Os dados recentes da OCDE colocam Portugal com o pior resultado na avaliação da saúde mental dos cidadãos. Que fatores contribuem para este resultado?
Essas conclusões vão um bocado ao encontro dos dados de um inquérito divulgado em 2013, que referiam que cerca de um quarto da população portuguesa sofria de perturbação mental ligeira e moderada, mas a um nível muito superior daquilo que se verificava noutros países. Igual a Portugal, na altura, só a Irlanda. E isso entronca numa outra circunstância: a resposta que o nosso Serviço Nacional de Saúde dá a estas situações não é suficiente para cobrir as necessidades que as pessoas têm.
Mas porque é que em Portugal continuamos a ter taxas tão altas de pessoas com perturbações mentais em comparação com outros países?
Penso que há uma certa forma de estar portuguesa, uma certa cultura, que aponta muito para formas de ligeiras a moderadas de encarar a vida, na relação com os outros, na relação com a profissão, etc., que é muito próxima daquilo que culturalmente nós chamamos fardo. É como se os portugueses, em geral, carregassem uma espécie de fardo em cima. Nós não vemos, na nossa cultura quotidiana, uma linguagem otimista. Um português diz sempre que “está mais ou menos”.
Ou o típico “vai-se andando”.
Exato. Há uma cultura relativamente melancólica, muito ligada à saudade, à nostalgia e ao passado. Uma certa forma de estar em que cada pessoa não se permite estar bem ou sequer revelar que possa estar bem.
Quando se vai avaliar a população com inquéritos, este caráter subjacente empurra muito os inquéritos para um score mais elevado e para um resultado que aponta para uma patologia mais elevada.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem conseguido dar resposta?
Em relação à doença mental grave, a resposta do nosso SNS melhorou em todo o país. Há uma resposta a um nível razoável para a doença psiquiátrica grave, mas não existe em geral para estas formas de sofrimento psicológico ligeiras e moderadas.
Em termos de saúde mental, não são só as pessoas que têm doença mental grave que merecem o cuidado. Há um número muito maior de pessoas que precisam de cuidado e que não o têm e isso contribui muito para que as pessoas, quando procuram ajuda ao nível clínico, obtenham uma ajuda sobretudo farmacológica.
Portugal é o país da OCDE com maior consumo de calmantes. Este tipo de medicamentos pode levar à dependência?Sim, as benzodiazepinas, que são a forma maioritária de obter ansióliticos, são substâncias passíveis de tornar alguém dependente do seu consumo. Mas só uma minoria de pessoas é que aumentam substancialmente a quantidade que tomam por causa dessa dependência e que se tornam efetivamente toxicodependentes dessas substâncias. Felizmente, a maior parte das pessoas que tomam os ditos calmantes continuam a manter uma dose razoavelmente baixa.
Mas há muitas pessoas que tomam calmantes para dormir e que já não conseguem adormecer sem eles. A longo prazo é prejudicial?
Deve-se evitar prescrever calmantes a médio e longo prazo. Fui conhecendo centenas de pessoas que a vida inteira tomaram o seu calmante para dormir. O que os estudos mostram é que em algumas destas pessoas esse consumo pode ter contribuído para algum declínio cognitivo, mas não é assim para todos, felizmente. Por outro lado, para alguém que tomou um calmante para dormir durante 30, 40 anos, às vezes tentar tirar essa benzodiazepina pode desencadear uma situação que se torna ainda mais complicada do ponto de vista de saúde do que a sua manutenção.
A falta de psicólogos e psiquiatras no SNS leva
a que muitos psicofármacos sejam prescritos por médicos
de família?
Os psiquiatras veem sobretudo doentes mais graves, em que a utilização de fármacos é quase obrigatória. Agora, as pessoas com patologia ansiosa e depressiva mais ligeira, que procuram o Serviço Nacional de Saúde, através de um médico de família, acabam por ser medicados com ansiolíticos (calmantes) e antidepressivos. Os médicos, muito assoberbados e sem grande apoio nos seus centros de saúde, acabam por fazer aquilo que é possível fazer. É a resposta mais imediata.
Como vê o papel da colaboração entre o setor público e privado na área da saúde mental? Acredita que parcerias público-privadas poderiam ser uma solução viável para suprir as atuais deficiências do SNS nesta área?
Sim, não só para a saúde mental, mas para todas as áreas da medicina. É urgente que se pense um Sistema Nacional de Saúde que possa ajudar o atual Serviço Nacional de Saúde, integrando, na medida do possível, o setor privado e o setor social na prestação de cuidados. Aí, podíamos de facto alargar imenso a cobertura de resposta. Mas isso representa uma reforma das políticas de saúde em Portugal, que alguns setores políticos não querem. Há setores políticos que obstaculizam esse movimento, o que tem paralisado, claramente, a possibilidade de haver uma reforma, qualquer que ela seja.
A ausência de respostas no SNS leva as pessoas a terem de recorrer a privados ou até a instituições, como as Irmãs Hospitaleiras.
No caso das Irmãs Hospitaleiras, há muita gente que nos procura porque não encontrou essa resposta no SNS, mas também temos um acordo em vigor com o Estado, que permite às entidades públicas e aos serviços de psiquiatria públicos pedirem a nossa ajuda. Já somos também uma parte da resposta ao SNS e àquilo que o SNS não consegue fazer em determinado momento do percurso terapêutico dos doentes mentais graves com doença crónica. Mas também somos uma resposta espontânea àquelas pessoas que, não sendo enviadas pelo SNS, nos procuram diretamente. As Irmãs Hospitaleiras colaboram intensamente com o setor público e que, por serem da área social, a finalidade não é lucrativa na sua essência.
Um dos planos do Governo previa também a aposta na telemedicina para consultas de psiquiatria e psicologia. É uma solução eficaz para colmatar as falhas do sistema?
A telemedicina é um ótimo instrumento para chegarmos aos pacientes, esteja ele em casa ou em outro local qualquer. Isto dá origem a uma relação médico-paciente com características um pouco diferentes, mas que, em meu entender, é suficiente na maioria dos casos para permitir um tratamento e um acompanhamento. Vale a pena intervalar com algumas consultas presenciais para cobrir qualquer insuficiência que a telemedicina possa ter.
Quando existe um familiar com algum problema de saúde mental, como a depressão, que recusa consultar um psicólogo ou psiquiatra, como é que a família deve lidar com o problema? Que soluções existem?
Em geral, a razão para não procurar ajuda é o estigma. A psicologia e sobretudo a psiquiatria ainda estão associadas a uma ideia de loucura e, portanto, a pessoa acha que, mesmo estando em sofrimento psicológico, não tem de ir ao médico. Neste caso, a a família deve, de alguma forma, tentar convencer a pessoa e argumentar para que ela possa ir por vontade própria. Porque se não vai por vontade própria, não há nenhuma terapêutica que possa ajudar.
Também há situações em que a própria pessoa não sabe
que está mal psicologicamente.
Quando a pessoa não tem consciência de que não está bem, ou seja, não tem insight para a sua situação psicológica, torna completamente inviável que vá por vontade própria onde quer que seja. A lei portuguesa permite que, em situações em que a pessoa esteja a adoecer de forma grave e que seja um perigo para os outros ou para si própria, que se possa dar origem a um processo de internamento involuntário.
Pela sua experiência, que camadas da população têm sido mais afetadas por problemas psicológicos?
Claramente, a infância, a adolescência e a juventude estão em maior sofrimento desde há uma década do que acontecia há décadas atrás. Isso é uma coisa que o mundo Ocidental tem que tentar conhecer as razões para tentar resolver. Não é com certeza biológico. É resultado das mudanças das nossas sociedades a um ritmo acelerado. Nas sociedades atuais é mais fácil viver isolado, fechado no quarto, porque os jovens, ao acederem a toda a tecnologia que hoje existe, podem criar a aparência que estão em relação com o outro através do dispositivo. Sendo o ser humano um ser social, precisa da relação presencial. O crescimento de um jovem depende muito do tipo de relações sociais que conseguiu estabelecer na infância, na adolescência, na idade adulta e de tudo o que se ganha com esse tipo de relações com os seus pares.
É possível prevenir o aparecimento de uma doença mental?
Em geral, na medicina, não se consegue fazer uma prevenção da doença em si mesma, mas conseguimos controlar fatores de risco. No caso dos jovens, ao tentar incutir, ensinar, motivar para uma mudança de estilos de vida – até para estilos de vida de antigamente – podemos estar a ajudar os nossos jovens a terem uma menor probabilidade de vir a ter fenómenos de sofrimento psicológico, em particular de ansiedade. Depois é importante evitar o isolamento, aumentar o relacionamento social, fazer exercício físico, ter uma alimentação adequada, enfim, uma panóplia de coisas que são importantes para a saúde no geral.
Os fatores que nos podem proteger do sofrimento e da doença, do ponto de vista social, são todos aqueles que não nos ponham em grande isolamento. Este é um grande conselho que eu posso dar, não só para os jovens, mas para toda a gente.
O consumo de drogas também é um comportamento que pode contribuir para o aparecimento de doenças do foro mental?
É de evitar absolutamente o consumo de drogas.
Mesmo as chamadas ‘drogas leves’?
Mesmo as mais leves. As drogas ditas leves são basicamente os canabinoides, que são normalmente inalados ou fumados sob a forma direta de uma erva ou sob a forma de um produto já manipulado que é o haxixe. Em geral, os jovens consomem este tipo de substâncias em grande escala. Infelizmente a taxa atual de canabinoides nocivos das ervas e do haxixe é muito maior do que as taxas de concentração de canabinoides que existiam há décadas. Isso significa que a possibilidade de adoecer pelo consumo de drogas ditas leves atualmente é muito maior do que aquela que existiu na minha geração, por exemplo.
Ou seja, as substâncias que hoje circulam e que são consumidas já não são as mesmas de antigamente?
É o mesmo tipo, só que vinte, trinta, quarenta vezes mais potente. Está a ver o risco que isto pode ter para os jovens…
Mas mesmo que alguém adopte todos estes comportamentos preventivos, o facto de vir de uma família com um histórico de doença mental pode tornar inevitável que também acabe por ter?
Claro que sim. Na nossa saúde há fatores protetores e há fatores de risco. Se os fatores de risco genéticos forem importantes, a proteção que possa ser dada pelo controlo de todos os outros fatores é mais difícil. E, no caso da doença mental, sobretudo, a doença mental grave, o fator genético tem um grande peso.