- O melhor, mais simples e, porventura, o mais cru comentário que ouvi sobre a atuação da atual Administração dos EUA foi feito, aos microfones da Antena 1 da RDP, por Paula Teixeira da Cruz.
Do que pude ouvir, Paula Teixeira da Cruz disse, em suma, nada haver de surpreendente no atual discurso americano.
No fundo, sustentou ela, a política externa que a atual Administração pretende levar a cabo em pouco se diferencia da que tem sido, desde sempre, a daquele país.
Nos últimos anos, habituámo-nos, contudo, a que ela fosse exteriorizada em termos mais suaves e menos chocantes, invocando sempre os Direitos humanos: como agora se diz, em termos mais politicamente corretos.
Tal suavidade permitiu – e agora sou eu a dizer – que os governos europeus, que desde a II Guerra Mundial têm colaborado com os EUA na execução da sua política externa, não tivessem tido de enfrentar a reação que os cidadãos dos seus países manifestariam se se tivessem apercebido de quais eram, afinal, os reais desígnios daquele seu maior aliado.
De algum modo, o que está a acontecer é, apenas, o cair do pano que, discretamente, velava a forma como os EUA olhavam e olham, ainda hoje, para o resto do mundo e logo, também, para a Europa.
Se este recente desnudar dos objetivos dos EUA nos ajudar, assim, a assumir uma atitude desenganada em relação a tais intentos, então todos teremos de agradecer à nova Administração americana a sua sinceridade e clareza de propósitos.
- Acontece que, deste modo, e como Paula Teixeira da Cruz igualmente esclareceu, se expôs, também, o chamado Direito Internacional a um banho de verdade.
A efetividade do Direito Internacional, por mais justas que sejam as suas proposições, apenas se cumpre, afinal, quando não estejam em causa os nacionais ou os aliados das potências que detêm, em cada momento, a força e o poder para o impor.
A condição e as condicionantes na intervenção do Tribunal Penal Internacional são disso um exemplo revelador: as recentes sanções contra ele decretadas pelos EUA explicam, eloquentemente, tudo o que haveria a dizer sobre tal matéria.
Faz anos, recordo-me, Paulo Cunha, um muito positivista Professor de Direito da minha Faculdade, alertava-nos já para essa armadilha, contando uma pequena anedota: «Na porta de um gabinete de estudos dedicado ao Direito Internacional existente numa Faculdade de Direito europeia, alguém colou, entre 1939 e 1945, um papel que afirmava “Fechado devido aos negócios pendentes”.
Atitude realista, convenhamos.
O problema não está, contudo, em gostarmos, mais ou menos, da maneira como, à margem do Direito Internacional, as potências dominantes nos manifestam e nos impõem os seus interesses.
Não se trata, com efeito, de uma questão de etiqueta nos termos usados para nos comunicarem o que pretendem de nós – cidadãos de países subordinados – as potências hegemónicas.
A questão reside, antes, em saber qual poderá ser a reação que, em tal circunstância, mesmo que à revelia dos seus governantes, os povos a quem tais ditames são destinados podem, face a eles, vir a ter.
Só muito excecionalmente, convenhamos, os poderes dos países subordinados deram, também eles, corpo às reações populares, recusando-se, com êxito, a submeter-se às imposições dos que mais podem.
Recordo aqui, como exceção estrondosamente vitoriosa, o caso do Vietnam.
- Acreditando, ingenuamente, que a História acabou no final de 1989, foram muitos os que chegaram a admitir que o Direito Internacional podia, a partir de então, passar a regular, com equidade, os diferendos internacionais.
Não era bem assim, como logo se veio a comprovar.
Relembro o que se passou, então, no Kosovo e, hoje, sucede em Gaza.
Nada podia ser mais esclarecedor.
A mudança de linguagem e da identificação do seu foco institucional é, também, muito elucidativa quando se trata de legitimar qualquer ação unilateral de uma qualquer potência hegemónica.
Hoje, em vez de se falar das mais institucionais deliberações da ONU, passou a falar-se, muito convenientemente, da reação da comunidade internacional, que mais não é do que uma abstração de geometria variável.
Note-se, entretanto, que não estou a defender que a «lei internacional» não tem nenhum préstimo, e se reduz apenas a um logro ou a um instrumento de quem pode e manda.
Alguns valores que tal normatividade internacional, por regra, assume e transmite, servem, mesmo quando inoperantes no plano jurídico, de veículo cultural e político capaz de cristalizar uma consciência coletiva e de legitimar e dar suporte à indignação pública, quando os princípios neles sustentados são, manifesta e brutalmente, violados.
Tais valores tendem, pois, a exprimir na consciência dos povos uma conceção de Justiça que, num dado momento histórico, é a que resulta consensual em função do grau de desenvolvimento material e cultural de uma dada sociedade.
Exprimem, em consequência, uma conceção de Justiça social, que podemos aceitar, numa perspetiva não teísta, como congruente e reconhecível num Direito Natural de conteúdo historicamente variável.
Só por tal razão, aliás, podemos afirmar que tal medida social e política é justa ou injusta.
- O discurso tremendista que hoje ouvimos da boca da nova Administração americana, a propósito de algumas fantasias socialmente pouco evidentes que uma iluminada elite (também originalmente americana) se deliciou a forjar, não se dirige, afinal, exatamente a ela: parece, mas não é assim.
Tal discurso apenas aproveita – em prol dos privilegiados de sempre – o desvio de atenção que a sombra de tais entusiasmos marginais projeta sobre o efetivo agravamento das contradições sociais essenciais que se manifestam nas sociedades ocidentais atuais.
Desvia, por exemplo, a atenção que deveria incidir na crescente quebra de estatuto económico e social de largos setores da sociedade que, antes, no rescaldo das mudanças do pós-guerra, chegaram a viver com alguma dignidade.
Propondo, sagazmente, uma imagem enviesada das razões do novo empobrecimento de tais camadas da população, o discurso da atual Administração americana procura esvaziar, assim, com engenho e arte, qualquer tentativa de tais setores sociais abordarem, criticamente, as verdadeiras causas que originaram a quebra do seu, ainda recente, estatuto económico e social.
Atribuindo ao hiperindividualismo – que, mediaticamente, algumas minorias singulares fazem questão de exibir e impor como um problema social de primeiro plano – a responsabilidade pela situação precária dos setores mais recentemente depauperados, o discurso do atual poder americano atingiu o que pretendia.
Conseguiu, sem dúvida, neutralizar o sentido político da revolta que nasce em tais setores recém-empobrecidos, apoderar-se astuciosamente dela e usá-la mesmo, com a mais descarada demagogia, em seu benefício.
Por isso, o poder americano não cessa de – só na aparência, contraditoriamente – promover, nos media, e nas redes sociais que detém e controla, o discurso singular e a imagem excêntrica de tais elites: umas vezes para as ostracizar, outras, apenas, para as ridicularizar.
O atual poder americano conseguiu, assim, obnubilar a leitura política objetiva que, antes, permitia aos velhos deserdados do sistema identificar, no abusivo enriquecimento dos detentores dos grandes interesses económicos e financeiros, as causas da injusta degradação da sua vida e condição humana.
Perigoso será, pois, para tais interesses e para os que politicamente os representam, se os velhos e os novos deserdados assumirem, um dia, que as razões da pobreza dos primeiros não se diferenciam, afinal, das que, agora, afetam os segundos.
Pior, que uns e outros possam, por fim, vir a contestar, solidariamente, a razão da injustiça da sua comum e desesperada situação.
Por ora e como escreveu, a outro propósito, Erich Maria Remarque: “A Oeste Nada de Novo.”