Poucas pessoas se poderão ter gabado de uma forma de heroísmo tão pacato. O provérbio diz que, para grandes mal, são necessários grandes remédios, mas no caso de James Harrison, bastou ter nascido com um sangue de qualidade raríssima, estando disposto a acatar o ligeiro incómodo de estender o braço regularmente para que este lhe fosse extraído. Ao todo fê-lo 1173 vezes. Não gostava nada de agulhas, mas limitava-se a olhar para outro lado. Tornou-se um dos maiores dadores da história, mas o motivo porque ganhou a alcunha de «o homem do braço de ouro» é o facto de os cientistas terem descoberto uma invulgar concentração de um raro anticorpo no seu plasma essencial para desenvolver medicação que ajudou a proteger cerca de 2,4 milhões de bebés na Austrália.
O raro anticorpo
E ele acolheu da melhor maneira essa espécie de destino, pois como disse o seu neto Jarrod Mellowship numa entrevista depois da sua morte, «não é que se sentisse obrigado, simplesmente fazia-o com todo o gosto». Tornou-se uma rotina, e foi o suficiente para estar imunizado contra aquela forma de abatimento que se apossa da maioria de nós nas horas em que não estamos seguros sobre o propósito das nossas existências. No caso de Harrison, que morreu no passado dia 17 de fevereiro numa casa de repouso, a uma hora de viagem do centro em Sidney, onde até 2018 fez de duas em duas semanas a regular doação, bastava isso para sentir que estava a fazer a sua parte. E viveu até aos 88 anos. No fundo, manter-se de boa saúde foi, durante muitos anos, a sua verdadeira missão.
O seu plasma continha um anticorpo conhecido como anti-D, que era essencial à produção de um medicamento para mulheres cujo sistema imunitário reage mal à gravidez, atacando os glóbulos vermelhos dos fetos, segundo informa a Australian Red Cross Lifeblood. Este anticorpo ajuda a contornar essa agressão que pode ocorrer quando as mães e os bebés têm tipos de sangue diferentes, sendo mais comum quando os fetos têm um sangue com Rh “positivo” e as mães Rh “negativo”. Nestes casos, o sistema imunitário das mães pode reagir ao feto como se este fosse um corpo estranho, o que, por sua vez, pode colocar os bebés sob o risco de desenvolverem a doença hemolítica, que pode causar anemia e icterícia e ser, potencialmente, fatal.
‘James in a Jar’
Embora se trate de um cenário pouco comum, sendo que apenas cerca de 276 em cada 100 mil nados-vivos têm complicações relacionadas com este tipo de incompatibilidade sanguínea, os médicos não conseguem prever se essa incompatibilidade irá causar problemas sérios. Por isso, na Austrália, a prática é oferecer o medicamento a todas as mulheres grávidas com anticorpos negativos como medida preventiva. Ora, naquele país esse número ronda 17% da população, ou seja, cerca de 45 mil mulheres por ano. A morte de James Harrison só não é um desastre porque ele fazia parte de um lote de 200 dadores cujo sangue protege aquela população de 27 milhões. Mas, entretanto, os cientistas do Walter e Eliza Hall Institute of Medical Research, em Melbourne, estão a trabalhar para criar uma versão sintética do medicamento, partindo daquilo a que alguns chamaram “James in a Jar” (James engarrafado), um anticorpo semelhante ao que era extraído do sangue de Harrison, e que poderá em breve vir a ser produzido em laboratório.
Não sendo provável que a história da sua vida venha a ser adaptada a uma banda-desenhada da Marvel, Harrison chegou a encontrar-se com algumas das mulheres que o seu sangue ajudou. E se a maioria eram rostos na multidão, havia duas que ele conhecia bastante bem. A filha, Tracey Mellowship, recebeu a injeção, e, mais tarde, o mesmo aconteceu com a mulher que se casou com o filho de Tracey, Rebecca Mellowship. Mas se esta história é uma espécie de fantasia para os amantes da inércia, é preciso destacar como ele toda a vida a se empenhou em fazer uma doação de duas em duas semanas, e o fez entre os 18 e os 81 anos de idade. Nem as férias eram desculpa para faltar, parando em clínicas por todo o país, quando ele e a mulher, Barbara, deixavam Sidney na sua carrinha de campismo. Também ela veio a tornar-se uma prolífica dadora. E mesmo quando ficou velho para conduzir, apanhava o comboio e fazia a viagem de uma hora em cada sentido até ao centro de doação. Apesar do horror às agulhas, tirava prazer da conversa, sendo uma espécie de celebridade a partir do momento em que cruzava aquelas portas.
Seis décadas como dador
Nascido a 27 de dezembro de 1936, em Junee, uma pequena povoação de Nova Gales do Sul, filho de Peggy e Reginald Harrison, quando tinha 14 anos, Harrison passou muito mal durante uma grande cirurgia aos pulmões, tendo necessitado de várias transfusões de sangue, e isso sensibilizou-o para a importância de doar sangue, pelo que não se limitava a fazê-lo, mas tinha o cuidado de cumprimentar e encorajar todos aqueles que o faziam pela primeira vez. Não tinha o hábito de contar a sua história, limitava-se a fazer os outros sentirem-se especiais por terem tomado aquela decisão. No seu caso, tudo parecia estar ligado, e pouco depois de recuperar da cirurgia, conheceu a futura mulher. Era professora e morreu em 2005, ele manteve a sua rotina. Já ele fora escriturário na autoridade ferroviária regional. A última doação que pôde fazer foi em 2018, e cerca de duas décadas antes recebera a Medalha da Ordem da Austrália pelo seu empenho como dador. O seu sangue terá ajudado muita gente, mas ele entendia que o mais importante não eram os números e, sim, esse compromisso de quem tira algum tempo à sua rotina para garantir que não falta sangue a quem dele venha a precisar. Era esse o seu principal argumento na hora de convencer os demais. Como disse o seu neto, Jarrod Mellowship, o seu desejo era que os outros fossem tão ou mais prolíficos que ele, «porque isso significaria que o mundo está a caminhar na direção certa».
Stephen Cornelissen, o diretor executivo da Lifeblood, que integra a Cruz Vermelha Australiana, disse que Harrison esperava que alguém um dia batesse o seu recorde de doações. «O James era uma pessoa notável, estoicamente bondosa e generosa, que empenhou toda a sua vida em ser dadivoso e que conquistou o coração de muitas pessoas em todo o mundo», afirmou Cornelissen num comunicado.