A morte precisa de medir a vida para saber que gosto vai deixar na boca dos outros. Mas os poetas às vezes antecipam-se, e vão deixando hipóteses. Como esta: «O morto, por pouco, é pesado e eterno./ Amanhã// a vida continua com buzinas, provérbios,/ sorveteiros nas esquinas,/ esplêndidas pernas de mulheres/ e esse ar alheio// de que a morte/ não apenas se dilui aos poucos,/ mas é uma coisa que só acontece aos outros».
Foi o escritor brasileiro Affonso Romano de Sant’Anna quem escreveu estes versos, e que, na passada terça-feira, se reuniu com a morte, aos 87 anos, que talvez possa fazer algum proveito do enorme conhecimento da literatura que, em parte, assim se perdeu. A outra parte ele deixou nos seus tantos ensaios, nas crónicas que se detinham também sobre questões mais gerais da cultura e da política brasileiras, tendo colaborado em publicações como o Jornal do Brasil, Estado de Minas, Correio Braziliense e O Globo. Publicou mais de 60 obras, e empenhou-se enquanto gestor cultural, dirigindo a Fundação Biblioteca Nacional entre 1990 e 1996 e implementando projetos de modernização do acervo e incentivo à leitura. «Como estudioso, pesquisou as matrizes clássicas de dois procedimentos que se refletiram em muito da nossa produção – a paráfrase e a paródia», assinalou o escritor Chico Viana. «Esta última categoria, trabalhada em alguns dos seus textos e brilhantemente explorada nas aulas, levou-nos a compreender melhor a obra de um Oswald de Andrade, um Drummond ou um Mário Quintana (para citar alguns exemplos)».
Era casado desde a década de 1970 com a escritora Marina Colasanti, que morreu em janeiro, aos 87 anos, por complicações relacionadas com a doença de Parkinson. Já ele sofria de Alzheimer desde 2017. O jornalista Fábio Lau contou numa publicação nas redes sociais como, há uns anos, esteve no seu apartamento e o encontrou seriamente deprimido. «Estava proibido de pisar no terraço da própria cobertura. Perdera parte, a metade, do seu patrimônio. Acesso vetado por um jovem criminoso do Pavão que mandou um aviso, no grito: ‘Vovô, essa laje agora é nossa. Não queremos ninguém aí. Se aparecer vai ter bala!’ A poesia do escritor e colunista não combinava com enfrentamento e resistência. Affonso Romano de Sant’Anna tornara-se refém, mental e fisicamente, na sua própria casa».