Uma das coisas que mais choca na realidade, nas narrativas políticas e nas geometrias variáveis das leituras sobre as mesmas é o posicionamento de ilusão de boa parte dos protagonistas políticos de turno, entre o apego à sua sobrevivência política e o foco em ideias, projetos e iniciativas desfasadas do interesse geral. Neste triunfo do umbigo, mais ou menos, evidente, incomoda a ilusão de alguns, demasiados, com o sentido útil do exercício para as comunidades, as nações e as relações internacionais. Esta espécie de elegir da eterna ilusão está a destruir a coesão das comunidades, o compromisso dos cidadãos com as instituições democráticas e com o seu funcionamento, enquanto gera realidades cada vez mais complexas, exigentes e insustentáveis que não se compadecem com as tradicionais respostas ideológicas ou de oportunismo.
É esta a maionese em que se move Luís Montenegro, o seu governo, a sua minoria e os protagonistas políticos contrários.
Começamos pela ilusão de querer afirmar de forma incólume um programa político sem maioria parlamentar, comportando-se no registo, no posicionamento e nos enunciados como se a tivesse, enquanto assistem, quase impávidos e serenos, à continuação da implosão de serviços públicos fundamentais, com destaque para o Serviço Nacional de Saúde.
Prosseguimos pela ilusão da substituição partidária das chefias das estruturas do Estado, por apaniguados mais sintonizados com objetivos políticos, como se a mudança de pessoas, por si só, fosse garantia de alguma reposição de decência no funcionamento dos serviços públicos, cada vez mais distanciados fisicamente das pessoas, com telefonemas prévios, marcações prévias e outras dilações de respeito pelo cidadão no acesso aos mesmos.
Terminamos, por agora, na ilusão da imaculada intenção de prosseguir o exercício político como se nada se tivesse passado, numa concentração de casos e casinhos, concluída com um tiro no porta-aviões da credibilidade do primeiro-ministro, investido, apesar disso, num triste fato de carnaval entre o fanfarrão e o Calimero, sem noção do que está em causa, como o atesta a ameaça de apresentação de uma moção de confiança, apenas abandonada pelo serviço do PCP ao grande capital com o anúncio de uma moção de censura depois de uma abstenção recente em similar iniciativa do Chega sobre o mesmo tema.
Montenegro entrou no domínio da ilusão do bolor. Pode limpar ou tentar limpar a mancha na sua credibilidade de uma situação inaceitável de promiscuidade entre a política e os negócios em pleno exercício de funções governativas, mas a mácula da limpeza será mais tarde abalada pelo reaparecimento regular das nebulosas em que se colocou. Pela opacidade da falta de esclarecimento, pelo atabalhoado registo das explicações e pela inaceitável fuga para a frente a brincar com os destinos do país, num momento de grande complexidade na Europa e no mundo. A mancha do bolor voltará sempre para o atazanar, sendo uma grilheta de todo e qualquer exercício político.
É totalmente ilusório considerar que a situação concreta em que se colocou, de misturar família com negócios, política com negócios e outras misturas de difícil aceitação legal e popular, poderá ser superada pessoal e politicamente, num momento em que a democracia parece estar sob ataque, mesmo de quem se proclama democrata. É claro que os titulares de cargos políticos, algo transitório nas repúblicas e nas democracias, têm direito a ter vida além do exercício, antes e depois, mas durante? É evidente que neste processo, há uma falha total das instituições democráticas, no escrutínio da declaração única de rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos de Luís Montenegro. O governo tomou posse a 2 de abril de 2024, supostamente terão entregado as declarações únicas até 2 de junho de 2024. Em 8 meses, a Entidade para a Transparência não teve oportunidade para escrutinar, questionar, exigir esclarecimentos complementares e na emergência de suspeita comunicar ao Ministério Público situações de dúvidas sobre a legalidade? Faltou vontade? Faltam meios?
A verdade é que se o titular de cargo político tivesse tido mais exigência com a ética e observância da lei e a Entidade para a Transparência tivesse funcionado, as instituições democráticas estavam a salvo de mais este sobressalto de degradação.
É claro que no passado outros houve com complacências do universo do grupo Solverde sem o alarme social e político da atualidade.
É claro que a falta de transparência toca mesmo quem em funções de Estado verbaliza exigência para os outros, depois do que fez no caso das gémeas e de esconder na página da Presidência da República quem são os assessores da Casa Civil.
É clara e evidente as modelações de comportamento da presidência da República e do sistema judicial em função dos dados que são do conhecimento público.
Por mais esforço de ilusão face às circunstâncias concretas da atualidade, no país, na Europa e no mundo, se queremos ter instituições democráticas, titulares políticos decentes e cidadãos em pleno gozo dos seus direitos e deveres, precisamos de fazer muito mais, exigir muito mais e ser intolerantes com o desfoco do interesse geral. Persistir na ilusão é garantia de gangrena do sistema democrático.
NOTAS FINAIS
A INSUSTENTÁVEL MINISTRA DA SAÚDE.Sem resultados na melhoria dos serviços de saúde, indiferente aos indícios de incompetência política do ministério no funcionamento do INEM com registo de falta de resposta de emergência e mortes e prolixa na nomeação em barda de novas chefias, aproveitando-se da congénita falta de definição sobre o que são cargos de confiança política, a Ministra da Saúde é já parte do problema da saúde em Portugal. Não antecipa, não responde e não se vislumbra preparos eficazes do futuro.
A NOVA ORDEM DOS VELHOS TIQUES.É preciso agilizar músculo e capacidade de resposta aos desafios da nova ordem instalada por Putin e por Donald Trump suportada em antigos tiques, que eram conhecidos e contaram com a nossa complacência coletiva. E se alguns não estiverem para aí virados, na União Europeia, na Europa e no Mundo, é seguir com que se pode sintonizar com uma resposta eficaz a renovadas necessidades de defesa, de competitividade e de coesão, se necessário recuperando o Reino Unido e devolvendo exigências. Se a Ucrânia não pode ter tropas da NATO no seu território, porque pode a Bielorrússia ter tropas de Moscovo ao lado de um país da NATO, a Polónia?