Passaram cinco anos desde que foi descoberto o primeiro caso de covid em Portugal…
Passaram cinco anos sobre os primeiros casos que foram conhecidos em Portugal. Foi no dia de 2 de março que tivemos conhecimento dos primeiros dois casos em Portugal e a pandemia foi decretada pela Organização Mundial da Saúde, poucos dias depois, a dia 11 de março. Anteriormente já tinha sido considerado uma emergência a nível internacional e estivemos assim até maio de 2023.
Parece que foi noutra vida…
Parece que foi realmente há muito mais tempo porque entretanto aconteceram muitas outras coisas a nível global e tudo isso evoluiu com uma grande rapidez, nomeadamente a questão da guerra na Europa que aconteceu há três anos e ainda estávamos em emergência de saúde pública internacional. Mal tínhamos tido tempo de fazer um olhar mais frio para ver o que tínhamos aprendido ou não com a pandemia, o que se tinha passado, a troca de experiências entre as pessoas e organismos e já estávamos com outros problemas, com outras crises, com outras preocupações e isso também foi relevante para parecer que a pandemia aconteceu há muito mais tempo do que de facto aconteceu.
Sente que há um mundo antes e depois da pandemia? As pessoas foram obrigadas a mudar os seus hábitos e até um bocadinho a mentalidade…
Creio que nos primeiros anos da covid, sobretudo durante todo o ano de 2020 e de 2021, foram anos muito intensos e de grandes mudanças, em que a a maior parte das pessoas – para não dizermos todos – vivia coisas que nunca tínhamos vivido, nomeadamente a questão dos confinamentos, as medidas de distância social e nesses anos aconteceram coisas que mudaram radicalmente a nossa rotina. E provocou um acelerar de uma série de coisas, até da nossa capacidade de nos adaptarmos porque tivemos uma grande capacidade de nos adaptar. Adaptámo-nos aos confinamentos, ao teletrabalho, a novas formas de nos relacionar, à escola à distância e a outro ritmo de fazer compras. Tudo isso foi diferente e evoluiu muito, concentrado principalmente nos dois primeiros anos.
E surgiram palavras e conceitos novos, como resiliência…
Exatamente. Surgiram muitas palavras novas, como resiliência, variantes. A partir de uma certa altura, toda a gente começou a falar em variantes, em confinamento. Houve um vocabulário que foi criado, assim como toda uma nova experiência que cada cidadão viveu de acordo com a sua própria realidade pessoal, familiar, laboral que nos fez alterar a rotina e o dia-a-dia, adquirimos hábitos novos, abandonámos temporariamente outros e depois parece que tudo voltou a 2019. Aparentemente terá voltado, mas creio que não voltou. Foram anos muito intensos, nada voltou para trás. De qualquer maneira, o tempo teria sempre de passar, houve foi aqui uma vivência mais intensa de experiências e houve uma grande capacidade de nos habituarmos a novas regras. Claro que depois passámos por fases em que estávamos cansados dos confinamentos, das restrições, do isolamento. Mas foi, de facto, uma fase muito intensa nas nossas vidas.
Já admitiu que a adesão da população às recomendações das autoridades “foi uma coisa absolutamente única de civismo e de participação social”. Ficou surpreendida? Esperava maior resistência?
Não tínhamos forma de comparar. Nada tinha acontecido de parecido nas nossas vidas em comparação com este acontecimento. No dia em que o Presidente da República decretou, pela primeira vez, o estado de emergência, a 11 de março ninguém fazia ideia de qual seria o comportamento dos cidadãos nacionais. Já tínhamos visto isso em outros países, como na China com os seus grandes movimentos de confinamento com milhões de pessoas em pleno Ano Novo chinês confinadas e sem poderem viajar, depois a Itália. Lembro-me de ver o Papa no Vaticano a dar missa completamento sozinho. Já tínhamos o exemplo desses países, em que a população tinha aderido a essas medidas de forma ordeira, voluntária e com grande participação cívica. Em Portugal, isso também aconteceu e aconteceu de forma absolutamente exemplar e extraordinária, porque não há controle de uma doença destas sem a participação dos cidadãos. E os cidadãos adeririam, ficaram em casa, organizaram formas novas de trabalho, foi tudo uma aprendizagem, muito intensa, mas extraordinariamente exemplar, o que permitiu que Portugal e outros países tomassem medidas de afastamento, ganhando tempo à pandemia até que fosse desenvolvida, fabricada e distribuída uma vacina. No fundo, estas medidas serviram para retardar a propagação da doença e foi muito importante a forma como os cidadãos aderiram a orientações que lhe eram dadas, nomeadamente ao nível técnico de boas práticas para retardar as cadeias de transmissão, interromper a doença sempre que fosse possível e evitar mais casos, mais internamentos, mais mortes, mais sequelas.
Vários psicólogos chamaram a atenção para o impacto que os confinamentos tiveram principalmente juntos dos mais jovens e das pessoas mais idosas…
Praticamente todo mundo fez da mesma forma, mesmo que em períodos ligeiramente diferentes porque a doença não se propagou, nem evoluiu da mesma forma em todos os países ao mesmo tempo, mas todos os países, de um modo ou de outro, recorreram a estas medidas porque, na altura, não havia vacinas, não havia medicamentos, nem havia informação total e completa sobre a forma como este vírus se propagaria, nem a importância que as variantes foram tendo. No entanto, é sempre assim em todas as pandemias. Quando não há outros recursos recorre-se àqueles que se chamam de medidas públicas não farmacológicas. Estes confinamentos ou estes isolamentos são o expoente máximo para cortar cadeias de transmissão, isolando as pessoas umas das outras e evitando o contágio, pois era isso que estávamos a falar que era o risco de passar de uma pessoa para a outra. Em relação à forma como alterou as nossas vidas, creio que as pessoas mais novas – crianças e jovens – têm uma grande capacidade de recuperação, de regeneração e acontece-nos tantas coisas na vida. Na minha opinião, terá sido mas dramático para as pessoas mais idosas porque já não têm uma expectativa de vida tão grande à sua frente e que perderam devido ao isolamento uma fase das suas vidas em idades já muito avançadas, em que, por vezes, ficaram afastadas da sua família mais direta, outras vezes tiveram um contacto de um familiar mais direto e não com outras pessoas. Do ponto de vista de não recuperação ou de regeneração parece-me mais penalizador para os mais idosos do que para os mais novos. É evidente que têm sobressaltos na sua vida mas depois têm oportunidade de recuperar, de regenerar. Não me parece que tenha havido danos irreversíveis. Claro que o tempo passa e o tempo transforma-nos, mas durante a pandemia tudo foi mais intenso.
Foi o principal rosto de combate à covid e entrava todos os dias na casa dos portugueses a fazer o balanço diário da pandemia. Sente que foi uma responsabilidade acrescida?
Estava num cargo, em que a Direção-Geral da Saúde tinha uma responsabilidade no seu papel técnico ou normativo de orientações, em temos de saúde pública para a população ou para grupos populacionais. Mas isso é o que acontece habitualmente na vida da Direção-Geral da Saúde, o que foi completamente diferente foi a intensidade e a rapidez com que tudo isto evoluiu e nunca houve uma comunicação tão intensa, tão variável, tão volátil como naquela altura. E foi completamente diferente. Trabalhava em saúde pública desde 1997. Passei por imensas crises de saúde pública. Já tinha passado pela pandemia de gripe A, em 2009, pela SRAS – pneumonia atípica – em 2003, pela gripe aviária, em 1997, pelo Ébola, por muitas, muitas crises, mas nenhuma teve esta intensidade, nem esta rapidez de evolução, nem estes grau de incerteza. Por isso, tudo nesta pandemia foi de maior magnitude e de maior impacto social, de maior impacto económico, além do impacto obviamente na nossa saúde física, mental e na nossa saúde social, enquanto indivíduos coletivos e de sociedade. Foi um período muito intenso e incerto, em que tudo acontecia praticamente em direto, íamos tendo notícias que vinham de todo o mundo através de múltiplos canais de informação de outros países e estávamos todos a aprender em direto. Isto é, a ver o que se passava em direto e a comparar países uns com outros, às vezes, as realidades não eram completamente comparáveis, mas tentávamos aprender uns com os outros para também perceber o que resultava melhor, e o que resultava menos bem. Foi um longo processo de aprendizagem, mas volto a dizer: os cidadãos foram absolutamente exemplares.
Nunca pensou em ver aquela imagem de ruas desertas em todo o país…
Não. Nunca pensaríamos que isso pudesse acontecer. Eram imagens que víamos nos filmes nos dias a seguir a uma grande catástrofe. Muitas vezes, nuclear. Eram imagens inimagináveis. Aliás, essa imagem de Wuhan, na China, marca toda a evolução da pandemia, porque no dia 23 de janeiro de 2020, as autoridades de saúde chinesas fazem o chamado lockdown em Wuhan começam por encerrar a vida a 18 milhões e vai-se propagando até abranger uma população da ordem dos 50 milhões de pessoas, em que vemos a China, um país super povoado em pleno Ano Novo chinês com as ruas das cidades absolutamente desertas. Obviamente que isso tem um impacto enorme na nossa perceção do que se poderia estar a passar. Essas imagens marcaram a nossa vida e depois obviamente vimos isso nas nossas cidades, nas nossas vidas, no nosso dia-a-dia. Lembro-me de ir trabalhar e de não ver ninguém. Fazia a viagem de casa para o trabalho e depois ao contrário e de não ver ninguém.
Não soube o que era o isolamento…
Não. Não consigo sequer imaginar o que foram dias consecutivos de ficar retido em casa. Acredito que as pessoas que tenham ficado em isolamento até tenham sentimentos contraditórios e que foram mudando ao longo dos dias, em que umas fases poderão ter sido agradáveis, outras menos agradáveis. Mas essa noção não tenho. É difícil de perceber como terá sido. Vou partilhar uma pequena história: Uma pessoa com um cargo no setor privado pergunta-me: ‘Senhora diretora-geral lembra-se do tédio que era a nossa vida?’, respondi: ‘Não, me lembro não”. Mas dá para perceber como cada um de nós passou pela pandemia, teve a sua vivência e aquela pessoa passado aqueles anos até se esqueceu que eu não tinha propriamente tédio, até pelo contrario, tinha muito stresse.
Os primeiros meses terão sido mais difíceis. Portugal não tinha havia máscaras, nem álcool gel, nem ventiladores. Tivemos de andar a correr atrás do prejuízo?
Voltamos à mesma história. Não fomos só nós. Estávamos todos os dias no Ministério da Saúde a fazer um briefing diário para ver e fazer o ponto de situação no nosso país, na Europa, no mundo, como é que estava tudo a evoluir, os casos, a gravidade, como é que estavam os equipamentos. Fazíamos o ponto da situação ao dia para sabermos como era a evolução da pandemia em todos os continentes e Portugal estava como estavam os outros países. Tenho ideia que nenhum de nós sabia o que era álcool gel até àquela data. Sabíamos o que era álcool, o que era água e o que era sabão, mas álcool gel foi mais um termo novo que apareceu nas nossas vidas. E do ponto de vista profissional e de quem estava a fazer a preparação ao nível dos serviços, dos hospitais, todos os dias estávamos a fazer uma espécie de diagnóstico. Estávamos a recolher informação, as análises, os exames para termos um diagnóstico e para sabermos que medidas podíamos aplicar. Nos primeiros tempos foi esse caminho de diagnosticar a situação, de perceber o que se estava a passar nos outros sítios, saber quais eram as características do vírus e o que a microbiologia dos laboratórios nos dizia. Depois assistimos ao aparecimento de testes. Não nos podemos esquecer a fases dos testes, das zaragatoas, tudo isso foi uma fase muito, muito intensa. Simultaneamente foi diagnosticar e tomar medidas, foi feito tudo em simultâneo e com um grau de incerteza grande, sempre com a preocupação de fazer bem e de não causar danos porque as medidas foram tomadas assim e não foi só Portugal. Era Portugal, Espanha, Itália, Reino Unido e outros países fora da Europa. Todos os países estavam na mesma situação em fases ligeiramente diferentes, conforme a propagação do vírus e as características dessa propagação.
Nunca pensou em desistir deste combate?
Tinha uma missão a cumprir, os dias eram muito intensos. Houve uma altura, não na fase inicial, em que havia um cansaço físico. Trabalhávamos muitas horas, dormíamos pouco. Quando me deitava pensava por uns segundos antes de adormecer – mas por estar muito cansada – em desistir, mas no dia seguinte acordava absolutamente determinada em continuar a minha missão, enquanto me considerassem útil. Tinha muito essa noção: se em determinada altura, as minha hierarquias achassem que não estava a ser útil não teria obviamente continuado, mas aquela sensação de não continuar não a tive. Tinha um sentido de missão de prosseguir, de fazer, de cumprir o melhor que pudesse. Mas é claro que tinha horas e minutos de mais desânimo, principalmente à noite quando estava cansada porque foram muitos, muitos dias. Às vezes, nem sequer tinha a noção do dia que era, tudo fica diluído, um dia era igual ao outro e todo esse trabalho que tinha de ser feito, de ver os números, ver a progressão da doença, a progressão dos meios de combate à doença: as máscaras, o álcool gel, os testes, as camas, as unidades de cuidados intensivos, os médicos, os enfermeiros, ou outros parceiros que colaboravam connosco. Era uma rotina pesada, sempre diferente, mas sempre dentro dos mesmos parâmetros de tentar fazer o melhor todos os dias. Essa era a nossa grande preocupação, não tenha a mínima dúvida que os profissionais de saúde, independentemente do papel que tinham, era o que tentavam fazer em cada dia. E a par dos profissionais de saúde há todos os outros profissionais que fizeram o seu trabalho diariamente o melhor que conseguiram para mantermos a nossa vida dentro de padrões aceitáveis e acho que conseguimos.
A tal nova normalidade…
Era um novo normal. E foi também essa capacidade de adaptação que foi verdadeiramente extraordinária, obviamente que houve fases em que nós tivemos de adaptar a uma realidade diferente e isso tem altos e baixos, não são períodos perfeitos. Mas não houve um serviço básico que nos tenha falhado. Foi uma capacidade de adaptação verdadeiramente extraordinária, a tal resiliência.
Se voltasse atrás faria alguma coisa de forma diferente?
É evidente que voltar para trás, sabendo o que sabemos agora, não tomava as mesmas decisões. Acho que ninguém seria capaz de afirmar que se pudesse andar para trás na sua vida tomava as mesmas decisões com a informação que tem à data. Não tomaria as decisões da mesma forma. Agora temos de ver as circunstâncias em que as decisões foram tomadas, era com a informação que havia, com os dados que tínhamos, com os equipamentos que havia, com o nível de stresse nosso e da população que existia em determinada altura e, portanto, há muitas coisas que poderiam ter sido feitas de maneira diferente, provavelmente melhor, mas temos de contextualizá-las à data em que essas coisas aconteceram. E, volto a dizer, a pandemia aconteceu nos primeiros tempos em direto, as coisas iam acontecendo, nós deitávamo-nos com uma realidade e em poucas horas apareciam outras informações, e de manhã eram diferentes. E nem sempre para maiores certezas ou para maior segurança. Às vezes, parecia que o vírus estava a ter outras características, parecia que estava a propagar-se mais depressa, parecia que estava a ser mais grave, parecia que estava a atingir mais os idosos ou mais os jovens e portanto havia ali muita informação que nos ajudava a tomar decisões que não era uma informação perfeita e que era muito volátil, não estava consolidada.
Mas manteria, por exemplo, os restaurantes ou outro tipo de serviços fechados?
Imagine que sabíamos o valor do R que começou a ser falado mais para a frente e que nos dava a informação da velocidade que o vírus se propagava era baixo e que a doença não era grave se calhar podíamos dizer que não precisávamos de ser tão restritivos, porque não se propagava com tanta facilidade. Nesse cenário, poderíamos ter avançado com algumas restrições mas não muito intensas. Diferente é termos valores de transmissibilidade muito elevada e de gravidade da doença muito elevada – número de pessoas em unidades de cuidados intensivos, ventiladores, pessoas a morrer -, tudo isso são variáveis que contam para o processo de decisão e que contam para a tomada de medidas. As medidas equivalem à forma como se trata de um doente, não tratamos um doente exatamente da mesma maneira só porque tem uma determinada doença, depende das características dessa doença, em termos de intensidade e em termos de gravidade, em que o grau máximo da gravidade é a morte. E o que digo é que é muito difícil pensar em como é que teria sido se naquele dia determinado tivéssemos todos os parâmetros, todos os exames feitos, todas as análises feitas, todos os resultados. Nesse caso, poderiam ter sido tomadas medidas ligeiramente diferentes, mas para isso precisaríamos de ter informação sobre o comportamento do vírus. Quem manda numa pandemia, primeiro são os vírus, depois são os cidadãos, depois os profissionais, mas aquele vírus é quem determinava as medidas e, na dúvida, se achamos que tem elevada capacidade de ser letal e de matar as pessoas que infeta então temos de ser muito rigorosos com as medidas. E se se lembrar do que aconteceu em Itália, percebia-se que era um vírus altamente letal. Vimos isso em Itália e antes de termos acesso a esses dados em Portugal já calculávamos que era um vírus muito perigoso. E, mesmo antes dos confinamentos, vou ser sincera, a minha mãe já estava confinada. Pensei, a minha mãe não é nova e se tiver uma infeção por um vírus que aparenta ser tão grave pode não sobreviver. As medidas foram sendo todas tomadas de acordo com o que se sabia, na altura. E também lhe digo que sabendo o que sabemos hoje poderiam ter sido diferentes, mas isso é como tudo na vida se soubéssemos, na altura, o que viemos a saber mais tarde se calhar as coisas seriam diferentes.
E a pandemia matou cerca de 29 mil pessoas, em Portugal…
Sim, em números redondos. Mas o vírus continua a matar pessoas porque é um vírus sazonal. Terão morrido em todo o mundo sete milhões de pessoas e o nosso número não foi muito diferente do que se passou nos vários países, atendendo a que temos uma estrutura demográfica muito envelhecida e que os idosos eram muito vulneráveis em relação à gravidade da infeção. Estes dados eram expectáveis e todos lamentáveis porque estas pessoas poderiam ter tido oportunidade de continuar as suas vidas se não tivessem sido afetadas por um vírus. Muitas delas, como se sabe, eram idosas, mas isso não tira o valor da vida. Mas foram óbitos atribuídos à covid, por infeção covid e continuam a morrer todos os dias porque, como disse, o vírus tornou-se habitual junto da espécie humana.
Apesar de muitos terem a ideia que desapareceu…
Não desapareceu. O vírus da pneumonia atípica de 2003 foi possível de conter, não originou uma pandemia e desapareceu, mas os vírus que dão origem a pandemias instalam-se, nós é que vamos ganhando resistência e vamos ganhando imunidade, mas está cá.
Até que chegaram as vacinas e que funcionou como um balão de oxigénio…
As vacinas foram o melhor que nos poderia ter acontecido, a nós e à humanidade. Foi muito rápido o desenvolvimento e a comercialização das vacinas. Nas pandemias, todas as pessoas acabam por contrair a doença e vão ganhando imunidade natural e ao fim de uns anos, a maior parte da população – para não dizer toda – adquiriu contacto com o vírus e foi desenvolvendo anti-corpos. O que fazem as vacinas? Dão imunidade e isso é a grande mais-valia das vacinas e a 27 de dezembro, ainda de forma incipiente, foi dada a primeira dose em Portugal. E todos tivemos na Europa acesso às vacinas, através do mecanismo europeu de vacinação que nos permitiu regressar às nossas vidas.
Apesar das vozes críticas. Estava à espera de tantos movimentos contra o plano de vacinação?
Em Portugal a vacinação é fortemente incentivada, é fortemente aconselhada, mas não é obrigatória, nem a da covid era obrigatória. As pessoas que se vacinaram, vacinaram-se voluntariamente. No entanto, houve pessoas que sentiram que tinham de mostrar a sua opinião contra a ciência e que tinham uma opinião de não sustentação científica. Mas a grande maioria da população aderiu e isso fez toda a a diferença não só em Portugal, mas em todo o mundo. E permitiu que, ao fim de dois anos de pandemia, começássemos a entrar numa fase de acalmia, em que os casos que apareciam já eram muito atenuados pela imunidade natural, pela imunidade vacinal.
Mas para que o plano de vacinação tivesse sucesso foi preciso chamar o vice-almirante Gouveia e Melo…
Toda a gente fez o seu trabalho. Agora há uma coisa que tenho de dizer em relação à vacinação: Portugal é dos países que tem programas de vacinação mais bem sucedidos em todo o mundo. Temos um histórico de vacinação e de aceitação da população que tem um capital absolutamente determinante para que o processo de vacinação covid corresse tão bem em Portugal, em que foi um dos melhores do mundo. Tínhamos e temos um programa nacional de vacinação que é gratuito, universal, temos um esquema vacinal determinado e temos todo esse know-how de vacinação montado. Em 1965, a primeira campanha de vacinação contra a poliomielite, em Portugal, ocorreu numa altura em que não havia quase médicos nem rede. E num ano vacinaram-se mais de três milhões de crianças contra a poliomielite. Temos essa tradição de vacinar desde 1965 e passámos a ter um serviço altamente profissionalizado com as doenças quase todas controladas em Portugal, temos dos melhores valores de vacinação do mundo. Não nos podemos esquecer que não partimos do zero na vacinação, tínhamos uma grande organização, tínhamos pessoal muito treinado e depois tivemos a grande capacidade de mobilizar autarquias, Proteção Civil, bombeiros, além de nós profissionais de saúde. Depois houve a task force, mas temos de olhar para isto não como uma coisa isolada, mas algo que veio de passado já muito bem organizado, em que depois foi dada continuidade – obviamente com regras, com empenho e, é por isso, que se chamava task force: para ter uma missão de fazer uma determinada coisa, num determinado tempo, mas tínhamos um histórico muito bom.
Já reconheceu que a próxima pandemia será mais complexa, rápida e fraturante…
Vamos ter uma nova pandemia, não temos a mínima dúvida. No século XX tivemos três pandemias e foram todas de gripe. Uma que foi a gripe espanhola, uma moderada de gripe asiática e uma leve que foi a gripe de Hong Kong. No século XXI tivemos a gripe A que pensávamos que vinha do Oriente, mas acabou por vir do continente americano e acabou por ser muito mais leve do que estávamos à espera. Nessa altura, estávamos à espera de um vírus com características muito agressivas, que acabou por se concretizar. E agora tivemos a covid que se tornou pandémica, portanto, não sabemos quando é que será a próxima. Há este caráter imprevisível, não sabemos qual vai ser o vírus, não sabemos se vai ser novamente um vírus respiratório ou quais serão as suas características, mas o que sabemos? Sabemos que cinco anos depois da nossa pandemia do ponto de vista social vai ser muitíssimo mais complexa, as fontes de informação são múltiplas, interagem de forma diferente e de forma também mais acentuada e aquele género determinado de sucesso das medidas e do controlo da pandemia que passa pelos cidadãos poderá não ter o mesmo sucesso.
Corremos o risco de haver menor aceitação?
Não sabemos. Mas imagine que o próximo vírus é muito letal, que apresenta logo de início uma grande capacidade de matar, então o fator medo, que é legítimo, fará com que a maior parte das pessoas aceite, outra vez, um confinamento. Se o vírus não for letal, provavelmente não. Há aqui muitas variáveis a que teremos de nos adaptar, mas aprendemos muitas coisas.
Já estamos mais bem preparados?
Aprendemos muitas coisas, aprendemos, pelo menos, a viver e a lidar com esta imprevisibilidade e a ter mecanismos para captar informação de forma mais rápida, para fazermos uma análise desta informação ainda mais rápida e sabemos quais são as nossas capacidades de mobilizar recursos e se for necessário sabemos que com boa comunicação, com transparência e com clareza relatar o que se passa aos cidadãos que estão ativamente implicados. Isso é uma lição que ninguém nos pode tirar. Os cidadãos vão fazer parte da solução e se quiserem exercer o seu direito de cidadania podem não querer medidas muito restritivas porque terão chegado à conclusão que o vírus não terá um grau de agressividade assim tão grande. Acho que temos que nos preparar para uma pandemia, não sabemos quando. Vai depender sempre do vírus e das suas características, da capacidade de resposta dos saúde, sociais e de toda a infraestrutura para a nossa vida funcionar, mas também vai depender muito das atitudes e das capacidades dos cidadãos de se adaptarem às medidas que forem necessárias para minimizar o risco. No fundo, trata-se sempre da mesma coisa: identificar riscos, gerir riscos e comunicar riscos. Isso é o que se espera numa próxima pandemia e que se faça melhor do que esta última porque estamos sempre a aprender. Mas o vírus vai ser muito determinante na próxima pandemia, na forma como se pai propagar, a velocidade, a gravidade, etc.
E geriu esta pandemia quando estava a enfrentar um cancro. Deu-lhe outra sensibilidade?
Tirei o curso de Medicina e comecei, como toda a gente começa, que é ser médica clínica, atendia doentes e tive sempre uma grande preocupação na minha vida porque aprendi com mestres que assim me ensinaram: a doença é uma situação de fragilidade e as pessoas não precisam de ser mais angustiadas, mais amedrontadas, mais assustadas do que já estão com a sua característica de doente. No primeiro dia em que tive de comunicar uma coisa sobre a pandemia tinha dois pensamentos: vou dizer a verdade tal como sei à data, vou ser completamente transparente e honesta nesse aspeto, mas vou dizê-lo como se estivesse a falar para um doente, sem o assustar ainda mais do que já estava ou, se quiser uma analogia, falava como se estivesse a falar para a minha mãe. Tinha uma grande preocupação e que não estava relacionado com o facto de estar numa situação de vulnerabilidade. Tinha uma grande preocupação em pensar que estamos todos assustados, temos uma pandemia que atinge todo o mundo, potencialmente todas as pessoas, em todo lado, em que algumas infelizmente vão morrer e outras vão ficar com sequelas. E, portanto, tudo o que pudesse fazer dizendo a verdade tal e qual à que souber à data, não as preocupar, nem angustiar ou amedrontar ainda mais do que já estão, contribuindo com medidas que possam minimizar o risco, então é assim que vou fazer. E isso não teve a ver com a minha fragilidade pessoal mas com a minha forma de estar na vida. Foi assim que fui educada na escola de Medicina e depois com os meus mestres para que o médico não faça parte do sofrimento e que a comunicação fosse feita com a maior serenidade possível.