Chegou esta semana às livrarias, com uma garrida capa cor-de-rosa, uma antologia da poesia contemporânea que tem um único argumento, e, de resto, prescinde de qualquer esboço de análise crítica: a ideia, muito propalada nos últimos tempos por uns quantos canastrões da lírica, de que a poesia, de que às tantas se despediram, hoje é território feminil.
Diz a publicidade que antecipava e que de algum modo até acaba por resumir os propósitos desta edição, que a antologia não existiria se não fossem os 50 anos de liberdade, tendo procurado fixar um elenco de 25 poetisas de forma a rimar com o 25 de Abril. Mas, tratando-se de um livro que nunca dispensa o efeito decorativo, Poesia, Substantivo Feminino não consegue fazer mais do que propor um cómodo gueto cor-de-rosa, sobretudo quando se esforça por fazer passar por gesto crítico outra montra promocional. A bem da verdade deve, contudo, assinalar-se que qualquer ânimo libertador está ausente de uma obra que não passa de uma triste manobra de relações públicas, sendo necessário deixar claro que o mais certo é que esta antologia não existisse se o antologiador não tivesse sido acusado de assédio sexual por uma mulher, tendo subsequentemente promovido um processo por difamação, que por estes dias está a ser julgado nos tribunais.
É de assinalar também que Joana Emídio Marques, que é quem neste momento se defende de uma campanha para desacreditá-la, movida por uma sanha de promoção mediática, tendo obra poética e uma intervenção bem mais arrojada e significativa pelo seu efeito de ruptura do que a larga maioria das mulheres aqui incensadas, naturalmente é o nome que este arranjo pretende ver riscado. Assim, as 25 poetisas são chamadas a participar numa panorâmica bastante reveladora dos “valores” que interessa promover. E é impossível, por isso, não reconhecer e lamentar as pressões que impelem estas mulheres-emblema a prejudicar outras, e a servir valores misóginos. Poucas coisas terão sido oferecidas com mais condescendência a um grupo de mulheres do que este uso da palavra “como glosa infinitamente reversível e nula de uma situação que podia suportar ‘falando-a’, com a condição de a não transformar” (Eduardo Lourenço). De resto, deve notar-se como, hoje, mesmo o termo “lirismo” vem sendo crescentemente associado, de forma pejorativa, a uma espécie de manso delírio, e não deverá demorar muito para que encontre o seu lugar entre as piedosas ilusões e as inúmeras anedotas que circulam sobre a mulher tagarela, a mulher que invade o silêncio com a sua palavra ociosa. Cabe assinalar ainda que, de entre o conjunto de poetisas que aceitaram integrar esta patranha, outras há que expressamente se colocaram de fora, recusando-se a participar neste exercício que nos diz mais sobre as estratégias de execração de quem não se deixa instrumentalizar nem acata o princípio de submissão.
Agustina Bessa-Luís iniciava uma intervenção num congresso que teve lugar na Universidade Complutense, em Madrid, em outubro de 1985, dedicado ao espaço cultural europeu, lembrando como, há coisa de dez mil anos, mais dia menos dia, conforme assinala o Génesis, “viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas e tomaram dentre delas, por mulheres, as que bem quiseram”. Adiantava de seguida que esta geração teria sido a dos famosos heróis da antiguidade, pelo menos tal como foi fixada na memória dos povos. “A extrema toxicidade desta memória recrudesce de tempos a tempos e dá origem ao problema da condição feminina, relacionado, de alguma maneira, com a crise mística ou a convulsão afectiva registada por pessoas, coisas ou instituições. A mulher é um ser trágico que não comanda a sua tragédia”, vincava a autora de A Sibila. “Não comanda o seu conhecimento, que é uma função primordial do ser humano”.
Também assim, para se fazer uma antologia sobre a poesia que se vem publicando neste século, enfatiza-se aqui uma suposta polarização sexual, dando a entender que, na poesia escrita por mulheres, há um tipo diferente de tonalidade face àquela que é escrita por homens, “postulando assim a existência de um estilo feminino distinto e reconhecível, tanto nas suas qualidades formais quanto expressivas, e baseado nas características especiais da situação e da experiência das mulheres” (Linda Nochlin). Ora, deste exercício cabotino, com as suas premissas aparentemente tão benévolas (e ainda resta saber por que raio caberia a um homem colocar-se como o juiz nesta transformação), não demorará muito até que se dissolva aquela ingenuidade dos modelos promocionantes, que, nestes casos, só revelam a má consciência dos tão gerais preconceitos. De resto, vale a pena indagar qual poderá ser o mérito de propor a validação de uma geração com base em questões de género, quando a poesia se sagra daquela crua distância e do elemento de absurdo e ruptura, de tal forma que não lhe seja possível assacar uma ânsia de participar nos gerais complôs publicitários, nem gozar esse prestígio por associação, ou auferir de apoios de inserção de qualquer espécie. Tudo isto são fórmulas panfletárias, distorcidas ou falsificadas, e evidentemente acríticas, e assim tendentes a limitar a própria compreensão do efeito libertador de um discurso que, em vez de se acrisolar num indulgente regime auto-referencial, contra aqueles que sempre tiveram a obsessão de submeter a poesia para os seus fins imediatos, busca “pronunciar as palavras sempre sacrílegas e as blasfémias permanentes” (Benjamin Péret). Nesse sentido, a posição da mulher só poderá ser distinguida “como uma reconhecida estranha, a rebelde ‘ela’ em vez do ‘um’ supostamente neutro”, como frisa Nochlin. Contudo, ainda seria preciso demonstrar por meio de um exercício de leitura ao pé da letra que pudesse fazer ressaltar como neste ou naquele poema isso constituiu uma vantagem decisiva, ao invés de ser apenas um obstáculo ou uma mera distorção subjectiva.
“A mulher, é certo que se lança hoje na campanha mais impetuosa no que se refere a reparar a afasia que a História lhe destinou. Quando falava, o seu verbo era parte da qualidade de ilusa que lhe atribuíam. Agora já não é possível recorrer ao argumento da loucura para retirar ao verbo feminino a validade e autoridade”, vincava Agustina Bessa-Luís em outubro de 1985. Assim sendo, mostra-se necessário um enredo mais retorcido, que passa por distinguir umas humilhando outras, aquelas que aceitam ver-se exibidas na composição de algum honroso beatério, participando ou, na melhor das hipóteses, alheando-se face ao achincalhamento das que se tornam o alvo de algum processo de heresia, desses que tantas vezes iam a par de acusações de carácter sexual. E tudo isto se liga ao clássico sistema de praxes que faz persistir em condições de bom uso e eficácia o aparato repressivo de antes.
Acontece que o próprio discurso poético, na sua recusa em resignar-se ao destino que é o das artes ‘aplicadas’, ‘decorativas’, ‘domésticas’, parece assim ele mesmo ligado a essa resistência da mulher em submeter-se às formas de eleição (ou castração) recomendadas, e que passam hoje por oferecer destaque às vozes automutiladas, coniventes com esse resíduo que, se superficialmente dá nota do seu desconforto, depois acomoda-se ao “papel hipocritamente consolador de uma irmã de caridade” (Péret). Como aquela que fala sem ser a sua vez, sabendo que a sua vez só chega quando for claro que se perdeu o ímpeto ou a oportunidade, herdeira de séculos de silêncio e da ira sob eles soterrada, a poesia vem da boca de quem era melhor que estivesse calado, e é nesse sentido que a sua substância é feminina, rejeitando essa grosseria publicitária que da rua masculina sobe até à sua janela prisioneira apenas para lhe impor essas asas precoces e os sonhos de “atilada fêmea”. Essa prodigiosa tomada de palavra é já em si mesma como falar fora de vez, proferindo a inversa e diferida violência de quem nunca o pôde fazer. Mas no tempo tornado breve que é o nosso, vir reconhecer a premência das vozes femininas, oferecendo uma amostra tão sucinta, tão fácil de perder num lote tão vasto, equivale a promover uma visita rápida para que os convivas possam cumprimentar as serviçais. Num lote de 25 nomes, não emerge nenhuma particularidade ferina, e é difícil resgatar mais do que uns poucos versos ao longo destas 120 páginas que sequer nos sugiram aquele efeito de rapto e exaltação, como se nos revelassem uma paisagem truculenta às escuras, o árduo trabalho de umas mãos enormes e brilhantes, capazes desse efeito de negação da negação, desse refluir mágico para o ponto zero, a partir do qual a fala surge então como se inventada, “nem masculina, nem feminina, apenas autónoma e soberana” (Eduardo Lourenço). Uma fala que exige e conquista toda a nossa atenção, e que traz riscos, que nos empurra para aquele limite que soa como um direito ao absurdo, uma ressonância capaz de sublevação. Pedir-lhe menos do que isto, pedir-lhe apenas mais outro quadro de vagas promessas, seria já ferir de morte este elevado propósito. O que esperaríamos de uma obra que se nos impõe com um enunciado tão chamativo, seria que nela comparecessem exemplos de textos com uma força de autonomia de tal ordem, que essa “hybris”, essa fala se assinalasse “como exterior às barragens de masculina tradição pátria” (E. Lourenço). Que fôssemos confrontados com a tal fala-mulher, que aprofundasse aquela libertação suspensa que emana de páginas de figuras como Agustina, Maria Velho da Costa ou Luiza Neto Jorge, essa fala memorável e que se impõe como justa vingança sobre a voz masculina.
Mas assim que nos vamos detendo nas escolhas de Valente fica-nos a sensação de não haver o menor vestígio da tão hiperbólica libertação que parecia ter sido anunciada, e vai-se construindo a suspeita de que estas foram as poetisas que não souberam recusar uma espécie de suborno às suas consciências. E porque o efeito publicitário lhes convém, e terão concordado com esta impostura, vale a pena reproduzir a lista, até porque dentro de uma década ou duas, à medida que as letras forem cedendo uma a uma como no letreiro a néon de um motel rasca pago à hora, isso há-de conferir àqueles que tenham a piedade de repescar nos alfarrabistas um exemplar deste caderninho cor-de-rosa o prazer de constatar como a subordinação é a linha mais segura para a irrelevância, restando então só as mais persistentes, ainda ao ataque mesmo sob as procelas de um regime cultural cada vez mais desfalcado e inóspito, e acendendo velas para todos os santos e rezando pela posteridade com aquele medo dos incensados de que a medida do elogio seja um mero efeito de cortesia, e se dissipe assim que abandonem os seus postos.
Eis o elenco, ordenado pela ordem de nascimento: Raquel Serejo Martins, Catarina Santiago Costa, Inês Dias, Marta Magalhães, Rosalina Marshall, Renata Correia Botelho, Cláudia Lucas Chéu, Marta Chaves, Filipa Leal, Inês Fonseca Santos, Raquel Nobre Guerra, Yara Nakahanda Monteiro, Cláudia R. Sampaio, Raquel Gaspar Silva, Catarina Nunes de Almeida, Minês Castanheira, Raquel Lima, Gisela Casimiro, Beatriz Hierro Lopes, Tatiana Faia, Sara F. Costa, Inês Francisco Jacob, Mafalda Sofia Gomes, Beatriz de Almeida Rodrigues, Sara Duarte Brandão.
E porque terá sido necessário um tão farto lote? 25 nomes… Sendo fácil perceber que, com a excepção de Beatriz de Almeida Rodrigues e Renata Correia Botelho, as poetisas antologiadas são, na verdade, o refugo geracional se comparadas às que recusaram comparecer. E o próprio antologiador parece sugerir isto ao reconhecer que, “ao longo do processo de organização da antologia, por razões diversas, todas elas respeitáveis, algumas autoras não quiseram estar representadas”, mas que “tais recusas acabaram por ter o efeito positivo de me obrigarem a alargar o meu campo de investigações e de, com a ajuda das próprias autoras participantes, mergulhar em poéticas mais jovens e desconhecidas, mas não menos relevantes para o fim que se pretendia”. Assim, resulta claro que houve uma certa cumplicidade de propósitos, um voluntarismo da parte de algumas das poetisas, um belo ensaio de entreajuda no sentido de produzir o tal efeito coral. Mas, e além daquela rima que não se mostra como solução para nada, para quê 25 nomes quando ninguém seria capaz de nomear uma só geração, por cá ou lá fora, em que seja possível distinguir tantos vultos, resultando este exercício no equivalente a ir ao casino com ganas de levar a melhor sobre a casa, apostando na roleta e distribuindo as fichas de forma a cobrir quase todas as casas. Resulta, assim, claro que se trata de um jogo de azar, em que a ideia foi mais agraciar as hostes, evidenciando, por outro lado, como, na verdade, nenhum destes nomes foi capaz de fracturar de chofre o balizado cenário que era até ali o das nossas letras, antes dando a impressão de que, nos últimos tempos, por cada poeta que morre seriam precisas algumas dezenas para cobrir o ralo e fazer esquecer o desfalque. Parece assim que já não estamos apenas condenados a um tempo de poetas menores, antes dá a sensação de que as antologias actuais não estão nem em condições de nos ressarcir daquilo que ia parar ao lixo dos surrealistas (e, com esta, pagamos homenagem e ressuscitamos a letal sentença que era costume ouvir de Natália Correia).
Resta saber se há verdadeiramente o intuito de instalar no centro desse grande vazio que é o das nossas letras, e que se tornou o alvo de todo o tipo de contrafacções, como um objecto de provocação e inconfessado horror uma palavra feminina, ou se este não é mais outro expediente para secundarizar essa palavra, num enredo em que, aquilo que até certa altura sentíamos como uma ausência maciça, está agora a ser compensado por uma suspeitada e neutralizadora abundância. Um sinal da fragilidade deste “sonho quixotesco”, como Valente caracteriza o projecto, é a forma como, desde logo, e ao invés de uma substantiva reflexão crítica, a selecção dos poemas é antecedida por uma “breve explicação”. Quatro míseros parágrafos, em que o antologiador se limita a tributar esta iniciativa à sua “convicção, certa ou errada, de que a qualidade média da poesia escrita por mulheres nascidas depois de Abril de 1974 é, em linhas gerais, superior à escrita por homens nascidos no mesmo período histórico”. Ou seja, nem se trata de ser uma escrita que vem levantar problemas, pôr em causa determinados valores, agitar “as águas patriarcais” e desfazer o sexismo estrutural que vem sendo reconhecido nos modos de recepção das obras literárias. Assim, não há sequer uma tentativa de deslocar ligeiramente a perspectiva sobre o assunto, afirmando, como fazem algumas feministas, que na arte criada por mulheres possa haver uma diferença de qualquer ordem, simplesmente estende-se esse isco estupidificante de afirmar que se deu uma espécie de inversão, e embora não se reconheça nenhuma obra de primeira grandeza, no todo, as poetisas que assim engolem o isco, o anzol, a linha e a chumbada, sentem-se valorizadas numa avaliação grossista. Parece, assim, como uma dessas causas beneméritas pelo qual um velho editor vem pagar reparações com um final de conto de fadas em que, num prospecto de pouco mais de cem páginas, uma geração de mulheres é celebrada como uma frente indistinta, que, se por um lado se mostra tranquilizadora ao ponto de tantas acederem a colaborar nela, por outro reforça precisamente aquela ideia de que as mulheres requerem “atenções especiais”. Assim, estas pagam o preço de se verem dispostas enquanto subgrupo, numa proposta condicionada pelos fins de um homem. E este faz questão de sublinhar que não é esta uma antologia que “traduza forçosamente o meu gosto pessoal”, nem é “uma antologia de escola ou de tendência”, cingindo-se o seu esforço ao de nos apresentar “um panorama abrangente do que é hoje a poesia escrita por mulheres nascidas depois do 25 de Abril de 1974”. Ou seja, é um catálogo… cor-de-rosa. E se Valente ressalva que o leitor poderá confrontar-se aqui com vozes “muito diferentes, por vezes quase antagónicas”, achou suficiente que cada uma estivesse representada com apenas dois poemas. Nem houve mesmo condições para sondar essas tais divergências ou dissonância, porque se “nenhuma antologia é perfeita”, outra das platitudes de que esta se serve é vir reclamar a mera função de servir como “ponto de partida para um maior conhecimento das mulheres poetas portuguesas”. Ou seja, não se fica pelo elemento decorativo, pois é sempre possível restringir o gesto ao tão urgente e caritativo compromisso de divulgação. E em nome desse efeito de levar às massas se tem organizado esse efeito de um poder que, não só vai aplanando as diferenças e oposições, o elemento de atrito, fornecendo sempre uma chave neutra, como se tem revelado um terreno fértil para fazer medrar a consciência acrítica, a aceitação de tudo com base nesse ideal de prestígio de que a cultura deve gozar. Assim, vemos sempre encorpar estes arranjos, que acabam sempre por funcionar segundo o modelo da manifestação invertebrada, que se refugia na contestação ocasional de pormenores, e de resto permite a proliferação de títulos inconsequentes, fornecendo a montra dessa expressão abastardada para consumo que anima os palermas culturais. Deste modo é possível representar genericamente a emergência de vozes femininas sem que isso acarrete fortes tensões num momento de decisiva erosão de direitos e mesmo de uma profunda crise existencial que se vive nas nossas sociedades.
Como seria de esperar, a amostra de poesia que se segue não consegue fornecer-nos mais do que uma composição aprazível, nalguns momentos inane, noutros frívola, mas incapaz de provocar o menor sobressalto, mostrando-se inconsequente e banal. E já iremos a um périplo por alguns versos. Antes, é importante assinalar como esta antologia passa completamente ao lado, sem nem sequer mencionar, a transformação profunda que se deu com as novas formas de divulgação e a consolidação do éter electrónico como pergaminho virtual, os aspectos da retórica da identidade digital e como isso tem provocado uma nova organização dos processos de divulgação da poesia, influenciando a própria escrita, desde logo por fomentar e normalizar todo um enredo pelo qual, hoje, os poetas se projectam como produtos, dando primazia à autorrepresentação e aos conceitos de identidades performativas, e, apesar das pretensões de originalidade e ruptura que vão sendo requentadas como restos do modernismo preservados em tupperware, em vez de verdadeiros movimentos ou escolas, vêm triunfando tácticas associativas e de promoção, cuja índole publicitária leva a que não se estranhe o tão frágil enquadramento que nos oferece esta antologia.
Dedicada à memória de Ana Luísa Amaral e Maria Quintans, recentemente desaparecidas, o que esta antologia ilustra sobremaneira é a tendência actual para a sobreprodução e saturação de textos com pretensões poéticas que não questionam nem muito menos abalam seja de que modo for a tradição literária, e em vez de uma postura de confronto, antes aproveitam a boleia de qualquer pressão de ordem sociológica e destes produtos editoriais e balanços ou panorâmicas que simplesmente se oferecem como sintomas do regime social, em vez de obras criativas capazes de sustentar novas realidades ou aberturas. Assim vemos emergir este horizonte feminino de fábula e institucionalizado delírio que permite simular um quadro dinâmico, quando os discursos que se produzem à sua volta se entregam a generalizações e incidências mais de ordem estatística do que a um conceptualismo vivificador, e a critérios ousados, a propostas de desafio a este panorama em que a cultura passa a ser encarada como mais outro fenómeno de superfície, ligada aos rituais do espectáculo, cristalizando-se em volta de efemérides e celebrações regionais, incapazes de qualquer efeito de renovação, e ficando inteiramente refém das instâncias políticas ou mercantis. Neste sentido, o próprio mercado vem assumindo o espaço do ecossistema literário, atribuindo-lhe esse efeito de representação democrática tão permeável à demagogia, ao populismo mediático e à cultura de entretenimento. E, assim, o entusiasmo em volta deste ou daquele nome, concorre com aquele processo de extinção da memória e da prevalência do presente perpétuo que promove a vertigem digital. Ora, a função crítica o que tem demonstrado é que a poesia não é senão um regime de experimentação, um laboratório avançado, no sentido de abrir a memória e inscrever nela resistências imunitárias, produzir vincos, lançar grumos nessa corrente, vestígios, gerir a composição de um mosaico de espectros, vozes, sonhos, imagens, trabalhando a linguagem nessa tensão radiante. É nesse ponto que a memória se torna a verdadeira fonte, “o único paraíso do qual ninguém pode ser expulso” (Jean Paul). E é isto o que leva Heiner Müller a assinalar como “esquecer é contra-revolucionário, e a tecnologia é concebida para a extinção da memória”. Mas em relação com esta crise, a antologia cor-de-rosa que Valente nos serve dirige-se antes àquela passividade e complacência de um consumo que fica satisfeito por ver aparecerem sempre novos produtos que, com a solvência dos seus próprios conteúdos, alimentem essa ânsia de novas distracções, dessa massa residual de elementos partilháveis em rede, e que servem para reforçar a tal esfera da identificação, e de todo esse discurso omnipresente e performativo “de um mundo desprovido de alteridade que gira sobretudo à volta do nosso umbigo”, como assinala o jornalista e ensaísta francês Vincent Cocquebert. Assim, esta poesia nem tem a decência de vir azeda, de causar um amargo de boca, mas é mais um reflexo do sobre-investimento emocional no consumo, e que apenas reforça esse simulacro egóico, esse regime de isolamento narcísico, enquanto nos vamos encolhendo “dentro de nós mesmos em luta permanente com um mundo que já não queremos mudar colectivamente, mas submeter à nossa vontade”.
Num magistral ensaio no mais recente número da revista Electra, Cocquebert analisa esta pressão aparentemente emancipadora em que os sujeitos se sentem constrangidos a encenar perpetuamente o seu Eu, tanto na vida profissional, familiar e sentimental, como nas redes sociais ou nas suas formas de expressão artística. Assim, em tantas destas páginas, vemos os versos cederem a essa razia em que os motivos mais frívolos são organizados de forma a transmitir aquela ideia de que “a vida é o maior dos poemas e tem a vantagem de, assim, ascender ela própria ao estatuto de génio poético, já que, afinal, num certo sentido, todos são autores daquilo que vivem”, como assinala Robert Musil num dos seus ensaios. “Dessa maneira, porém, desapareceu o último leitor e já só restam génios.” Vemo-nos, deste modo, colocados perante uma poesia que se alivia da preocupação com o pormenor, com o abalo sintáctico, com o furor rítmico capaz de produzir um estilo que se aferre a nós de forma mnemónica, bastando produzir aquela “espécie de vago existencialismo de massas” (Cocquebert), num processo contínuo de “validação subjectiva que nos faz entrever o nosso espelho no seu todo”. Enredamo-nos cada vez mais num regime de dissolução, em que basta oferecer estímulos constantes, versos como slogans, composições de “afirmações vagas, mas frequentemente positivas ou gratificantes, que nos dão a sensação de que estão a falar de nós e para nós”. A poesia passa a valer por esse regime de tagarelice inócua, frases tão fáceis de abarcar com uma vista de olhos no ecrã do telemóvel, onde tudo se sucede para produzir um efeito de espiral e agitação, e muitos chamam a isso vivacidade intelectual. No fundo, como explica Cocquebert, esta fórmula desenhada por algoritmos, e à qual vemos o regime editorial adaptar-se, funciona apenas para produzir “uma ‘ilusão do Eu’, necessária à nossa falta de coerência interna, que, impulsionada pela bolha das redes sociais, está a alimentar grande parte da actual atracção pelo desenvolvimento pessoal, o autodiagnóstico, a astrologia, as pseudociências, mas também o militantismo identitário e as políticas populistas”. Sentimos tomar conta de tudo este ar efervescente que dificulta a respiração e nos desencoraja de assumir uma perspectiva autónoma, crítica, e mesmo quando se apodera de nós a solidão, a própria literatura que hoje se publica já não corresponde a esse elemento de corrosão e resistência, mas está também ela dominada por aquela falaciosa poeira. Cercados por todos os lados, vendo tudo ser ocupado, mesmo assim, esta dinâmica mostra-se consciente do seu efeito depressivo, mas como cinca aquele ensaísta francês “a sociedade do feito à medida parece não ter outra resposta para a fragilização narcísica dos indivíduos a não ser a ilusória ou neurótica aceitação incondicional de nós próprios”. E esta poesia, na melhor das hipóteses, o que consegue é debater-se com as reminiscências dos grandes discursos de outrora, enquanto soluça os fragmentos de uma elegíaca compreensão deste quadro: “A casa respira/ às vezes no ritmo da tua respiração,/ às vezes a contra-pulmão,/ esta é a tua casa,/ esta não é a tua casa.// Os objectos conspiram,/ nas estantes entre a Odisseia e o Quixote/ há um mar de papel,/ um marinheiro chamado Ismael,/ um quarto de hotel,/ uma cama nupcial num bordel,/ as profecias de Ezequiel,/ um atentado em Israel,/ a viúva de um coronel,/ um marido infiel.” E tudo vai assim, nesta cadência de aranzel, rimando de forma maçadora, essas rimas que ardem de zelo e são sempre as mesmas, rimas que Montale comparou a velhas beatas. E mesmo quando Raquel Serejo Martins rompe e as afasta, estamos de volta ao quadro de antes. “A infidelidade exige intimidade, pensas,/ numa intimidade de horas e de cadeiras vazias.// Já não reconheces a cor da tua pele no espelho,/ este não é o teu corpo,/ este é o teu corpo,/ reconheces o escaravelho,/ é verde e vaidoso o escaravelho.” E se há um momento em que o poema alcança uma espécie de relâmpago é quando se dá conta disto: “Às vezes pensas que ser mulher é o único mistério.” O poema prossegue com aquela doçura das coisas silabadas entredentes, irrelevantes, mas este é o momento decisivo de interrogação, o verdadeiro sinal negligenciado e que, pelo reconhecimento da sua estranheza, é capaz de sustentar algum enigma. O resto é um desgaste: palavras, palavras, palavras. Mas só ali se denuncia esta insânia relacional e as conivências ou capelinhas que prendem toda a vida a noções incapazes de produzir algo mais que um sentido frágil, por vezes irónico, outras sarcástico. Isto é assim de tal modo que dificilmente se distingue um poeta de um tipo particular de paranóico que, com toda a genuinidade da sua certeza, mesmo assim se vê em apuros na hora de se defender da concorrência dos mais vulgares atrevidos ou arrivistas.
Se Luiza Neto Jorge tinha já registado o seu processo de inversão de um qualquer copyright, esquivando-se a todas as categorias e mitologias onde se faz por deixar os estranhos de castigo – “Diferente me concebo e só do avesso/ O formato mulher se me acomoda” –, pois Catarina Santiago Costa retira do armário o vestido já bem roído pelas traças e vem valsar em “A mulher anteriormente conhecida como Catarina”: “Por ora, sou mulher./ Ainda não esgotei esse filão e gosto/ de ser mulher./ Mas um dia serei homem/ arco do pé erguido, sólido/ pernas de bambu/ ossos das ancas e clavículas salientes/ entradas grisalhas/ olhos fixos em sabe-se-lá-o-quê”… e assim vai esgotando a paciência de quem segue apenas para acabar da forma mais redundante: “E nunca terei sido homem sendo homem/ e não serei mulher e sou mulher/ e esta não será uma questão política/ porque só minha/ e será só minha/ porque foi político.” E isto dá bem a nota de um registo de sensaboria meio aleatório nas combinações, num baralhar e voltar a dar o mesmo, confiando no leitor para se substituir e conferir a esta glândula reiterativa um desenlace mais produtivo.
Inês Dias comparece naquele regime de sinistra clausura de um sangue a bordar um pano de afectação, em que a condição feminina se resume ainda àquela tão pouca alegria e tão quieta ira, que se torce e retorce sem cautério para as cenas de perfídia burguesa, e mesmo sendo hábil em construir o quadro preciso e barroco de uma angústia sem saída, troca o vigor pela a agonia como se a poesia fosse aquele urro que inscrevem as enterradas vivas no interior de um túmulo. “As mulheres da família sempre/ tiveram um jeito quase póstumo/ de existir: guardar o lume/ em silêncio, comer depois de/ servir os outros, morrer primeiro.// Saíam à hora de ponta do destino / para lerem os caminhos perdidos/ e colecionavam a abdicação/ em caixinhas de folha, entre bilhetes,/ caducados ou dentes de infâncias alheias.” A coisa vai assim, toda muito escandida, organizando os seus fantasmas numa débil atmosfera romanesca, que aponta para uma literatura do século XIX, mas refocila naquele tom monocórdico de langorosa caixinha de música, a condoer-se de si, enquanto a bailarina já perra nem dança nem desanda.
“Esperavam a vida toda por uma vida/ próxima, de alma presa a alfinetes/ no vestido preferido para o enterro,/ os passos medidos nas suas varandas/ a dar para o fim do mundo.” Tudo, como bem se vê, muito afinado neste registo tétrico, de quem passa um emoliente por algum coto, exibindo a fantasmagoria desse membro mutilado. “Retomo-lhes às vezes os gestos/ neste meu exílio inventado,/ mas acaba aqui: vou encher de corpo/ a sombra, mesmo que nem tempo/ me reste já para a pesar.” Infelizmente, como quase sempre acontece nestes casos, o poema termina no ponto onde devia começar. Ficamos, assim, à espera de um lado B que nos recompense destas agruras tão explicadas e condoídas de si mesmas.
Segue-se Marta Magalhães com dois poemas desses que lembram as memórias de um repositor de stocks, procurando produzir uma sensação de abismo metafísico a partir das legendas do tal tempo detergente, em que a extensão de si por via do consumo gera intimidades perfeitamente artificiais, sujeitos absurdamente anónimos, dando origem ao tipo de escritores que se conservam naquela obscura mediocridade, seguindo pelas margens que, em geral, foram previamente traçadas por outros, e que, à medida que a sua influência esmorece, nutrem a esperança nalgum resgate para efeitos de um pacote promocional como este. “No bar da estação, uma Monstera deliciosa/ uma montra frigorífica com laranjas/ chocolates, um melão, cervejas, capri-sonnes, tinto/ em tetra-packs, jovens a jogar bilhar// nos telemóveis, seis natas pelo preço de cinco/ um nicho com Santa Teresinha de hábitos carmelitas/ um São Sebastião marcado pelo suplício/ e um pedaço de ovo cozido com casca// mas é o pavimento pegajoso pejado de pastilha/ elástica que não nos deixa esquecer/ como não é o tempo que apaga as pegadas/ mas as mulheres da limpeza”. E lá vem aquele dispositivo da torção final que deve gerar um sorrisinho cúmplice, apreciando o alívio espirituoso depois de um quadro descrito sempre naquele registo jocoso, que só é capaz de sustentar um ponto de vista formal e exterior, mas vai dilacerando na mesma, nesta distância que tudo reifica, que chega a apreender-se a si mesma como um outro, numa fuga incessante, numa cisão perpétua, estimulada por esse modo cínico de quem gosta de se deixar vencer por uma paz mortífera, a afastar-se de toda a substância. E a linguagem, no seu oportunismo denotativo, na imersão em elementos concretos e que se equivalem para arrancar continuamente a imediatez do mundo, tudo isto explica como o enredo do Espectáculo triunfou em nome da desinflação do aparelho lírico.
Poderíamos prosseguir de forma exaustiva neste exercício mais ou menos cruel, passando por cada uma das felizes contempladas neste arranjo de flores (é literalmente isso o que significa o termo antologia). Nalguns casos as considerações críticas tornam-se desnecessárias, quando os poemas oferecem as imagens ou assumem até uma função descritiva de si mesmos, nessa raboleva de frases com que se entretém os comedores de cerejas, entre cuspir os caroços ou profecias destrambelhadas, fazer sermões da montanha ou deter-se em mil outras picuinhices. Rosalina Marshal oferece tantos tem feito da sua poesia uma banca deste tipo de quinquilharia: “anáfora do meu pensamento/ esconso e pobre/ desvelo a vida ao passá-la/ entro e saio/ volúvel transeunte/ por todas as orações/ imediatamente esquecendo// em perplexo reflectir/ te ofereço esta indigência/ por não saber que fazer com ela”.
Quanto a Cláudia Lucas Chéu já se sabe como ficamos diante das canas ardidas, espalhadas, e que deveriam ter provocado uma combustão dos céus enquanto foguetes verbais, mas ou o rastilho estava molhado ou alguma coisa foi mal calculada, e mais parece que estamos a ler um relatório truncado a partir dos pequenos vídeos que conseguiram romper a barreira de isolamento para aquele regime anedótico e cretinizante dos conteúdos virais… “Não havendo dinheiro, as pessoas tendem a entreter-se/ mesmo que seja à bulha e aos gritos/ Sempre é melhor que o silêncio de quem por lá andou/ e deixou de ter as marcas para exibir o convívio// Percorro a recta da Arrentela com as minhas pernas crescidas/ relembro as Super Gorila a incentivar os abcessos,/ o dia em que a matulona do judo me deu porrada/ só porque marquei um golo e jogava na equipa adversária/ Arrastou-me o fato-de-treino rosa/ pela lama e eu perdi os meus óculos tartaruga/ e tive de voltar às cegas até casa”.
Neste livro estamos sempre com a sensação de por aqui há tudo e mais alguma coisa a entrar a jorros por toda a espécie de brechas, e isto segue aquela liberalidade do gosto de quem não espera grande coisa dos versos, começando até a deixar-se de sentir as diferenças de categoria das obras, de tal modo que mesmo que se um breve e extraordinário poema fosse largado no meio desta fauna infeliz trocando receitas de conservas, o mais provável é que já levássemos o juízo desfeito e a praguejar diante de tanta fartura de termos ou ritmos insossos. “Se estás perto dos 40 e vives sozinho, não te esqueças nunca/ de comprar massa, atum em lata (ventresca, que é mais sofisticado),/ tomate seco em frasco italiano, cerveja e queijos vários./ deves acrescentar a esta lista vinho e pão (de alfarroba, que é mais original)./ Congele-se o pão, já fatiado.// O importante é ter em casa o que não se estraga. Para isso,/ bastamos nós./ O importante é congelarmos os restos, e nunca congelarmos nós”, diz-nos Filipa Leal. E um pouco antes, há uma estrofe de Marta Chaves que parece encapsular o desânimo e desilusão diante daquilo que resultou dos esforços e programa desta comissão fabriqueira: “Poderia ficar aqui algum tempo/ deslocando a cadeira/ para acompanhar a trajectória do Sol./ Não o faço./ Abro a porta que dá para a casa/ e deixo devoluta a vida/ imaginária no jardim.”
Avançamos sem convicção, e descemos até ao mais fundo daquela forma de kitsch cheio de convicção moral, naquele tom suspenso de quem compõe expressões dolorosas em bustos de gesso, como faz Inês Fonseca Santos: “Em Auschwitz-Birkenau trabalhei/ o poema à exaustão. Ao fundo,/ uma palavra antiga: Ullmann murmurando o eterno// was wollen Sie Hier?// Música e lava,/ o espanto de haver aqui qualquer coisa próxima/ de uma morada: portas, paredes, em cada gesto/ literatura sobre tanta vergonha acumulada.// Auschwitz, Birkenau habitam hoje o interior/ dos versos; são vivos fitando o embaraço/ da sobrevivência. O aviso chegou-me de um amigo:// o eterno é um número indelével,// memória desocupada de quem não viu/ do território o ferro.// Não será assim tão longo o mundo/ que não nos voltemos a fitar:/ os pés assentes no carvão dos corpos,/ os grandes animais por companhia.// Ah, os grandes animais: não o cavalo/ que cospe quem o monta, mas a barata/ que silenciosamente escapa/ ao pé que a pisa.”
Raquel Nobre Guerra explica bem o regime actual das coisas, essa espécie de falência do sentido, em que tudo assume uma postura meio exagerada, meio caótica, num sentimentalismo que procura aquele elemento de fantasia escandalosa, de forma a esconder o simples facto de que já não suportamos identificar-nos por muito tempo com qualquer conteúdo específico, mas apenas com o movimento de nos libertarmos de todo o conteúdo. Assim, o próprio eixo de tantos destes poemas é o vazio, regurgitando “um modo de desvelamento em que tudo se manifesta de tal maneira que a sua aparência neste âmbito se torna autónoma, ou seja, se manifesta como uma máscara” (Julian Coupat). Truques com fumos, facas e espelhos, projecções e incessantes montagens. Leia-se uns versos em linha com esta irradiância inquieta, que tanto se agita para sacudir a noção de que, finalmente, tudo isso resulta tão perecível como trivial: “o teu amor é um caso de loucura lógica au point/ sem defesa nem imaginação/ o teu amor é um assunto comigo// podes querer ou não que seja romântica/ preferia até não te gastar num poema/ porque um poema é um jogo político/ quase sempre em maus lençóis/ mas eu insisto em fazer disto um grande tema/ acabar com a guerra no mundo, começar outra”…
De algum modo tudo soa acessória, todas as evocações, as experiências mais ou menos íntimas, em vez de focar seja o que for, tudo desfoca, parece turva, as palavras tornam-se de tal modo tremidas, as referências tão incertas que em vez de fixar um sentido, nada parece ter aquele papel de ancoradouro, e os instrumentos de navegação ficam por ali a obsolescer nas praias do ego.
Temos de saltar, pôr um fim a todo este estertor, e a antologia serve-nos a adaga perfeita, num poema de Sara F. Costa, bem ao gosto daquelas relíquias que se ligam ao mais enjoativo símbolo de uma arte ingénua e artesanal, e que resulta quase inadvertidamente como uma forma de irrisão e paródia dessas imagens que estão gastas e râncidas pelo menos desde os parnasianos… “vens ao meu cabelo/ colher invernos porque/ o sabes pomar de/ tempestades// e esses frutos vermelhos/ atira-os/ para a garganta em sangue.// tenho palavras/ que de nada servem/ à espessura do corpo// é preferível correr descalça/ em direcção aos animais/ que me vigiam os órgãos// permanecer limpa/ entre paredes/ fechar o dia/ na sua imperfeição// festejar o silêncio.” Sim, de facto, raras vezes se fecha uma antologia com a convicção de que é o silêncio aquilo que nos merece festejos.
Deve resultar claro, daquilo que se expôs, como, mesmo nos momentos em que alguns destes poemas parecem conscientes dos ecos que despertam, nem nestas páginas se recolhe uma amostra que seja capaz de produzir uma densa diversificação dos domínios textuais, nem se dá por um trabalho formal ou de linguagem capaz de subverter a demarcação da escrita masculina-feminina. Não encontramos exemplos de magia durável, nem perfis que não estivessem já contidos, de algum modo, na clássica representação das figuras investidas pelo olhar masculino. Para além de certos efeitos epocais que nos dizem mais sobre a ilusão realista e a boa consciência das reivindicações de uma suposta “identidade misteriosa” como sujeito da história, da sua própria história, não vemos depois isso deflagrar nos poemas que aqui nos são apresentados de forma tão desinspirada, muito menos de modo a reformular uma constelação sem precedentes. A própria selecção e apresentação enfatiza um mundo de frustração, de sufocação, detendo-se nos signos mais comuns, incapaz de propor uma consciência que já não precise de se definir pelo que lhe falta. Assim, nem há uma recusa à afonia definitiva, nem nos damos conta de que o centro ou eixo do discurso poético se tenha deslocado com esta prevalência quantitativa de vozes femininas. Na verdade, e tendo ficado de fora por diversos bons motivos aquelas que têm sido as vozes mais significativas que começaram a publicar já na segunda década deste século, muitas vezes o que esta antologia reforça é a tal ideia de uma função lírica alienada na sua passividade imemorial. Assim, em vez de um passo rejubilante no sentido de afirmar essa diferença tão vivificante, esses elementos de rigor e dança que vão abrindo o espaço “para o tempo em que todos os caminhos bifurcam” (E. Lourenço), parece que se queimam cartuxos, se deslustra a possibilidade de oferecer uma visão de conjunto, abrindo até quebrar o leque dessa “liberdade da razão feita mulher”. Talvez venha ainda a ser possível dar eco de uma espécie de tardia e nobre vingança, uma versão que, mesmo se lacunar, possa instruir-nos sobre essa ira ancestral que se sublevou já com uma naturalidade e uma veemência extraordinária nos nossos dias. Mas esse esforço deverá encarar este livreco não como um seu antecedente, nem sequer uma frágil arqueologia, mas como tudo aquilo que deveria evitar-se.