‘Se nada for feito, a mortalidade vai continuar a crescer’

‘Se nada for feito, a mortalidade vai continuar a crescer’


Morreram mais 1.191 pessoas do que o esperado em janeiro. Pneumologista alerta para aumento de casos de gripe B, falhas nas campanhas de vacinação e apela ao uso de máscaras


Os casos de gripe não param de aumentar e em janeiro registou-se um excesso de mortalidade entre os idosos com mais de 85 anos e as mulheres. O Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA) estima que, entre 30 de dezembro de 2024 e 26 de janeiro, se tenha verificado um total de 1.191 óbitos em excesso, o que corresponde a um aumento relativo de 11,8% face ao número de mortes esperado no país nesse período.
Segundo a DGS, este período coincidiu com a epidemia de gripe sazonal e com períodos de frio extremo. O Nascer do SOL esteve à conversa com Carlos Lopes, pneumologista do Hospital CUF Descobertas, para entender melhor as causas deste fenómeno.

Como se explica o aumento da mortalidade, principalmente em mulheres e idosos acima dos 85 anos? Já era algo expectável?
Sim. Já se sabe que nesta altura do ano este grupo particular de pessoas está mais vulnerável à gripe, sobretudo nos grandes idosos, que são os que têm mais comorbilidade e mais doenças crónicas. A gripe pode ser o que leva ao desequilíbrio de uma situação clínica já com pouca reserva e que depois pode conduzir um desfecho fatal. No caso das mulheres, esse é um dado que vai ter de ser analisado, mas que pode ser uma circunstância demográfica e não propriamente um motivo clínico. Não há nada que prove que as mulheres são mais vulneráveis à gripe ou a outras complicações.

Se já se sabe quem são os grupos vulneráveis e que este período é particularmente complicado, como se explica este excesso de mortalidade? O que falhou?
A acessibilidade aos cuidados de saúde. Principalmente no caso dos mais idosos, se não puderem ter acesso aos médicos, a situação pode se deteriorar-se e tornar-se irreversível.

Mas continuamos com filas de espera de mais de 10 horas nos hospitais…
É o problema das filas de espera e a necessidade às vezes de ter de telefonar para o SNS24. Alguns idosos moram sozinhos e nem têm essa capacidade ou essa informação.

Não concorda então com as novas medidas de obrigatoriedade de ligar para a Linha SNS24 antes de se dirigir a um serviço de urgência hospitalar?
Acho que não fazem muito sentido para estas franjas da população. É uma população que tradicionalmente recorre ao médico, não vai telefonar para o SNS 24 a perguntar…

O INSA indica que, dos casos graves de gripe reportados em unidades de cuidados intensivos, apenas um dos sete pacientes recomendados para vacinação estava efetivamente vacinado. Isto evidencia uma falha nas campanhas de sensibilização para a vacinação?
Sim. Tem de se apostar muito em campanhas de vacinação antes da época. Às vezes a vacinação começa já numa fase tardia, em que já estamos a correr atrás do prejuízo.

A DGS devia começar as campanhas de vacinação mais cedo?
Mais precocemente, de uma forma alargada e identificar bem os grupos de risco. Depois tem de haver também muita educação para a saúde, para aumentar as taxas de vacinação. Acabar com o mito de que se for vacinado vou ficar com gripe. As pessoas têm muito medo.
Esse receio aumentou depois dos efeitos adversos das vacinas da covid-19?
Sim, mas há também algum cansaço vacinal. As pessoas já tiveram muitas campanhas e muitos doentes recusam a vacinação porque acham que o covid já passou. Voltámos ao que era antigamente. Eu não vi campanhas para as pessoas se protegerem como havia durante a pandemia. E que fazia todo sentido repetir agora nesta época antes da gripe.

Até porque ainda há casos de covid e há casos de pessoas contagiadas com covid e com a gripe ao mesmo tempo.
Sim, temos alguns casos em que existem vários vírus no mesmo grupo, nomeadamente covid e influenza (o vírus da gripe), e que podem potenciar a mortalidade, mas apesar de tudo são reduzidos. Temos é tido muitos casos de gripe B, mesmo em internamento. Convinha perceber se as vacinas estão realmente a proteger contra este tipo de gripe, porque este ano tivemos um aumento deste tipo específico, o que nos deixa algumas dúvidas se a taxa de eficácia foi tão alta como o previsto. Além disso também tivemos um clima desfavorável no início do ano, com dias muito frios e muita humidade. Isso também favorece a propagação do vírus.

Depois da experiência da pandemia da covid-19, faz sentido ainda estarmos a enfrentar este cenário de excesso de mortalidade devido à gripe? Não deveríamos já estar mais bem preparados graças ao que vivemos nessa altura?
Há coisas que foram aprendidas na altura, mas que rapidamente foram esquecidas. As campanhas de proteção individual, sobretudo destes grupos de risco, já não vemos a acontecer. A lavagem das mãos, usar a máscara, a etiqueta respiratória…

O uso de máscara devia voltar a ser incentivado?
Uma coisa é incentivar, sobretudo para esta população mais vulnerável. Outra coisa é a obrigação, isso não faz sentido. Mas campanhas de divulgação sobre os benefícios para essa população imunossuprimida, grandes idosos e doentes crónicos, é essencial. É o que nós aconselhamos em consulta. Principalmente em transportes públicos, nas salas de espera, nos hospitais e nos centros de saúde.

Há pessoas que têm medo de ir ao hospital e apanhar doenças…
Sim e isso não devia acontecer. Os doentes passam horas à espera e acabam por transmitir vírus uns aos outros. As pessoas às vezes vão sem nada de sintomas respiratórios e voltam contagiadas. Devia haver medidas de contenção, como oferecer máscaras à entrada das salas de espera e salas de espera individualizadas para doentes com sintomas respiratórios, pelo menos nesta altura do ano. Acho que assim conseguiríamos diminuir a mortalidade.

Se nada for feito, e com uma população cada vez mais envelhecida, o excesso de mortalidade pode tornar-se uma tendência crescente?
Claro, faz todo o sentido. Também temos cada vez mais, sobretudo nos grandes centros urbanos, população a viver com piores condições de vida. Há mais pessoas a viver na rua, há um aumento das taxas de indigentes e de toxicodependentes. Essa população também está especialmente exposta à propagação de vírus. É uma população que não tem tanto acesso a cuidados de higiene, tem uma imunidade baixa por não se alimentar bem e, muitas vezes, não tem acesso a cuidados de saúde.

Acaba por ser também uma questão de saúde pública?
Sim. Depois essa população também acaba por propagar, não só a gripe, mas também outras doenças, como a tuberculose. Ainda estamos com taxas dentro dos padrões europeus, mas se não fizermos nada, podemos ter um aumento dessas doenças transmissíveis respiratórias. A nossa demografia está a mudar, sobretudo nos grandes centros urbanos, e acho que a DGS tem de tomar medidas de planeamento a longo prazo. A tendência não se vai inverter, portanto temos de tomar medidas para mitigar esse potencial de transmissão de doenças, como já está a ser feito noutros países, como o Reino Unido. A ideia não é que as pessoas vivam cá e não tenham acesso ao médico, porque senão depois podemos ter problemas de saúde pública.

O que acha da proposta do Governo para restringir o acesso ao SNS a todos os estrangeiros sem situação regularizada?
Se as pessoas estão cá, têm de ter acesso mínimo aos cuidados de saúde. Dizer que há um turismo de saúde e que vamos fechar o sistema completamente não pode acontecer. Depois o que acontece é que esta população mais desfavorecida deixa de ter cuidados médicos e aí pode realmente ser um fator propagador de doenças.