O i entrevistou Fillipa Vacondeus em Novembro de 2010. Na altura, Vacondeus tinha acabado de lançar um livro de receitas low cost: “Os Truques da Filipa”, onde ensina receitas baratas, para os tempos de crise. Na conversa com o i, admitiu que era uma dona de casa que tinha aprendido com o tempo.
Recebeu-nos na casa onde vive há mais de 40 anos.
Assim que abriu a porta percebemos que é muito mais pequena do que parece na televisão. Numa voz gasta pelo tabaco, que consome desde os 14 anos – “primeiro eram as barbas de milho, depois vieram os cigarros” – dá-nos as boas vindas e conduz-nos a uma sala cheia de móveis, cadeiras, muitas cadeiras, fotografias e o retrato de D. Miguel, o absolutista, na parede.
Filipa Vacondeus tem 77 anos e mede um metro e meio. Numa só resposta salta dos tempos em que trabalhou na TAP para as recordações de infância, na Lapa, quando saía de casa à procura de histórias para depois contar à mãe. Sozinha, apanha o comboio para Vila Nova de Gaia às sete da manhã, carregada de sacos cheios de tachos e ingredientes para os cozinhados da televisão.
A “senhora dos restinhos” tem um novo livro “Os Truques da Filipa”, onde ensina receitas baratas, para os tempos de crise. Tem uma opinião muito particular sobre a nouvelle cuisine, ou cozinha de autor.
“Aquilo é um horror, foi um passarinho que andou a voar, deixou cair uma coisa no prato e nós somos obrigados a comer a quantidade que estes senhores acham que sim. Para mim é uma cozinha incaracterística, universal que se pode comer em todos os restaurantes. Acho que devemos manter a nossa cozinha tradicional portuguesa. Levámos anos para que fosse considerada património nacional. Conseguimos e agora todos fazem estes pratos, que são muito bonitos à vista, mas não são o nosso paladar.”
Como é que a cozinha surge na sua vida?
É um bichinho que nasce connosco. Quem não gosta, não gosta mesmo e é um sacrifício fazer café com leite e pão com manteiga. Com nove anos, a primeira coisa que fazia quando chegava a casa era ver o que a cozinheira tinha feito. Provava e depois dizia o que é que faltava: “ponha mais disto, mais daquilo”. Nessa altura, no mês de Agosto, governava a casa, chamemos-lhe assim a brincar, para dar férias à minha mãe. E sabia muito bem dizer à cozinheira o que era para fazer. E isso nasce connosco, não há nada a fazer.
Alguma vez pensou que iria ter livros, programas de culinária e que iria tornar-se numa espécie de guru da cozinha portuguesa?
Nunca me passou pela cabeça. Aliás, tudo o que é escrever, chateia-me. Esta história dos livros, é sacrifício. Só que também tenho outra coisa, eu gosto de transmitir aos outros as coisas que eu sei, para depois não irem comigo lá para a cova e isso dá-me gozo e faz parte da minha vida.
Quem a ensinou a cozinhar?
Ninguém. Por isso é que eu me rio imenso quando falam de chefes… eu não sou chef coisa nenhuma. Sou uma dona de casa, ou uma leiga, que a única coisa que fez foi aprender com o tempo. E depois há outra coisa muito importante: eu tinha talvez 10 anos quando foi a segunda grande guerra mundial.
Durante esse período existiam as senhas de racionamento, em que as pessoas tinham uma determinada quantidade de alimentos por mês. Isso ensinou, mesmo as famílias mais abastadas, a fazer contas e saber o que é que podiam gastar. E esse talvez tenha sido o grande ensinamento que tive. Isso foi depois trabalhado na minha cabeça.
Depois o grande boom surgiu com o restaurante de luxo que tive em Alfama, o Cota de Armas, em que a carta era toda com receitas minhas e da minha chefe de cozinha, a minha Clotilde, que é fantástica. Não tínhamos um prato igual aos outros restaurantes, era tudo feito da nossa cabeça e isso deu-me um grande traquejo.
O restaurante fechou pouco depois do 25 de Abril. Porquê?
Era um restaurante de luxo, conotado com tudo o que era banqueiros, fachos da época, não havia hipótese de continuar. Foi horrível ia lá o COPCON [Comando Operacional do Continente] a toda a hora, buscar este e aquele, foi terrível.
Do pessoal que restou, os bons foram todos para outros restaurantes, partiam a loiça de propósito, as melhores loiças que eu tinha. Foi uma época tremenda nesse aspecto, porque eu não merecia, de todo.
Um dia cheguei lá e disseram-me: “Pode ir-se embora, não a queremos mais aqui”.
Fui-me embora e eles ficaram com aquilo. Durou quatro meses. Deixaram de pagar as contas e pronto. E ficou com dívidas e sem trabalho. Faltava pagar 10% do restaurante.
O meu marido, que fundou o jornal “O Tempo” e depois “O País”, como eu estava aflita, lembrou-se de pôr um anúncio no jornal a dizer “fazem-se ceias de Natal, a 1500$”, que não era nada, mas nessa altura ajudava muito.
Tinha canja, bacalhau, peru e doces de Natal. Bom, assei 18 perus. Foi uma doideira. Depois comecei a fazer jantares para fora, mas jantares assim fabulosos, de gansos recheados, patos desossados, levava as travessas grandes de prata para casa das pessoas, punha as mesas, arranjava tudo. E fazia dinheiro para pagar o que era preciso pagar.
Entretanto o meu marido teve uma ideia, que me saiu bastante do pêlo, mas foi gira: todas as sextas dava jantares cá em casa, a tudo o que se possa imaginar, da extrema esquerda à extrema direita, todos aqui uns com os outros, a comerem ao lados uns dos outros.
Como é que surge a televisão?
Num desses jantares veio a Maria Elisa, que tinha acabado de entrar para dirigir a RTP, e que me lançou o desafio de ir para a televisão. Eu disse que não, porque nem nas peças de teatro da escola entrava. Não me sei armar em mais nada senão nisto que eu sou, percebe?
Todos os disparates, o que sei ou não sei, eu iria dizer. Mas correu muito bem. Cheguei ali e pronto. A câmara está ali, mas eu estou a falar para as pessoas que estão ali comigo, como estou aqui a conversar consigo e a coisa sai natural. E tinha de levar tudo, tachos, panelas, ingredientes, para os estúdios no Porto. Ainda é assim.
Tenho de levar sacos para todo o lado porque eles [RTP] não têm nada, só têm fogão. Levanto-me às 5h da manhã, para apanhar o comboio das sete, para chegar lá a tempo, com os sacos todos. Às vezes desespero e protesto muito. O meu marido pergunta: “Estás a falar com quem?” Olha, estou a falar comigo porque isto é um inferno e já não posso.
E vai sozinha, com tantos sacos?
Claro, não tenho ninguém. Ainda ontem levava dois sacos cheios e perguntaram-me: “Mas a Filipa não tem ninguém que a ajude?”. Eu não, não tenho ninguém. A menos que alugue alguém na rua “olhe quer vir trazer-me os sacos à televisão?” E pronto.
Mas o que se passa é que gosto muito do que faço. Hoje estou nesta refilice toda porque tenho coisas todos os dias em todo o lado, mas gosto muito e divirto-me muito.
Voltemos atrás. Antes da cozinha, foi hospedeira da TAP. Como é que essa aventura começou?
Eu não fazia a mais pequena ideia de trabalhar, porque na minha família as mulheres não trabalhavam. Era tudo dondocas, passavam o dia a fazer tricot e a tomar chá. Eu fui sempre muito rebelde e achava aquilo uma chatice.
Houve um momento crítico na família e eu de repente vi um anúncio para a TAP e disse “lá vai ela”. Como falava cinco línguas, passei. O inferno foi quando me mediram. Porque eles queriam 1,56m e eu só tenho um metro e meio e não podia crescer, não é? Como éramos medidas descalças, deixei crescer as unhas dos pés e quando o médico olhava para cima, pus-me em cima das unhas e passei, não sei como! Mas fiquei lá durante um ano.
Foi muito difícil, porque quando chegava a casa, era um ambiente terrível, porque eu dormia muitas vezes fora. Isso numa família muito conservadora como era a minha, não dava. Ainda por cima tinha estado para casar e tinha acabado o namoro há pouco tempo.
Porque é que acabou o namoro? Tinha que idade?
Tinha uns 20 anos. Achei que aquilo não era nada, que não era para mim. Se me tivesse casado naquela altura, hoje era uma velha dondoca a fazer tricot, chateada. E isso fez-me lindamente. Pensei: “Não vou ficar aqui, solteira, a pedir 20 escudos à minha mãe para ir à Benard tomar chá”, que era o que as meninas de bem faziam na época. Ninguém trabalhava, iam para a Benard tomar chá, e a um cinema à tarde. Isso não me diz nada, não tem nada a ver comigo.
O meu avô chamou-me e disse: “Uma neta minha, a trabalhar” e eu respondi, “ó avô, se me der os 4500$ que me vão pagar na TAP eu vou para a Benard tomar chá!”. Ficou da cor deste sofá [vermelho] e disse que eu tinha muita lata.
Com que idade casou?
Tinha 35 anos. O mais tarde possível e casei cedo de mais. Não sou galinha de capoeira.
E não teve filhos. Porquê?
Porque casei tarde. Ou os tinha naquela altura ou não tinha. Estes filhos de mãe e pai serôdios, acho um horror. Mas não fiz tragédia com isso. Sou realmente muito crente e achei que se não tive, foi porque Deus não quis.
É muito devota?
Sou. Sou católica, apostólica, romana, praticante. Tenho uma fé desmedida que faz parte de mim. Aquilo que dou cá de dentro faz parte da educação gira que levei. A educação que tive de casa foi muito boa e a religiosa também.
Não é uma religião de beatice… ensino catequese mas não estou lá o dia inteiro a rezar Pai Nosso, Avé Maria.
Acho que a religião serve para mostrar os valores que devemos ter durante a vida: respeitar os pais, respeitar os outros, ter caridade com quem tem menos do que nós, não ser arrogante. E isso é que são os ensinamentos de Cristo.
Sou monárquica e o meu marido é ultra republicano – vivemos os dois lindamente com isso – e uma vez ele deu um jantar cá em casa com socialistas radicais. Havia um que era o Raul Rego, conversámos muito e tal. No fim veio cumprimentar-me: “A senhora é a maior socialista de nós todos. Estou de queixo caído”. E eu: “Não, não sou socialista, sou monárquica. O que eu sou é cristã.” E assim me tenho governado na vida.
Nunca feri ninguém e toda a gente tem o direito a ser o que quer. Desde que não me impinjam nada, eu também não impinjo nada a ninguém.
Falou há pouco da sua família e de como as mulheres não trabalhavam. Como foi a sua infância?
Foi passada na Lapa, numa espécie de vila, como havia antigamente. Era da minha bisavó, uma pessoa muito rica mas com um coração sem fim. Além de sustentar a igreja da zona, ajudava todos. Uma das suas criadas namorava um taxista. A minha avó, como dote de casamento, dava-lhe um táxi. Depois a outra namorava um barbeiro. A minha avó montava-lhe uma barbearia, ali mesmo em frente da porta, que era o Manel Cavalinho. Aquilo era como se vivêssemos numa quinta.
Todas as quartas-feiras as crianças da vila iam lá a casa tomar banho, despiolhar e lanchar. Eu, que tinha umas tranças enormes e lindas, tive de as cortar porque tinha tanto piolho que sei lá. Passava a vida a fazer de cabeleireira e os piolhos saltavam para mim. Lembro-me da minha mãe chorar como se eu tivesse lepra. Havia sempre muitas coisas a acontecer.
Ficou muito conhecida depois de Herman José a ter imitado no programa “Tal Canal”. Sabia que ele ia fazer a sua caricatura? Como reagiu?
Eu não o conhecia antes disso. Estávamos num jantar e ele vem direito a mim. “Ó Filipa, a menina importava-se que eu me metesse consigo num programa que vou ter agora chamado “”O Tal Canal”””? Eu respondi-lhe. “Eu não. Se for engraçado, ai filho, por amor de Deus faz o programa, porque eu nunca vi nada mais chato do que a televisão de agora!” E foi.
Não teve nada de mal. Houve pessoas que se insurgiram que disseram que eu o devia pôr na polícia, em tribunal. Tribunal? Mas era tão engraçado, aquilo. Hoje não nos vemos muitas vezes, mas se ele me encontra no Algarve, como já aconteceu algumas vezes, dá logo um grito. “Hoje vem jantar a minha casa”. E a gente vai, nem que seja para comer quatro massas iguais, e diverte-se.
E de onde é que vem a paprica?
Dele, da cabeça dele! Nunca usei na vida! O que eu uso, por exemplo, é o pimentão, moído na altura, com alho e sal, que dá um tempero óptimo!
Como é que se cria uma receita? Perde muito tempo a fazer experiências, a pensar em ingredientes?
A cabeça das pessoas que trabalham na cozinha, está feita. Nós sabemos que aquilo não vai bem com aqueloutro. Às vezes podem fazer-se umas experiências, mas normalmente temos tudo na cabeça. Há um bocadinho disto, um bocadinho daquilo, o que é que eu vou fazer? Junto e normalmente sai bem, não tem grande mistério. Flui na cabeça, tal qual como um poeta que está a falar e cujas palavras vão fluindo.
E depois aponta tudo, não?
Não, fica tudo na cabeça. Por enquanto. Por enquanto ainda tenho o número de BI e de contribuinte, telefones, está tudo na cabeça. Não sei é por quanto tempo. Se me gastam o resto dos miolos que tenho cá dentro…
Este novo livro, é uma espécie de combate à crise?
É. É ensinar às pessoas que se tiverem o mínimo para comprar, conseguem fazer bons pratos. Porque tenho um grande problema, quando estou a fazer as receitas. “Eu tenho isto e posso fazer de sobra mas há muita gente que não tem, nem tem dinheiro para comprar e isto para elas não serve”.
Essa é a minha grande aflição. Dá muito trabalho. É voltar atrás, lembrar-me das receitas, tirar isto ou aquilo, porque vai encarecer. Mas é um prazer e é uma forma de ajudar.
Tem alguma receita preferida para comer e para cozinhar?
Para comer, cozido à portuguesa, é o prato mais rico. Para cozinhar é difícil, porque tudo me dá prazer. Eu quando chego ali [à cozinha] e tenho materiais à mão, adoro mexer naquilo. Mas acho que gosto menos de cozinhar peixe. Como gosto de o comer simples, cozido ou grelhado, dá-me imenso prazer. A carne dá-me mais gosto porque posso imaginar.