Uma meretriz na Mouraria. As origens do modo de vida a que chamamos fado

Uma meretriz na Mouraria. As origens do modo de vida a que chamamos fado


A figura trágica da Severa parece encarnar na perfeição as origens do fado lisboeta: um género ferozmente popular mas cujo encanto não deixa indiferentes as classes altas


No coração da Mouraria, a dois passos da Rua dos Cavaleiros, uma casa branca primorosamente recuperada destaca-se do casario que a rodeia. O que era originalmente um edifício residencial dividido em seis frações miseráveis – os arquitetos responsáveis pelo projeto de reabilitação (ateliê de José Adrião) referem que encontraram “diferentes problemas estruturais e escassas condições para habitar, nomeadamente deficientes instalações sanitárias e espaços úteis manifestamente exíguos” – é hoje um equipamento cultural moderno e um caso exemplar de recuperação do património edificado.
Trata-se da Casa da Severa, onde terá morrido aquela a quem é atribuída a criação do fado de Lisboa. A falta de condições da casa é de certo modo um espelho da vida da célebre fadista, o que por sua vez diz também muito acerca das origens deste género musical; inversamente, o novo projeto, luminoso e arejado, serve de metáfora ao rejuvenescimento que o fado conheceu nos últimos anos.
Na realidade, a Casa da Severa seria mais do que isso: seria um bordel, bastante sórdido, de resto, onde a infeliz fadista se refugiou para passar os seus últimos dias.

“uns magníficos olhos peninsulares”

Filha de um homem cigano chamado Severo e de uma prostituta conhecida por ‘A Barbuda’, Maria Severa Onofriana nasceu na Madragoa, onde a sua mãe tinha uma taberna, em 1820.
“Era uma mulher sobre o trigueiro, magra, nervosa, e notável por uns magníficos olhos peninsulares. Em cima de uma mesa de jogo estava pousada uma guitarra, a companheira inseparável dos seus triunfos; e pendente da parede (sacrilégio vulgar nas casas daquela ordem) uma péssima gravura, representando o Senhor dos Passos da Graça!”, escreveu Luís Augusto Palmeirim no livro Os excêntricos do meu tempo.
Entre os amantes da Severa contava-se D. Francisco de Paula de Portugal e Castro, 13.º Conde de Vimioso, que a levava à tourada. Graças a essa ligação – mas também à sua voz e aos seus dotes com a guitarra, claro – a fadista conquistou notoriedade, atuando pelas tabernas dos bairros da cidade.
Mas essa notoriedade haveria de passar com a brevidade de um relâmpago.Se, como se crê, a palavra fado vem de fatum, o latim para ‘destino’, ajusta-se como uma luva à vida da Severa. A famosa fadista morreu de tuberculose com apenas 26 anos, como ficou registado na placa afixada na sua casa, descerrada em 1989 por Amália Rodrigues. Reza a lenda que as suas últimas palavras foram:“Ai de mim, que morro sem ter vivido!”. Pobre como era, acabou enterrada, sem direito a caixão, numa vala comum do cemitério do Alto de S. João.

origens árabes e populares

Eis, plasmadas na figura trágica da Severa, as origens do fado lisboeta: um género popular e sofrido, mas cujo encanto não deixa indiferentes as classes altas. Palmeirim, no seu encontro com a fadista, não deixou de notar a inusitada presença da “péssima gravura” do Senhor dos Passos da Graça na parede, um testemunho da religião naquele antro de licenciosidade, mas essa é apenas outra marca dos conflitos e contradições que foram forjando o fado.
Talvez não seja também mera coincidência o facto de este género musical ter nascido nas ruelas da Mouraria. De facto, tudo aponta para que a tradição árabe tenha constituído uma forte influência – bastaria recordar, por exemplo, que foram os mouriscos que trouxeram o oud (instrumento de cordas da família do alaúde e precursor da guitarra) para a Península Ibérica por volta do ano 800.
Segundo o estudioso da cultura árabe Adalberto Alves, a palavra fado vem justamente do árabe hadû, que significaria “cantilena de caravana”. “O fado é uma música urbana originária da antiga mouraria de Lisboa, a partir do canto árabe, e que só pôde popularizar-se e desenvolver-se depois do fim da Inquisição (1821)”, escreveu no Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa. E continua: “O traje tradicional é escuro usando os homens um lenço ao pescoço e as mulheres um xaile, ambos de reminiscências mouriscas, tal como os instrumentos de acompanhamento, a guitarra e a viola, de ancestralidade muçulmana, enquanto desenvolvimentos do alaúde; exprime, predominantemente, nostalgia, saudade e destino (maktub!= está escrito!); sorte; fortuna; fatalidade; o fado está temática e morfologicamente aparentado com vários modos musicais do mundo muçulmano”, conclui o autor.

No limiar da legalidade

O ADN ferozmente popular do fado manteve-se pelo século XX adentro. E encontra-se resumido na pintura O Fado, de José Malhoa, terminada em 1910. Foi precisamente no bairro da Mouraria que Malhoa encontrou o casal protagonista do seu quadro: “Ela, a Adelaide da Facada, era uma prostituta; ele, o Amâncio, era um fadista e criminoso, um tipo extremamente turbulento, passava a vida preso”, como explicou em 2017 ao semanário SOL Carlos Branco Ferreyra, cirurgião de medicina geral e curador da exposição O mais profundo é a pele. Coleção de tatuagens 1910-1940, que teve lugar no Instituto de Medicinal Legal e Ciências Forenses. “Originalmente, a Adelaide da Facada aparecia com as tatuagens que tinha no braço. Mas, quando ele terminou a pintura, o Rei D. Manuel II foi ver o quadro ao estúdio dele e disse-lhe: ‘Isto é uma vergonha, é tão feio, tire lá isso!’”. O pintor acolheu a sugestão real e repintou as tatuagens que havia no braço da prostituta. Todas menos uma, a mais discreta de todas: cinco pontos, que representam as cinco chagas de Cristo ou, em alternativa, uma pessoa presa entre as quatro paredes.
“Há uma associação recorrente entre o criminoso, o tatuado, a meretriz, o fado e a taberna”, notava na altura Carlos Branco.
Aos poucos e poucos, porém, o fado foi conquistando respeitabilidade, e penetrou com sucesso nos meios mais aristocráticos. A fadista Maria Teresa de Noronha (1918-1993) e o poeta Pedro Homem de Mello (1904-1984), autor da letra da canção ‘Povo que Lavas no Rio’, foram bons exemplo disso.

O drama de todos os dias Mas há algo que parece não mudar: o sentimento de “nostalgia, saudade e destino” que referia Adalberto Alves. Seja a origem da palavra latina (fatum, como apontam as enciclopédias) ou árabe (hadû, como advoga o arabista), parece indiscutível que o fado está ligado à fatalidade.
“Sinto-me todos os dias desamparada”, confessava Amália ao escritor Manuel da Fonseca (Amália nas suas palavras). “Não tenho grande razão para ter dramas, nunca tive. Não me lembro de um drama como mulher, a não ser o drama de todos os dias: o de não me sentir feliz. Esse é um drama permanente”. O drama de não se sentir feliz: talvez seja essa a verdadeira fonte de onde brota o fado, um género musical que é também uma forma de ser e de estar na vida.