Em pleno centro histórico de Sintra oferecem-nos um folheto e cumprimentam–nos em inglês. Erro desculpável pela quantidade de turistas que percorrem as ruas de máquina fotográfica a postos. Caricatura que não se confunde com o átrio do Museu do Brinquedo, onde não se vislumbra sequer um curioso. Aberto, nesta morada – Rua Visconde Monserrate, 26 – desde 1997, o Museu do Brinquedo é fruto da colecção particular de João Arbués Moreira, que conta com cerca de 60 mil peças em exposição.
Infelizmente, a visita não arranca pelos melhores motivos. É que no final de Agosto o museu irá encerrar as suas portas, muito por culpa do corte dos 5 mil euros mensais que recebia da Câmara Municipal de Sintra, assim como pela quebra de visitantes. As escolas, que antes enchiam este lugar todas as manhãs, agora fazem–no esporadicamente, uma ou duas vezes por semana. Os turistas, por sua vez, “passam aqui, vão direitinhos para a Pena, comem uma queijada e voltam para o autocarro”, garante Ana Arbués Moreira, vice-presidente da Fundação Arbués Moreira e mulher de João, que é a porta-voz desde que o marido sofreu um AVC. “A única coisa que o meu marido quer é ter o museu aberto e mostrar a sua colecção. Não devemos nada a ninguém. Cheguei à conclusão que, por este conjunto de motivos, a partir de Agosto ia entrar em insolvência, coisa que não pode acontecer.” Não podemos culpar o universo de todos os males – nem mudar a ordem dos acontecimentos -, mas, para todos os efeitos, é seguro que esta é uma das últimas viagens pelo mundo das bonecas, dos soldadinhos e dos automóveis. Recuemos juntos à infância.
o homem contado pelo brinquedo Não há em João Arbués Moreira memória alguma em que esteja sem um brinquedo qualquer na mão. Coisa que se tornou fixação e que evoluiu com a carreira de engenheiro. “O meu marido foi estudar para Inglaterra, onde entrou em contacto com coleccionadores de todo o mundo. Todo o dinheiro que tinha era utilizado na aquisição de mais brinquedos. Andou pelo mundo todo a coleccionar enquanto trabalhava”, conta Ana. A certa altura a casa de João começou a ficar pequena para o tamanho da colecção. Recebia por vezes algumas pessoas que faziam questão de conhecer a sua panóplia de brinquedos. “Um dia apareceu um autocarro com 50 pessoas e ele disse: “Bem, já chega.”” Esse foi o primeiro passo para a criação do museu que agora conhecemos.
Subimos as escadas para o primeiro piso, onde damos de caras com um Batman à escala humana – ou um bocado maior – com ar de rufia mas que não nos faz mal. Uns quantos passos ao lado colocam-nos perante uma vitrina de PEZ, os famosos doces austríacos com uma cabeça de heróis infantis – por onde se retira a iguaria – e aqui cabem todos, do Super Mario ao Sapo Cocas, ao Speedy González e aos Flintstones. Do lado oposto encontramos o exemplo perfeito de como os quartos dos miúdos já não são o que eram: uma ponte alemã, da marca Marklin, datada de 1912, com um tamanho incrível e com diversos comboios em pleno tabuleiro.
Mais um lance de escadas, mais uma vez de boca aberta – e não é de sono. Ficamos petrificados quando chegamos à secção dos soldadinhos, uma das preferências de João Arbués Moreira, que, mesmo doente, tem a clarividência de nos apontar a miniatura de uma freira, entre o exército alemão, com a suástica nazi no braço. Prova de que conhece os cantos à casa que montou. Pouco depois fica a observar um dos seus objectos preferidos. Trata-se de um Ferrari F 500 de 1953, bastante raro, e que é conhecido por ser o modelo que o comendador Enzo Ferrari mandava fazer para oferecer aos amigos. Mas há mais. No mesmo corredor, Ana indica-nos uma fotografia de João sentado num carro de pedais em folha, cenário onde também se inclui, precisamente, um automóvel muito semelhante ao do retrato, feito pela empresa portuguesa SOARFIL – 1935.
Percorrer este museu é, de facto, um desembrulhar de memórias de tempos idos enquanto se regressa ao início da espécie humana.
“Talvez a característica mais interessante deste museu seja a pretensão de contar a história do homem através do brinquedo. Há museus temáticos, só de bonecas, por exemplo, mas este é generalista. Até costumo dizer às professoras que podem fazer uma aula de História engraçada aqui.” E por momentos Ana Arbués Moreira torna-se professora de uma história que viveu de perto. “Uma vez fomos visitados por uns polacos velhinhos e subitamente reparámos que estavam a chorar compulsivamente. Contaram-nos que tinham de pintar 60 soldadinhos nazis, como aqueles que estão expostos no museu, ou eram mandados para as câmaras de gás.”
O terceiro piso é conhecido como o Sótão das Bonecas, onde vive um sem- -número de bonecas alemãs e francesas, bem como todos os utensílios para uma casa do seu tamanho. Deixamo-las e voltamos à casa de partida no átrio. O vazio que se sente é remendado por uma criança brasileira que pula de felicidade. Esta memória já ninguém nos rouba. “Tudo isto são memórias, quando perdemos as memórias tudo se torna triste”, conclui Ana.