Odia nasceu esquisito. Um prenúncio de morte? Ninguém sabe a que velocidade viajam os prenúncios… Uma neblina por cima das casas, das ruas e dos campos. Um sol tímido que foi ganhando força à medida que o meio-dia, hora da sombra mais curta, ia ganhando o seu lugar luminoso e franco. Linares: os homens ocupavam as cadeiras das bodegas, ou ficavam a direito nas barras comendo caracóis. Mulheres de mantilha caminharam ao longo do Paseo Virgen de Linarejos em direção à bênção dada pelo padre da Iglesia de Santa Maria la Mayor. A morte, essa indecente Senhora da Gadanha esperava, sinistra, escondida, pelas cinco horas da tarde em ponto. «A las cinco de la tarde/Eran las cinco en punto de la tarde/Un niño trajo la blanca sábana/a las cinco de la tarde/Una espuerta de cal ya prevenida/a las cinco de la tarde/Lo demás era muerte y sólo muerte/a las cinco de la tarde», escreveu Garcia Lorca no Llanto por Ignacio Sánchez Mejías, o toureiro condenado por uma cornada do touro Granadino, em Manzanares, a 11 de Agosto de 1934. Desta vez era também Agosto, dia 29 de 1947. E a morte não precisou de esperar tanto.
O cartaz era de luxo. Seis-touros-seis de D. Eduardo Miura, para Rafael Vega de los Reyes, Manolete e Luiz Miguel Dominguin. O último ficou por lidar. «Não era um estilo contra outro estilo; nem uma escola contra outra escola; era a vida na sua perfeita evolução; a passagem do archote das mãos firmes daquele que iluminava o mundo do toureio para as mãos jovens e ardentes de outro que pretendia ser um novo farol», ilustrou Leopoldo Nunes.
Estralejaram aplausos no passeio das quadrilhas. Ricardo García López, mais conhecido por ‘K-Hito’, escritor, cronista, caricaturista, homem da Generación del 27, um grupo de intelectuais que devotaram as suas vidas a enaltecer a obra de Luis de Góngora, que inventou o pseudónimo ajaponesado para se autointitular ‘El Emperador de la Historieta Española’ à moda de Hirohito, também matador, e o primeiro a chamar Manolete de ‘El Monstruo’, estava lá. E disse do alto da sua sabedoria: «O lenço presidencial já se encontra sobre a colgadura de veludo vermelho escuro. Ao mesmo tempo que um cavaleiro vestido à andaluza percorre a arena, as quadrilhas avançam um passo para que os espadas se coloquem à entrada da porta. Do meu lugar vejo só Manolete. Enquanto espera a volta do ginete, que pretende fazer umas filigranas, o Monstro escuta os primeiros aplausos da tarde. Raios de sol batem nos bordados do seu fato rosa-pálido e ouro. Saem os toureiros. à direita do presidente, Gitanillo de Triana (Rafael) de carmesim e ouro; ao centro Luiz Miguel de verde e ouro; à esquerda Manolete». As cores da festa. Um calor de derreter catedrais. E o vermelho e o negro, como diria Stendhal, mas mais daqui a pouco.
O povo grita por Manolete que sai da trincheira para agradecer trazendo os companheiros consigo. Irmãos na morte que será só de um. As bancadas estão repletas, há gente até dependurada dos paus de bandeira. Ninguém quer perder uma pitada que seja. O primeiro Miura entra soberbo pela praça. Gitanillo toureia de capa de forma elegante. Brígido Perea, ‘El Boni’, bandarilheiro faz um lance de capa mal calculado e é derrubado pelo touro que o procura no chão com ganas de cornadas. Levanta-se sacudindo o pó. É o primeiro vislumbre de sangue na tarde calma. Manolete enfrenta o segundo Miura. Tem o nome de Pimpi. Mas é um bicho reservado. Manuel recorre a adornos, toca-lhe o chifre, acaricia-lhe o testuz, aplica-lhe uma estocada curta. Ainda é a sua tarde…
‘El toro que mató a Manolete’
«Manolo Manolete, andalou, marin breton/Manolo Manolete, torero en costume rouge et or/Manolo, tu promènes aux remparts tes remords/Aux arènes, tu entraînes, tu entraînes ton désir d’amour et de mort», cantou depois Vanessa Paradis. Sai dos curros o quinto Miura. O seu nome é Islero e pesa 250 quilos. Fica maltratado pelos picadores e pelas bandarilhas de Ramón Atienza. Exibe um ar derrotado mas os olhos fervem-lhe, as íris negras por entre os riscos vermelhos das córneas, Manolete faz uns passes de tenteio e uns derechazos imponentes. Depois perfilou-se a pouca distância da besta, enrolou a muleta e foi arrastando o pé esquerdo à medida que caminhava em sua direção. A morte, sibilina, tinha-o filado. O touro prende-o pelo terço da perna direita, ergue-o um palmo acima da areia, atira o seu inimigo de cabeça para baixo. Manolete leva a mão à ferida. Está pálido como o fantasma que não tardará a ser. Assistentes carregam-no para a enfermaria pisando regueiros de sangue.
A enfermaria da praça é palco do drama. Alvaro Domecq apressa-se a oferecer-se quando anunciam que a transfusão é fundamental. A hemorragia é tão abundante que gera confusão entre os médicos. Procura-se o dr. Luiz Jimenez Guinea, o mais famoso cirurgião dos toureiros. É um cabo da Polícia Armada que acaba por se descobrir compatível. Manolete abre os olhos turvos e pergunta:
- A minha mãe?
Nem sol nem sombra. Escuridão completa.
Depois da primeira intervenção segue para o Hospital Provincial. As horas decorriam. O dr. Luiz Guinea demorou a chegar. Mas a culpa não foi dele.
Dona Maria das Angustias, a mãe de Manuel, estava em San Sebastian com a filha Tereza e duas netas. Recebeu telefonemas dúbios. Todos tinham medo de lhe dar a notícia. Desconfiada, meteu-se num automóvel e rumou a Linares.
Manolete luta pela vida. Tem sede. Pede água mineral. Trazem-lhe Insalus e ele brinca com voz apagada: - Veneno?
Prefere Mondariz. Até em momentos derradeiros as marcas travam as suas guerras.
São três e meia da manhã do dia 29. Ainda está suficientemente lúcido para questionar: - O touro morreu da estocada?
Confirmaram. Um sorriso débil. O último.
O dr. Tamanes e o dr. Guinea traçam o diagnóstico definitivo: a haste do touro entrara no ângulo inferior do Triângulo de Scarpa, ou trígono femoral, na zona súpero-anterior da coxa humana. O rasgão media-se em dois centímetros de cima para baixo e de dentro para fora. Destroçara fibras musculares, rompera a veia safena, contornando a artéria femoral numa extensão de cinco centímetros. Havia outro rasgão de cerca de quinze centímetros. Mais uma transfusão. A quinta, como o quinto foi Islero. Nada mais podia salvar Manolete. - Não sinto a perna direita!, arrancou num grito.
- Não sinto a perna esquerda, soprou num murmúrio.
- Don Luis, non veo… São cinco horas da manhã em ponto. A partir daí foi só silêncio…