitas vezes com o Nuno Nazareth Fernandes e lembramo-nos sempre dele.

Os clientes reagiam sempre bem à ousadia?
Muitas vezes dividíamos as coisas. Era preciso ter um bocado de cuidado porque havia clientes que eram muito conservadores. De qualquer forma, nas reuniões com os clientes, como tinha sempre a palavra, os clientes ficavam assim… “pronto, se o Ary diz, vamos lá andar para a frente”. Quando se foi embora foi uma pena. Depois a Espiral foi comprada pela Publicis francesa. O Zé e muitos de nós saímos, mas continuou como freelancer a fazer coisas para lá. Morreu muito cedo. Dizia sempre que tinha nascido um ano mais tarde, mas não, nasceu um ano antes. Aliás, está na biografia.

Como soube da notícia da morte?
Tinha estado em casa dele nesse dia. Começou a ficar doente. Tinha muito medo dos médicos, apesar de o pai ser médico. Não tomava comprimidos, não tomava nada. Como bebia bastante começámos a alertá-lo. Foi ao médico e estava realmente com uma cirrose. Ficou em casa e começámos a ir lá. Um dia fui visitá-lo. Estavam lá alguns amigos. Saí e vim para casa. Duas horas depois a televisão anunciou a morte dele. Foi assim que soube. Já não esperávamos outra coisa, não aguentava mais. Começou a emagrecer. Suponho que era uma morte anunciada, matou-se.

Era excessivo na escrita como na vida.
Fazia parte dele. Era um homem sem limites, como todos os cérebros. Vivia como escrevia. Exagerava nas coisas, como exagerou na bebida. Por outros motivos também, como o facto de viver sozinho. Estar sozinho, não ter ninguém.

Sentia-se esse peso?
Naquela casa onde morava só se apagava a luz às cinco horas da amanhã ou coisa assim. Iam lá os amigos, os companheiros. Quando há posses, tudo bem, mas às vezes os amigos não aparecem, quando não as há. As coisas são assim. Falo com grande nostalgia. O médico disse-lhe que não bebesse mas ele continuou.

O Ary escrevia poesia também na agência?
Vi-o a escrever. Como sabe, o Zé era do Partido Comunista e muitas vezes fazia poesia e o pagamento era para o partido, a que deixou tudo. Há uma coisa que escreveu na agência que foi “As Portas Que Abril Abriu”. Fez-se uma edição simples, outra de 1000 exemplares já com disco dentro. Assisti à escrita. Ele trabalhava com aquelas folhas de rascunho, aquele papel amarelo de sebenta. Depois lia para nós. Tinha-se dado o 25 de Abril e a publicidade caiu, não havia muito que fazer. Ele lia cada página que escrevia.

Ao melhor estilo de diseur ou aí de forma mais descontraída?
Dizia, pois. Era um diseur. Aqui saía-lhe tudo lá de dentro. Não se podia dizer nada porque era tudo realmente muito bom. Nós dizíamos-lhe que escrevesse um livro de poesia mas ele estava tão ligado à política que não chegou a fazê-lo.

Escrevia de impulso?
Ele era um tipo organizado nas suas coisas. Não é que não acreditasse nele, mas gostava muito de mostrar às pessoas e conhecer a sua opinião. Os amigos e colegas. Não era impossível dizer-lhe que não, sugerir isto ou aquilo numa campanha, mas na poesia era fabuloso, um génio.

Ele tinha essa noção?
Tinha, ele era muito vaidoso. Ele próprio dizia “isto é muita giro”. E era mesmo. Escreveu sobre Lisboa como ninguém, como canta o Carlos do Carmo, por exemplo, mas repare que ele não conhecia Lisboa porque não andava a pé. Andava de táxi. Para conhecer os cantos todos, tinha um sentido da sua Lisboa. Da casa dele via-se o panorama do Castelo, porque morava lá em cima, na Rua da Saudade. Escrevia sobre a cidade de uma maneira que eu próprio desconhecia. Era o instinto e o saber que tinha. Tenho lido poucas pessoas que escrevam assim.

Nesses serões noite dentro também se escrevia?
Era mais um convívio, mas nesta coisa de conviver também se está a tomar a notas. Mesmo que não seja nada de trabalho, estamos sempre a apanhar qualquer coisa. O Zé era assim. Nunca vi uma coisa com aquela. Com o Fernando Tordo, com quem fez grande parelha, o Fernando levava-lhe a música e ele escrevia sobre a música, que é uma coisa difícil. Outras vezes faziam um dueto. Um escrevia a música e o outro estava logo ali ao lado a fazer a letra. São coisas que ficam. Eram muitos. As pessoas iam aparecendo lá em casa. Batiam à porta, entravam e saíam. Foi uma altura na vida da publicidade e das letras muito rica. Havia também a senhora Natália Correia. Eles chocavam muito.

Duas almas muito fortes.

Era. Era um grupo muito bom. O Zé era um tipo truculento, muitas vezes era bom não falar com ele. Entrava sempre mais tarde, depois dessas sessões. Não dormia muito. Aparecia com aquele ar satisfeito dele, metia-se com as colegas no corredor, a dizer os seus palavrões. Palavrões que na boa dele não se sentiam, não eram obscenos. Toda a gente se ria. Éramos todos muito mais novos.

Como era o resto do dia dele?
Quando se punha a trabalhar era sempre a andar. Nós dizíamos que ele não fazia textos, as palavras saíam-lhe como xixi, como dizia o Fernando Tordo. Tinha uma facilidade muito grande. Fazia um texto para uma canção logo. Às vezes ligavam-lhe a pedir uma letra e ele respondia em dez, quinze minutos. Era o que era.

Alguém lhe disse que não gostou de alguma coisa?
Não, era difícil. Muitas vezes podia-se sugerir isto ou aquilo, mas mal era preciso. O Zé fazia, está feito, acabou. Era muito inteligente na palavra. Até nos espectáculos dele. Punha-se no palco e era sensacional. Despejava tudo quanto queria. Vi um no Coliseu, nos cantos livres. Ele era homossexual assumido e isto foi antes do 25 de Abril. As pessoas começaram aos gritos quando ele entrou em palco e ele começou logo a ler um poema, “Não me digam mais nada senão morro”, e calou as pessoas todas com aquele vozeirão. Quando acabou, o Coliseu levantou-se a aplaudir. Foi arrepiante. E isto com os cães todos da PIDE lá. Acabou o poema, coisa que outros não fizeram. “Poeta castrado, não”, por exemplo. Era isso que fazia do Ary aquilo que era. Senão não era o Ary.

Voltou à casa dele depois da sua morte?
Fui tirar fotos para a biografia há uns 18 anos. O espólio foi para o PC, que quis fazer ali um museu. Não sei como correu, mas a casa depois foi alugada por um arquitecto que tirou tudo. Ele tinha as paredes forradas de veludo. Depois foi alugada por um fotógrafo e a casa já estava totalmente diferente. É giro porque ele tinha um cadeirão na sala onde recebia um velhote que batia à porta. Ele manda-o entrar e ele sentava-se ali. Seria uma pessoa do bairro. Esse fotógrafo dizia que já depois de ele morrer esse senhor continuava a bater à porta. “Olhe, o senhor Ary dos Santos deixava-me descansar aqui um bocadinho.” Agora é uma estilista que lá mora. Quem batesse à porta, se estivesse para jantar, entrava e sentava-se à mesa com ele. Era um homem assim. Lá tinha o seu temperamento mas ninguém ficava à porta.