A ex-secretária de Estado da Energia defende a aposta na prospeção e exploração de matérias-primas, nomeadamente de lítio, mas admite que devíamos investir em ter no nosso país toda a cadeia de valor. E chama a atenção para o facto de na Europa existir padrões de sustentabilidade ambiental e social muito mais estritos face a outros continentes e países, nomeadamente a China.
Qual a importância do lítio? Há muitos que vêm como uma tábua de salvação, mas há quem fale em ameaça ambiental…
Não é a salvação do mundo, nem é o demónio. Na realidade, é uma matéria-prima, como muitas outras, que precisamos para o nosso dia-a-dia. Só usamos dois tipos de recursos, os minerais e os bióticos e precisamos de ambos para o nosso modo de viver. Há mesmo quem diga que estamos a passar de uma época que era intensiva, em termos de energia, para uma nova era intensiva em materiais. À medida que vamos aumentando a eficiência energética dos processos vamos aceitando cada vez mais um número mais diverso de matérias necessárias para as tecnologias que estamos a devolver e o lítio aparece exatamente como um desses materiais, uma dessas matérias-primas. É considerado uma matéria-prima crítica e dentro das matérias críticas aparece como estratégica. O que isso significa? Uma matéria-prima crítica tem um contexto geográfico, nesse caso, na Europa, e é crítica em função de dois fatores que é o valor económico acrescentado que tem para os vários setores da economia e o risco do fornecimento. Ou seja, o risco que corremos de não conseguirmos abastecer as nossas cadeias de valor, como tivemos a experiência durante a pandemia, em que houve algumas disrupções da cadeia de valor que teve impactos muito grandes na economia. A Europa dentro deste conjunto – que tem uma metodologia e uma série de parâmetros, os Estados Unidos, por exemplo, têm outra forma de calcular – classifica algumas matérias-primas como críticas e outras não. E depois dentro das matérias-primas críticas, a Europa destacou as que são estratégicas que são aquelas que estão relacionadas com a transição energética e com o setor da defesa. Isto revela que temos um conjunto de matérias-primas estratégicas que são fundamentais para o setor da economia e que estão associadas à transição energética, às tecnologias limpas, e outras associadas à indústria da defesa. Neste conjunto de matérias-primas estratégicas, Portugal produz três: o cobre devido à importância que tem – apesar de ter muita abundância e de não ter propriamente o risco de abastecimento, é um material essencial para toda a eletrificação –, o lítio por causa do impacto das baterias, dos computadores, mas sobretudo para a mobilidade elétrica. E depois a matéria-prima utilizada na indústria do armamento. O lítio é, de facto, uma dessas matérias-primas estratégicas que é importante para a nossa sociedade que está a apostar na descarbonização.
Mas quando se diz que estamos perante a quarta revolução industrial considera que é um exagero?
Acho que só ficamos a saber daqui a uns anos, mas penso que a quarta revolução industrial tem também a ver com as tecnologias digitais, com a inteligência artificial, com a manufatura avançada e com a sustentabilidade e eficiência energética. É certo que temos uma série de elementos tecnológicos novos, mas não se pode dizer que haja uma disrupção, isto vem na sequência da digitalização, da transição digital e da transição energética também. No entanto, há de facto novas tecnologias que integram agora a nossa sociedade e que contribuem para uma transformação muito importante da nossa sociedade. E não nos podemos esquecer que o lítio não é só utilizado nas baterias.
Há outras funcionalidades…
Sim, e o lítio já se produz em Portugal há muitos anos, não é novidade. Mas sendo um recurso geológico e pela sua natureza não aparece em todo lado, aparece apenas em algumas situações em que os processos geológicos contribuíram para que houvesse um enriquecimento de lítio.
É mais no Norte e no Centro do país?
Sim, e na Europa só aparece em quantidades relevantes em Portugal e na Sérvia. São os dois países que têm recursos desta natureza. Além das baterias e da mobilidade elétrica, o lítio já é usado e produzido há muitos anos para a indústria cerâmica, nos vidros cerâmicos, mas também é usado na indústria farmacêutica, por exemplo, para os tratamentos de distúrbios bipolares e psiquiátricos. Mas também é usado em ligas leves, como na metalurgia, nas ligas especiais para a aeronáutica aeroespacial devido à sua leveza e resistência, assim como para a indústria automóvel e para lubrificantes usados na indústria da aviação, na indústria automóvel e também a maquinaria. E até pode ser usado na indústria nuclear, em que há um derivado de lítio que é usado nos reatores nucleares. Ou seja, na realidade, as aplicações de lítio são muito mais diversas do que aquilo que as pessoas pensam e vai ser sempre usado para muitos outros fins, ou seja, não se vai esgotar, claro que agora as baterias são o grande impulso, mas na realidade a sua utilização é muito mais ampla e muito mais vasta em outros setores da economia. Portanto, faz todo o sentido podermos explorar esta matéria-prima.
Também há exploração de lítio na China e na América do Sul…
A América do Sul e a China são os dois grandes produtores. Praticamente toda a transformação e toda a refinação está na China. Já começa a haver também na Europa, mas até há pouco tempo, a China dominava completamente o mercado, apesar de não produzir toda a capacidade de lítio era quem tinha quase o pleno da refinação.
Acha que começámos em Portugal a olhar tarde para esta oportunidade ou para este “ouro branco”, como muitos dizem?
Nunca chamaria de “ouro branco”, chamaria de oportunidade, assim como temos o cobre, em que somos grandes produtores de cobre na Europa, mas é uma oportunidade que temos vindo a adiar. O processo tem sido demorado. Mas estes projetos são sempre muito demorados porque são complexos, requerem muitas etapas e estão também sujeitos ao enquadramento legal e a uma legislação bastante estrita. Ou seja, há muito passos a cumprir. Há um período longo em relação à parte da prospeção e da pesquisa. É preciso encontrar as reservas e tipicamente um projeto desta natureza demora muitos anos a desenvolver, requerendo um grande investimento.
E, mesmo depois de as prospeções concluídas, nem sempre é sinónimo de exploração…
É preciso um grande investimento inicial. Ou seja, é uma atividade com elevado risco, porque é preciso prospetar muito para encontrar realmente um alvo que tenha valor económico. Podemos encontrar vestígios em muitos sítios, mas isso não quer dizer que haja uma reserva e que esta seja economicamente explorável. Depois o próprio complexo mineiro também é um projeto que tem várias etapas e que demora bastante tempo até atingir a fase de produção. Temos sido bastante lentos, mas também porque há bastante desinformação e até contra informação, há movimentos quase negacionistas que se opõem a toda a atividade mineira, independentemente da sua natureza ou do seu benefício. E esses movimentos geralmente não entram em diálogo, não estão interessados em dialogar e, como tal, os processos são demorados e leva a que também haja alguma demora dos processos administrativos, dos processos de decisão. Mas isso não é único em Portugal, isso acontece mais ou menos em todo o lado. As pessoas gostam dos carros elétricos, gostam de telemóveis, gostam da tecnologia, mas estão longe de compreender o que é preciso para alcançar aqueles objetos que depois utilizam no dia-a-dia. As cadeias de valor são muito longas e perde-se o rastreamento de onde vêm aquelas matérias-primas e na Europa e nos países considerados mais evoluídos, estes movimentos do contra têm crescido bastante. É preciso dialogar, é preciso informar com transparência e rigor. E depois as empresas também têm de compreender que é preciso envolver as pessoas desde o início porque são sempre projetos que são interventivos ao nível do território, ou seja, a presença tem sempre um impacto no território. Só a presença de um grande número de pessoas em zonas onde normalmente não há muitas pessoas traz impactos que podem ter aspetos positivos e também negativos, naturalmente. Há sempre os dois lados da moeda.
Geralmente acenam com a criação de postos de trabalho…
Com postos de trabalho, com capacitação de pessoas e com atração de jovens. Geralmente esses projetos aparecem em regiões que, muitas vezes, já estão desertificadas do ponto de vista humano porque não havendo outras atividades económicas são zonas com pouca população. E isso vai também permitir desenvolver a economia, atrair jovens e fixar pessoas. Temos excelentes exemplos no nosso país em que isso acontece, como é o caso da Somincor e da Mina da Panasqueira, no Fundão, onde a presença de um projeto desta natureza trouxe novas atividades económicas para as regiões. Não se resume apenas à atividade mineira, mas a toda a economia que gira em torno de haver população. Além dos serviços, cria a possibilidade de criar outras indústrias e outras empresas de outras naturezas. Há um conjunto de atividades que se podem desenvolver, mas não só do ponto de vista económico, mas também do ponto de vista ambiental porque os projetos podem contribuir localmente para desenvolver não só a economia, mas também a proteção do ambiente. Por exemplo, a Somincor ajudou a criar a Reserva da Biosfera que convive plenamente com aquela atividade. Há a possibilidade de estas empresas não só contribuírem de forma positiva para a economia, mas também para o desenvolvimento social, para apoiar a proteção ambiental. Ou seja, podem também ter essa postura no território, não se restringindo apenas às suas atividades.
E para os projetos avançarem necessitam de ter um estudo de impacto ambiental…
Todos, sem exceção. A nossa legislação é muito exigente e os projetos mineiros têm de ser submetidos a licenciamento ambiental, tal e qual como qualquer outro projeto industrial, mas tem uma particularidade que os outros não têm e que muitas pessoas não sabem, é que, durante o seu período de vida, as empresas são obrigadas porque têm um contrato de concessão com o Estado – o Estado é concedente e a empresa do projeto não é dona do recurso, tem apenas um contrato com o Estado para fazer a exploração do recurso – e nesse contrato existe uma obrigatoriedade de estas empresas colocarem numa conta bancária uma proporção do seu lucro para garantir o fecho de mina. O que é que isso significa? Todos os projetos mineiros têm um plano de fecho de mina que pode ser a 10 anos, 20 anos, depende da dimensão da mina e do que está contratualizado e esse plano, aliás, é revisto com uma frequência que pode ser de cinco em cinco anos, por exemplo. E é revisto porque ao longo do tempo do projeto, a tecnologia vai evoluindo, mesmo em termos de boas práticas ambientais, e aquilo que hoje pode ser o ótimo pode não ser daqui a 20 anos e, como tal, o plano de fecho também vai evoluindo. Esse fundo garante que o plano de fecho de mina seja executado e é colocado sob a alçada do Estado. Ou seja, a empresa não pode mexer nessa verba e o Estado só liberta o fundo quando for para avançar com o plano de fecho de mina que pode ser de recuperação ambiental ou pode ter outras vertentes. É a garantia para que no fim haja verba suficiente para garantir que o território recupera e que é devolvido à população porque não há uma mina que seja infinita, o recurso vai-se esgotando. Não há nenhuma indústria química que tenha isto. Há o principio do poluidor/pagador, mas que conheça não há mais nenhum setor que tenha esta legislação que obrigue à criação deste fundo.
Acha que os protestos à volta da exploração dos projetos deve-se à falta de informação?
O descontentamento e as manifestações é um bocadinho relativo, vê-se algumas vozes muito vocais que atraem muito a comunicação social. E vê-se que há uma grande politização do assunto e gerou-se, em particular, à volta do lítio um grande movimento. Mas que não é exclusivo de Portugal, é um problema transversal a quase toda a Europa e até na Austrália que é um país muito mineiro. Por isso é que a Europa quer acelerar estes processos para garantir a nossa independência e até a nossa soberania, porque já vimos que uma grande parte dos conflitos que existem no mundo inteiro anda à volta da energia e das matérias-primas. Trump recentemente disse que queria acabar com a guerra da Ucrânia em troca das terras raras e não é por acaso que a Rússia quer aquele território. Em muitos dos conflitos, a razão que aparece não é essa, mas, muitas vezes, o que está por trás são interesses económicos relacionados com as matérias-primas e com a energia. E a Europa percebeu que ao ser totalmente dependente dos outros continentes, nomeadamente da China e dos EUA, quer em termos de energia, quer em termos de matérias-primas perde competitividade e pode até perder a capacidade de decidir sobre o seu próprio território, pondo em risco a própria segurança da Europa. Não podemos ser ingénuos, quem tem as matérias-primas domina o mercado. A China tem feito isso ao longo do tempo frequentemente. Por exemplo, em relação ao lítio inundou o mercado para fazer baixar o preço para tornar os nossos projetos inviáveis e para poderem continuar a dominar o mercado.
E em relação à China há menos preocupações ambientais face à Europa…
Não se sabe bem o que se passa na China, sabemos que tiveram alguns problemas, mas quanto mais próximo as matérias-primas tiverem da sua utilização menor será a pegada ambiental. Quando temos matérias-primas que andam a ser transportadas de um ponto para outro, do Chile para a China e depois da China para a Europa, toda esta logística tem imensas emissões de transporte. E enviar para a China para serem refinadas e depois para aqui para serem construídas baterias imagine a pegada ambiental que isso tem. Quanto mais próximos estivermos entre a exploração e o consumo final melhor é em termos de pegada ambiental. Independente de as práticas serem diferentes em várias partes do globo, o que faz mais sentido é serem exploradas o mais próximo possível do ponto de consumo. Além disso, na Europa temos padrões de sustentabilidade ambiental e social muito mais estritos do que a China e certamente do que de outros continentes, como da América do Sul ou da África, onde são exploradas uma boa parte das matérias-primas. Temos as melhores condições para termos os projetos mais sustentáveis do ponto de vista ambiental e social. Não há nenhum outro continente ou não há nenhuma outra região do globo que tenha padrões tão estritos como a Europa e, do ponto de vista ambiental, os projetos da Europa têm mais garantias, tanto do ponto de vista social e ambiental para serem melhores projetos desse ponto de vista. Além de sermos consumidores preferenciais temos melhores condições porque temos o melhor enquadramento legal e temos instituições mais fortes para fazer o licenciamento e fiscalização.
É importante o aparecimento de projetos como a fábrica de baterias de lítio em Sines?
Ainda não existe. Mas temos instituições fortes para fiscalizar e monitorizar e temos todo o enquadramento para que seja assim. No entanto, seria também conveniente termos a produção, a exploração e a refinação. O ideal era termos toda a cadeia de valor em Portugal.
Quando diz o Governo ainda é lento a decidir alguns projetos e lançar concursos para esta área, o ideal seria haver uma maior aceleração?
Seria, o ideal é que estes processos pudessem ser mais acelerados, porque estes projetos são demorados por natureza. Mas é difícil tomar decisões quando existe tanto ruído e tanta desinformação. É uma decisão que tem de ser muito bem fundamentada porque gera muita polémica, gera muito ruído e gera muita desinformação. Tudo tem de ser feito com alguma cautela, especialmente porque afeta as pessoas.
Mas tem o reverso da medalha em termos de impacto económico, principalmente quando se diz que é necessário sermos mais competitivos e mais produtivos…
São oportunidades únicas e se conseguirmos introduzir em Portugal a cadeia de valor completa então isso ainda iria trazer maior valor para a nossa economia. Temos o caso do cobre. Somos grandes produtores de cobre, mas nunca tivemos uma metalurgia de cobre em Portugal, mesmo assim, o cobre tem um impacto significativo na nossa exportação porque é uma matéria-prima essencial para a economia de todo mundo. Se tivéssemos uma metalurgia seria melhor porque teríamos mais valor. Não tendo metalurgia valia a pena ter exploração de cobre? Certamente que sim. Castro Verde é o concelho do país onde está a Mina de Neves-Corvo que tem o ordenado médio mais alto. Qualquer intervenção humana tem aspetos positivos e negativos, temos é de ser capazes de encontrar o equilíbrio e que os positivos se sobreponham aos negativos.