Em Abril de 1974, o mundo trauteava o Waterloo dos ABBA, respirava de alívio pelo fim da crise petrolífera e olhava com preocupação para o Vietname, onde as tropas norte-americanas se aproximavam do desastre.
Nada faria prever que saía de Lisboa a notícia que dominaria as manchetes durante as semanas seguintes. Ou quase nada. Dois dias antes da golpe do Movimento das Forças Armadas, na edição de 23 de Abril, o diário britânico “The Guardian” publica na íntegra um relatório secreto elaborado por oficiais do exército português que, em linha com o que já argumentara o general Spínola, alertavam para a impossibilidade de uma solução militar para os conflitos do Ultramar. Era mais um sintoma da indisfarçável insatisfação que dominava as fileiras lusas e que faria transbordar o copo na noite de quarta para quinta-feira.
No dia do golpe, os primeiros títulos da imprensa internacional a reagir aos acontecimentos foram os jornais vespertinos. Ainda sob muitas incertezas, em França, o “Le Monde” titulava à tarde que “entre as aclamações da multidão, um movimento das forças armadas toma o poder em Portugal” e noticiava ainda na primeira página que “um governo provisório deverá dirigir o país até à convocação de eleições livres”. Na Suíça, o “Tribune de Genève” era um dos jornais que indicava o tom para a análise repetida nos dias seguintes nos quatro cantos do mundo – que era a subestimada “fadiga da guerra” em África que derrubava Marcelo Caetano e era o então recém-publicado livro “Portugal e o Futuro” do general Spínola, com a defesa da impossibilidade de uma solução militar para o conflito nas colónias, que tinha inspirado os oficiais portugueses a agir.
O “controverso livro” era referido logo nas primeiras páginas do “The Guardian”, do “The Times” e do “Herald Tribune” de dia 26, com o “The Daily Telegraph” a dar conta da “chamada dos rebeldes ao herói de guerra Spínola” para liderar o país.
Estas e outras manchetes recolhidas pelo jornalista Joaquim Vieira e o historiador suíço Reto Monico foram incluídas em “Nas Bocas do Mundo – O 25 de Abril e o PREC na Imprensa Internacional”, um trabalho publicado em Março pela Tinta da China.
O livro permite estabelecer uma cronologia do carrossel das emoções da opinião pública mundial nos dias que se seguiram à revolução. Primeiro, a estupefacção: em Itália, o “Corriere della Sera” de 26 de Abril sintetizava surpresa perante a queda abrupta de um regime que, embora doente, contava 41 anos. “Cai a mais velha ditadura do Ocidente. Cai um regime arcaico, como os imperadores da Roma decadente, sob os golpes de soldados cansados de guerras desgastantes em terras longínquas”, lia-se no jornal transalpino. O “The Guardian” escrevia sobre os potenciais efeitos nas ditaduras espanhola e grega, prevendo que o golpe português se tornasse “num dos acontecimentos mais importantes e de maior impacto” após a II Guerra Mundial: “O potencial de mudança que emana a partir dos incertos acontecimentos de ontem em Lisboa é enorme”.
Nos dias seguintes, os jornais continuaram a escrever sobre o carácter inédito do golpe português. Liderado pelos militares, mas com uma intenção democratizante, alinhado à esquerda e com um forte apoio popular nas ruas, o 25 de Abril era um “putsch estranho” (“Le Figaro”, França), um “golpe de outro tipo” (“Kurier”, Áustria) e algo que “não tem igual nos anais da história” (“Le Courrier”, Suíça). Numa caricatura publicada no “Sunday Telegraph” de 28 de Abril, um esquerdista tipicamente antimilitarista confessava a um amigo: “Tenho sofrido graves distúrbios de personalidade desde que soube da existência de uma junta militar radical e defensora da liberdade”.
E da surpresa e da estranheza nascia o debate. Quem estaria verdadeiramente por trás do golpe, que sucesso teria o processo e para que direcção seguia Portugal? O assunto dominava os editoriais e as colunas de opinião em todo o mundo. Ainda a 26 de Abril, o “New York Times” pedia o benefício da dúvida para os “oficiais idealistas” portugueses. Em Inglaterra, o “Evening Standard” lembrava que “ao longo da história, os golpes militares encobriram sempre os seus objectivos na armadilha das “libertações””, recomendando precaução perante tamanha vaga de optimismo. O “Die Presse” austríaco questionava a viabilidade das reformas prometidas: “A democracia não pode ser comandada, pressupõe um processo de amadurecimento”. E o “Journal de Genève” punha em causa a existência de um “movimento popular” num país em que o povo, “após meio século em que se habituou a calar-se, perdeu – como é natural – um pouco da sua postura cívica”.
Diagnóstico pesado Não era de então a impopularidade do antigo regime na imprensa internacional, mas após a revolta, os jornais aprofundaram um retrato sombrio do Estado Novo. No “Journal de Genève” comparava-se a queda do poder com o colapso de uma “árvore seca, corroída pelo interior”. O regime tinha-se condenado a si mesmo por um imobilismo insustentável. “À força de querer manter a um nível muito baixo o metabolismo social de um povo, chega o momento em que o organismo se revolta”, lia-se no “Corriere della Sera”. E o “24 Heures” helvético responsabilizava a elite económica lusa pela parálise: “A couraça proteccionista estabelecida por Salazar (…) permitiu às grandes fortunas adormecerem tranquilamente praticando ainda hoje métodos de antes da guerra. (…) São elas que, agrupadas em torno do almirante Tomás, tudo fizeram para que o país não se mexesse, porque seria duro perder África, é certo, e seria ainda pior entrar em competição com os países industrializados”. Em Espanha, ainda sob o regime de Franco, o “La Vanguardia Española” apontava o dedo a Marcelo Caetano e à oportunidade “desperdiçada” da liberalização – “em vez disso, limitou-se à continuidade”. O ABC sintetizava: “Em política, o imobilismo equivale a suicídio”.
Mais tarde, na “New York Review of Books”, o historiador Kenneth Maxwell criticava Caetano, mas entendia que o seu fracasso resultara da rigidez de “instituições criadas para resistir tanto ao capitalismo quanto ao liberalismo”. “Arcaico, isolado e puritano, (…) o Portugal de Salazar foi firmemente lançado contra o século XX”, escrevia. Os custos do “ecofascismo” de Salazar, segundo Maxwell, foram “os mais altos níveis de analfabetismo, de mortalidade infantil e de doenças infecciosas da Europa Ocidental, e o mais baixo rendimento per capita“. É ainda premonitória a referência ao “europeísmo” da revolução, citando Spínola para defender que a guerra colonial comprometia “fatalmente” as possibilidades de “aproximar o nível de vida português dos padrões aceitáveis da Europa”. “Enquanto as outras nações da Europa tinham acabado com o colonialismo e construíam auto-estradas e supermercados, Portugal era um anacronismo incómodo”, lia-se no artigo compilado em “O 25 de Abril na Imprensa Estrangeira” (Publicações Dom Quixote, 1974).
África livre e o medo de Moscovo Era para o continente negro que a imprensa internacional olhava em primeiro lugar para as causas e consequências da revolução. “A única maneira de os soldados escaparem ao emaranhado africano foi derrubarem o governo em Lisboa. Deste modo, a luta dos guerrilheiros teve como efeito a libertação dos portugueses”, escrevia a “Economist” a 4 de Maio. Dias antes, o “Jornal do Brasil” temia que a situação nas colónias após o golpe em Lisboa permitisse o aparecimento de regimes racistas do tipo sul-africano. O receio era admitido por Mário Soares, que em entrevista ao italiano “Avanti”, a 30 de Abril, alertava para o risco da explosão de movimentos separatistas brancos em África “ao estilo argelino”. “Seria uma aventura terrível que poderia fazer nascer um Vietname africano”, advertia.
Em Espanha, o jornal falangista “Arriba” previa que “as internacionais capitalista e marxista” não facilitariam os planos spinolistas para a constituição de uma Commonwealth lusófona, apontando para nada menos que a independência total dos territórios ultramarinos. Era nesse sentido que o soviético “Pravda” veiculava as dúvidas e exigências do Kremlin: com que rapidez seria concedida a independência às colónias?
Entre um pólo e outro, a imprensa internacional convergia na incógnita africana. O “Financial Times” de dia 29 qualificava o 25 de Abril como uma “caixa de Pandora” de consequências imprevisíveis para aquele continente. Enquanto um editorial do “Chicago Tribune” previa alterações “dramáticas” que deixariam Angola, Moçambique e a Guiné “pior” do que em mãos portuguesas, o “The Guardian” do dia anterior antecipava um processo semelhante à perda de Goa para a Índia, com uma situação mais dolorosa e humilhante para a metrópole do que para as colónias.
Com as sucessivas crises políticas que marcariam os meses seguintes, a imprensa internacional mudaria o foco novamente para Lisboa, com o “ABC” a dizer em Outubro, com a demissão de Spínola, que era “pouco provável a instauração de um regime democrático” e acusava uma “oligarquia de esquerda” de “expropriar” o poder “em nome do povo”.
O receio da instauração de um regime pró-soviético em Lisboa dominaria nos meses seguintes o olhar da imprensa ocidental e produziria primeiras páginas memoráveis como a da “Time” de 11 de Agosto de 1975, em que Otelo, Vasco Gonçalves e Costa Gomes surgem entre a foice o martelo sobre o título “Ameaça Vermelha em Portugal”. Episódios de um folhetim que mantinha o país em destaque durante pelo menos mais um ano.