Dr. House. Saiba quem inspirou o médico mais louco do mundo


Lisa Sanders foi a inspiração clínica da série televisiva “House”, mas conta que as semelhanças com a personagem protagonizada por Hugh Laurie terminam por aí. É mais simpática com os doentes e não é viciada em analgésicos, brinca. A internista de Yale esteve em Portugal nos últimos dias para uma competição de raciocínio clínico que…


Lisa Sanders foi a inspiração clínica da série televisiva “House”, mas conta que as semelhanças com a personagem protagonizada por Hugh Laurie terminam por aí. É mais simpática com os doentes e não é viciada em analgésicos, brinca. A internista de Yale esteve em Portugal nos últimos dias para uma competição de raciocínio clínico que teve lugar no congresso de estudantes de Medicina iMed 6.0, organizado pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.

Como surgiu a coluna de diagnósticos no “The New York Times” em 2002, que acabaria por inspirar o Dr. House?

Antes de ir para Medicina trabalhei na CBS News e cobri assuntos de saúde. Pensava que percebia relativamente bem a área, mas quando fui para a faculdade vi que estava enganada. Só então percebi que fazer um diagnóstico era como resolver um mistério, quando até aí achava que tinha muito mais de aritmética. É um processo com muitas incertezas e variáveis. Quando percebi isto tornei-me um pouco obcecada com a transmissão desta ideia e um dia ouviram-me falar e convidaram-me para escrever.

Lembra-se de quando fez essa descoberta?

Estava no terceiro ano de Medicina. Todas as manhãs havia uma reunião no hospital em que era apresentado um caso difícil. A ideia era que tentássemos chegar ao diagnóstico e éramos nós, os estudantes e os internos, que ficávamos sentados à volta da mesa, com os médicos mais experientes a ver o nosso raciocínio.

Era a esperta do grupo?

[Risos.] Fui uma boa aluna mas no início ficamos desorientados. O primeiro caso que me fascinou e fez pensar nos médicos como detectives foi uma nefrose lúpica, uma lesão no rim que pode acontecer a doentes com lúpus. O sintoma mais evidente que a doente tinha eram pernas inchadas. Como daí se chegou a esse diagnóstico foi fascinante. Dei comigo a pensar que aquilo parecia uma história do Sherlock Holmes.

Ter popularizado a ideia de que na medicina também se resolvem casos é o legado que deixa enquanto médica?

Os profissionais de saúde já sabiam isso. Quem me parece que não tinha tanto esta ideia eram os doentes e, nesse aspecto, tornei o assunto mais popular. É uma questão sensível. Se alguém tem alguma coisa pouco comum, muito provavelmente o primeiro palpite do médico vai estar errado. Para os médicos isto é um pouco desconfortável. Os médicos, pelo menos nos locais que conheço, fingem muitas vezes estar mais seguros do que realmente estão.

E isso contribui para a ideia errada da medicina que tinha como jornalista?

Penso que hoje as coisas estão um pouco melhores, mas de facto os médicos terão prolongado essa ideia porque pensavam talvez que tranquilizavam mais os doentes. Ganhamos mais sendo honestos.

Os seus leitores no NYT sugerem diagnósticos para os casos que apresenta. Alguma vez a ajudaram?

Todos os casos que relato já estão resolvidos. Gostava de um dia poder publicar casos por resolver, mas ainda tenho de arranjar uma forma de o fazer e encontrar o caso adequado. Não interessa só ter respostas: para sabermos se o diagnóstico está certo, temos de fazer exames para o demonstrar ou experimentar tratamentos, portanto o doente tem de estar disponível e temos de acreditar que será útil.

Com que frequência tem estes casos mais desafiadores?

Pelo menos um por mês.

E como é que desta coluna surge o Dr. House?

Um dos produtores, Paul Attanasio, seguia a minha coluna religiosamente e juntou–se a outro produtor, David Shore, um fã de Sherlock Holmes. Os dois tentaram arranjar uma forma de passar aquela ideia para a televisão. Mais que o lado técnico e a terminologia dos casos que fui recolhendo, o processo de diagnóstico foi central na preparação da série. Uma das coisas curiosas relativas a Sherlock é que Arthur Conan Doyle era médico. Terá criado um detective porque naquela altura não havia exames e análises, por isso seria difícil ter provas. Mas a mente de Sherlock é a mente de um médico. A ideia brilhante do Shore foi trazer o Sherlock para Medicina nos dias de hoje, em que conseguimos ter respostas. Esse casamento resultou no House.

É a mente clínica por detrás de House, mas tem mais alguma parecença?

Não. Sou boa a lidar com as pessoas, sou simpática com os doentes e não tomo Vicodin [risos]. A grande inspiração em termos de carácter foi Sherlock. Há a teoria de que o Sherlock teria síndrome de Asperger e o House tem nitidamente dificuldades de interacção social.

A série não acabou por dar a ideia de que não é possível ser-se um médico brilhante sem ter um problema?

Perguntam-me muitas vezes se o House transmite aos médicos lições erradas. Penso sempre na série “Galaxy Quest”, em que uns aliens vêem a nossa televisão e acham que é tudo verdade. Qualquer pessoa que ache que o House é a referência para se ser um bom médico é um idiota e não deve ir para Medicina.

Os médicos mais perspicazes neste tipo de casos são pessoas normais?

Acho que temos pessoas mais estranhas e menos estranhas, mas este desejo de descobrir é uma motivação comum entre quem vai para Medicina. A maioria dos médicos que tiveram os casos que partilho são clínicos gerais ou internistas normais que tiveram a oportunidade de tratar alguém com um diagnóstico difícil, não são médicos famosos.

Recebe muitos pedidos de ajuda de doentes?

Imensos, e geralmente digo às pessoas que devem procurar um médico com quem sintam empatia. Muitas vezes pensam que os médicos de clínica geral não sabem o suficiente, mas o que sugiro é que, quando se tem algo complicado, é essa pessoa que devem procurar em primeiro lugar – não dominam apenas uma parte do corpo. O que acontece muitas vezes é que as pessoas que não sabem o que têm abandonam os médicos de família e ficam completamente perdidas num mundo de especialistas.

O aumento de exames e análises disponíveis está a reduzir a capacidade de análise clínica dos médicos?

O que penso que tem de ser entendido, por médicos e também pelos doentes que por vezes o exigem, é que só pedir exames e análises não serve de nada. Pode haver valores anormais mas que não têm nada a ver com o problema e há uma percentagem de resultados errados, já que os exames não são 100% fiáveis. Os exames não devem conduzir o diagnóstico mas sim ser usados para testar o diagnóstico. Nesse sentido, com mais oferta de exames, teremos mais hipóteses de testar diagnósticos, e isso é positivo. Se se dispara com uma série de exames e análises à partida, por vezes aparece a resposta, mas muitas vezes o o diagnóstico fica apenas mais difícil.

Veio a Portugal para supervisionar uma competição de raciocínio clínico. As escolas são boas nesse treino?

Não é algo que esteja muito aprofundado nos currículos. Antigamente os jovens médicos aprendiam isso com os mais velhos, mas isso hoje é mais difícil. Os doentes entram e saem dos hospitais, a pressão do tempo é maior e é difícil para o interno acompanhar o processo. Só nos últimos anos se começou a pensar numa forma de resolver essa lacuna.

Com alguma conclusão?

Debater casos e mostrar fazendo é essencial. Estas competições em que os estudantes têm um caso e respondem a perguntas são interessantes mas ainda é melhor com doentes presentes.

Mas o que vemos muitas vezes é que os internos surgem nas escalas com os médicos, por exemplo para preencher urgências.

Tivemos esse problema nos EUA e há dois anos a organização responsável pela formação médica disse claramente que não podíamos só estar a usá-los como profissionais baratos e impôs limite à duração do trabalho nos hospitais. Tudo o que os internos fazem tem de lhes ensinar alguma coisa. Claro que isto foi uma mudança de paradigma dispendiosa porque deixámos de ter esta força de trabalho a custo reduzido. Mas estamos convencidos de que o resultado vão ser médicos com uma formação melhor.

Quais são os erros mais comuns dos médicos jovens?

Acho que a pressão para serem rápidos é muito prejudicial e está por detrás da maior parte dos erros. Quando vêem um problema complicado, em vez de reflectirem um bocado, pensam em quem podem chamar para ver o doente. Se um doente tem anemia e não é óbvio de onde vem, o impulso é chamar o hematologista. Claro que se pode aprender alguma coisa se vier alguém dizer o diagnóstico, mas aprendiam mais se pensassem um bocado.

E o doente ficava à espera?

Estamos a falar de pararem meia hora para pensar. Hoje isso é mais fácil. Temos Google, acesso online a revistas médicas, não é preciso ir a uma biblioteca.

Mas como se diz isso ao doente?

Tem de se aprender a dizer “não sei”, “deixe-me reflectir um pouco”. Isto tem de fazer parte do treino dos médicos e passar para a população. Despachar ou dizer que é uma coisa e depois afinal não ser é que chateia os doentes. Isso era o que se devia aprender com o House: se não se explica às pessoas a incerteza nos diagnósticos ou se avança obstinadamente, vão ficar irritadas e podem até morrer.

Qual foi o seu diagnóstico mais desafiador?

O meu favorito foi o de uma mulher que tinha uma dor muito estranha. Ela dizia que era como um picador de gelo da ponta da cabeça à clavícula. Foi interessante pois fez-me perceber que é a forma como se pensa num caso que determina se vamos conseguir resolvê-lo. Inicialmente pensei que fosse uma dor, não uma dor de cabeça. Afinal era uma dor de cabeça mas que se prolongava, uma hemicrania contínua. Descobri-o quase por acidente, a ler sobre dores de cabeça.

A última afirmação de House na série é que o cancro é aborrecido. Concordou?

Não sabia como ia terminar, mantiveram segredo. O que torna o cancro aborrecido para o House é que o diagnóstico é só o primeiro passo, o resto é tratamento. E o tratamento leva muito tempo e é incerto. Ele preferia centrar-se no diagnóstico e sentia-se mais determinante nessa fase e nesse sentido percebo o sentimento. Mas acho que o disse mais por estar a sofrer com o facto de o amigo estar a morrer.

Para um médico é mais difícil lidar com um diagnóstico grave de um amigo ou familiar?

É duro para toda a gente, mas para um médico é muito frustrante.

A série acabou há dois anos. Tem saudades do House?

Adorei trabalhar na série e continuo a procurar casos esquisitos. Achei que Hugh Laurie, embora não fosse exactamente o médico que eu acho que devemos ser, trouxe nobreza à profissão.

Ficaram amigos?

Não, sou muito tímida. E ele também. Mas sou uma grande fã e sempre que ele dá um concerto eu vou.