Onze perguntas a… João Botelho. “Dizem que o meu pai era melhor guarda-redes que eu”


João Botelho é um nome com pinta. O assunto nem oferece discussão. João Manuel Relvas Leopoldo Botelho é de Lamego. De 1949. É cineasta. Daqueles que faz filmes. “Conversa Acabada” (1980) estreia-se no Festival de Cannes, tal como “Três Palmeiras” (1994) e “A Mulher que Acreditava ser Presidente dos Estados Unidos da América” (2003). “Tempos…


João Botelho é um nome com pinta. O assunto nem oferece discussão. João Manuel Relvas Leopoldo Botelho é de Lamego. De 1949. É cineasta. Daqueles que faz filmes. “Conversa Acabada” (1980) estreia-se no Festival de Cannes, tal como “Três Palmeiras” (1994) e “A Mulher que Acreditava ser Presidente dos Estados Unidos da América” (2003). “Tempos Difíceis” (1993) no de Veneza, tal como “Tráfico” (1998) e “Fatalista” (2006). Pelo meio, é galardoado com o Tucano de Ouro no Festival do Rio de Janeiro, por “Um Adeus Português” (1985). A última relíquia é “Os Maias – Cenas da Vida Romântica” (2014). Fora do set, é um bon vivant._A Bica é sua. O Lux também. Os congoleses Konono Nº 1 que o digam.

   João Manuel Raposo Botelho é de Ponta Delgada._De 1985. É guarda-redes. Daqueles que defende. E muito. Ao ponto de ter batido o recorde nacional de imbatibilidade este domingo. O primeiro a passar os mil minutos sem sofrer golos é um tal Manuel Galrinho Bento. O número 1 do Benfica fecha a baliza por 1066 minutos (e defende um penálti do portista Gomes, na Luz) entre 29 de Setembro de 1985 e 12 de Janeiro de 1986. Quem o derruba é Roçadas (Marítimo), nos Barreiros.

   Esse recorde é superado na tarde de 5 de Janeiro de 1992. Na altura, o portista consegue a proeza de fechar a baliza por 1192 minutos. O trajecto de Baía começa na quarta jornada, quando o FC Porto encosta nos Barreiros com um golo de José Pedro (1-0). Daí em diante, é um festim: 2-0 ao Paços, 1-0 em Chaves, 0-0 em Faro, 1-0 ao Famalicão, 0-0 em Braga,          0-0 com o Benfica, 1-0 em Aveiro, 3-0 ao União da Madeira, 2-0 em Penafiel, 2-0 ao Salgueiros, 0-0 no Bessa, 1-0 ao Gil e 1-1 em Guimarães. Quem troca as voltas a Baía é um senhor chamado Paulo Bento (sim, esse), de penálti apitado por Pinto Correia.

   De 1992 até à última semana, nem um se atreve a passar Vítor Baía. Até chegar João Botelho. Lá está, o nome com pinta. Faz toda a diferença. O titular da baliza do Operário da Lagoa é o responsável pela boa nova do futebol português. Durante 14 jogos e meio, mais coisa menos coisa, João Botelho não sofre nem um golo (e ainda defende três penáltis). Ao todo, 1211 minutos. É a 15.ª melhor marca mundial, liderada pelo brasileiro Mazarópi, 1816 minutos no Vasco da Gama, entre 18 de Maio de 1977 e 7 de Setembro de 1978. O i pede o número de telefone do homem à revista Sábado e o contacto é imediato. Atenção, muita atenção, estamos a falar com o recordista nacional. Um luxo.

 

1. Bom dia. Quantos parabéns já recebeu por telefone desde domingo?

Uyyyy, não consigo dizer-lhe um número. Para cima de cem, acho. Recebi muitas chamadas e muitos sms._De pessoas próximas e de outras bem distantes, no estrangeiro. Têm sido movimentados estes dias. E por movimentados não quer dizer que seja cumprimentado por pessoas que nunca vi. Vivo num meio pequeno. Não é como Lisboa, em que você sai do metro e encontra um mar de gente incógnito._Aqui não. Saio de casa e cruzo-me com as pessoas de sempre. É tranquilo. Como eu._Continuo a ser o mesmo.

2. E esse é…?

Sou o João Botelho, nascido e criado nos Açores. Independentemente do recorde, continuo a fazer a vida de sempre. Hoje, por exemplo, acordei cedo e fui para o treino das 8h30. Voltei para casa e almocei.

3. Lapas?

Eheheheh, não, hoje não. É, de facto, normal as pessoas irem a um restaurante e pedirem lapas para abrir o apetite ou até como prato principal mas isto não pode ser todos os dias eheheheh.

(desculpe lá a interrupção, continue)

À tarde, mais um treino. À noite, em casa. Tenho os meus hobbies, claro. Os cães, adoro cães. E ando muito na internet, de um lado para o outro.

4. Como na baliza, portanto. Foi sempre guarda-redes?

Sempre, nem por um minuto duvidei da minha vocação. Quando era pequeno, já era daqueles que ia à baliza._Sabe, o meu pai também foi guarda-redes. Sério. O Mário Botelho. Tratam-no por Marinho. E, como eu, foi do_Santa Clara. Até dizem por aí que ele era melhor que eu, veja lá bem. Que defendia tudo e mais alguma coisa. Um dia, um clube da 1.ª divisão interessou-se por ele. O Marítimo da Madeira. Mas o meu avô, pai dele, não o quis libertar para a Madeira nem para o futebol. Preferiu que ele ficasse em Ponta Delgada, a trabalhar na fábrica do açúcar. Outros tempos em que ser futebolista nem sequer era considerado uma profissão._Agora é diferente, muito diferente, claro. Perante a recusa, o meu pai pendurou as luvas e dedicou-se a outros desportos, como o ténis. Mas foi o meu treinador até aos juniores do_Santa Clara. Aprendi muito com ele, as coisas básicas e as manhas.

5. Por falar em ídolos, quem são os seus?

O meu ídolo de sempre foi o Vítor Baía. Acompanhei toda a carreira e foi admirável vê-lo a conquistar títulos, uns atrás dos outros. Era um guarda-redes de eleição e fiquei agradecido por ele ter comentado o meu recorde. Atenção, nunca me cruzei nem falei com ele. A admiração é através da televisão. Lá fora, o mais completo de todos é o Buffon. É uma instituição, é aquilo que deve ser um guarda-redes. Classe, concentração, técnica.

6. Nesta série sem sofrer golos, passou algum sufoco?

Então não?, claro que sim. Basta recordar o jogo com o_Atlético Reguengos. Ganhámos 2-0 mas podíamos ter sofrido um golo ou mais. É normal, não é? Numa série de 14 jogos, há sempre situações de risco: uma bola ao poste, uma bola na perna do defesa e é canto, uma bola na cara do guarda-redes, um pontapé na atmosfera com a baliza aberta.

7. Pelo que sei, também há aí uns penáltis. Defendeu t-r-ê-s?

Eheheheh, pois foi, t-r-ê-s. E todos eles nessa série dos 14 jogos. Não sou nenhum especialista, simplesmente aconteceu. Foquei-me no adversário, arrisquei e atirei-me para um dos lados. Fui bem sucedido e mantive o recorde bem vivo._Claro que isso tudo passaria despercebido se não tivesse uma defesa coesa, um meio-campo competente e um ataque esfomeado. Foi essa a receita para bater o recorde e é ainda a receita para estarmos à frente do Campeonato Nacional de Senior, Zona Sul.

8. O Operário é dos Açores. Qual é a táctica para vir jogar ao Continente? É de avião? E tem medo? [hat-trick de perguntas]

Parece que me está a ler o pensamento._Se tenho medo? Muuuuito._Se há algum barulho fora do normal, agarro-me logo à cadeira e pergunto-me o que se está a passar. Estou sempre alerta. E viajamos de 15 em 15 dias para o Continente. Normalmente, aterramos em Lisboa no sábado e viajamos de autocarro para o local do jogo no domingo. Há distâncias curtas e outras nem tanto._Como Loulé._Essa cansou-nos. Ir lá e voltar foi duro._E depois o avião. Aiiii, não dá mesmo, não atino com aquilo.

9. E quando foi para a Holanda?

O medo mantém-se, seja qual for a distância ou a motivação._Claro que ser convocado para os 23 de Portugal rumo ao_Euro sub-21 foi uma experiência enriquecedora, única. Convivi com pessoas que só via pela televisão, como Nani, Moutinho, Miguel Veloso, Manuel Fernandes, Varela, Ruben Amorim, Hugo Almeida… Bem, o Hugo era um tanque, tinha cá um pontapé._E quero agradecer, claro, ao seleccionador José Couceiro por ter acreditado em mim._Afinal, eu jogava na 2.ª divisão pelo_Santa Clara.

10. Entrou no_Santa Clara aos 10 anos de idade e fez todo o caminho até sair para o Camacha, aos 25, em 2010. Porquê?

No pós-Euro sub-21, perdi o meu lugar na baliza. O Vítor Pereira [aquele do “you’re the police?” na Arábia Saudita, o da inspecção à baliza do Panathinaikos e o do abraçaço ao Jara no campo do_AEK] chegou ao_Santa Clara e trouxe os seus guarda-redes. No primeiro ano, o Alemão, das camadas jovens do_Sporting. No segundo, o Matt Jones, agora no Belenenses, e um brasileiro chamado Ney, que agora está de novo no Brasil. Sem espaço na baliza, acabei por sair do Santa Clara. Tinha de ser, não queria ficar parado.

11. E o_Santa Clara continua a ser o seu clube do coração?

Sou santa-clarense desde sempre e até sempre. Pertenci à claque até subir aos seniores. Lembro-me de ir ao_Continente uma vez, fomos jogar com o Beira-Mar a Aveiro. Ganhámos 2-0, se não me engano._Dois golos de Gamboa. Ele também marcou os dois golos ao_Sporting, em Ponta Delgada, na estreia do_Santa Clara da 1.ª divisão, em Agosto de 1999._Empatámos 2-2, eu estava atrás da baliza do Schmeichel. Também me lembro da festa da subida à 2.ª em Maio de 1998 e à 1.ª em Maio de 1999, ambas com o Manuel Fernandes.