Aileen Pringle. O carteiro tocou-lhe duas vezes à porta da vida.

Aileen Pringle. O carteiro tocou-lhe duas vezes à porta da vida.


Figura errante do cinema mudo, Aileen teve uma carreira breve mas uma vida interessante. Como nutria amizade com diversos intelectuais da época, foi um bocado desprezada pelas estrelas de Hollywood. E ela também ajudou bastante com dichotes pouco aceitáveis.


Figura errante do cinema mudo, Aileen teve uma carreira breve mas uma vida interessante. Como nutria amizade com diversos intelectuais da época, foi um bocado desprezada pelas estrelas de Hollywood. E ela também ajudou bastante com dichotes pouco aceitáveis.

Se algo distinguiu Aileen Prigle da maior parte das suas colegas de Hollywood, isso foi certamente o seu longo casamento de dez anos a fio. Primeiro casamento, como está bem de ver. O consorte inicial, tinha uma certa panache. Tratava-se de um milionário chamado Charles Benjamin Moses Mckenzie Pringle, filho de um grande ostentador com a mania das grandezas, Sir John Pringle, proprietário de hectares e hectares de terras e membro do Conselho Legislativo da que era então a colónia britânica da Jamaica. Aileen, que nasceu em São Francisco, na Califórnia, com o apelido de Bisbee, tornar-se-ia uma daquelas grandes estrelas do cinema mudo que encantavam o público pelos seus requebros e trejeitos mas pode dizer-se que o carteiro lhe tocou à porta da vida duas vezes: para o bem e para o mal. O pai também não era nenhum pobretanas, não senhores, era suficientemente rico para mandar a filha estudar para Londres onde iniciaria a sua carreira no teatro. Casou-se com 21 anos e manteve-se casada por mais uma década o que é motivo de espanto não se desse o caso de o marido ser incoercivelmente esbanjador com ela. Apesar disso, teve de viver uns anos na Jamaica, pois então, algo que não lhe agradou por aí além já que se queixava de suar demais. E, convenhamos, suar demais é coisa para apanhadores de cana de açúcar e não para uma dama com tantos predicados. Aileen era, aqui para nós que ninguém nos lê, uma queixinhas. Em 1925, recusou um papel na segunda versão de Ben-Hur (houve uma primeira de apenas 15 minutos em 1907), ainda sem esse grande canastrão que se chamava Charlton Heston (essa foi a versão de 1959), sob o pretexto de que não tinha paciência para estar a levar com poeira na cara durante todos os dias de filmagem. Era mais moça de ares condicionados, se me entendem.
Há que dizer com a máxima das seriedades: Mrs. Pringle nunca concitou as simpatias dos seu colegas de Hollywood. Tinha o nariz demasiado empinado, se me faço entender. No início da carreira andou um bocado aos caídos, de filme irrisório para filmes mixos, até lhe sair a lotaria de surgir como figura secundária em Stolen Moments, realizado por James Vincent, em 1920, um dramalhão mudo de fazer chorar pedras da calçada, com a então famosa soprano e atriz Marguerite Namara, e com a ascendente estrela Rudolph Valentino. O papel de Aileen era meio obscuro, o de uma brasileira chamada Inez Salles (para os americanos os nomes portugueses e castelhanos valiam a mesma coisa) a quem cabia a fortuna de beijar Valentino nos beiços. Rudolph atingiu a celebridade um ano mais tarde, com Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, de Rex Ingram, quando ainda muitos se lembravam da cena osculatória. E madame Pringle, que era tão ignorada que surgiu nos créditos de Stolen Moments como Aileen Savage, passou a surgir em películas mais credíveis. Quatro anos depois atingia o pico como protagonista de Three Weeks, dirigido por Alan Crosland, baseado no romance com o mesmo título de Elinor Glyn. Desempenhava a personagem da Rainha da Sardália, casada com o brutamontes do Rei Constantino II, um bandalho devasso do qual foge, refugiando-se na Suíça e nos braços do seu amante, o jovem inglês Paul Verdayne, na tela Conrad Nagel. A fantasia não tardaria a misturar-se com a realidade, como tantas vezes acontece nas nossas existências e nas dos outros…
Apesar de mudo, o filme também ficou famoso por toda a gente ter conseguido ler nos lábios de Aileen uma frase assassina dirigida a Nagel na cena em que ele a carrega ao colo para a alcova: «If you drop me, you bastard, I’ll break your neck». Nada de finesse, há que convir. Houve quem jurasse a pés juntos que tal episódio nunca houvera ocorrido, mas bastava puxar, como se diz, o filme para trás. E na sua História do Cinema, The Movies, publicado em 1970 pela editora Simon and Schuster, e escrito por Richard Griffith e Arthur Mayer, um magnífico auxiliar para quem se lembrar da tontaria de escrever sobre Estrelas Perdidas de Hollywood, a decifração labial surge como confirmada. Mas também seria para o lado em que ela dormia melhor. E eu não vi o filme.

Num Colete de forças
O sucesso não fez bem a uma mulher que já se tinha a si própria em grande conta. E, dessa forma, ganhou a embirração das atrizes suas contemporâneas. A juntar a isso também não se escusava a soltar uns dichotes desagradáveis, alguns tão cáusticos como destilação do acónito e muito aproveitados pela imprensa. Talvez a altivez (desculpem lá a aliteração) encantasse os homens, mas foi desencantando o marido. Como granjeara como amigos gente da cultura americana dos anos 20 – Carl Van Vechten, o fotógrafo da Harlem Renaissance; o decadente Joseph Hergesheimer, escritor reputado; Rupert Raleigh Hughes, escritor, músico e guionista; Ralph Barton, caricaturista e cartoonista; o não-precisa-de-apresentações George Gershwin, que compôs muito na casa de Aileen em Santa Mónica; Henry Louis Mencken, jornalista, ensaísta e, sobretudo, um grande apepinador, por exemplo -, começou a ser tratada como The Darling of the Intelligentsia, ou a menina querida da intelectualidade, se optarmos por uma tradução livre. Claro que o epíteto foi escolhido para a diminuir, sugerindo que essa amizade não fazia dela nenhuma intelectual.
Com Mr. Pringle nomeado Governador-Geral da Jamaica, o casamento deteriorou-se e começaram os habituais boatos. Que era muito vista na companhia do já citado Mencken; que estava apaixonada por Mencken; que era amante de Mencken e por aí em diante tanto ao gosto dos tablóides. O ano de 1926 ficou marcado pelo seu muito difícil divórcio de Charles McKenzie Pringle.
Até que enfim divorciada, Aileen não perdeu o Pringle. Era seu nome de palco, já chegara ao topo com ele, iriam juntos em direção ao ocaso, tal como nas aventuras de Lucky Luke. Cimentou uma amizade forte com Lucille Fay LeSueur, mais conhecida no cinema por Joan Crawford, e com Greta Lovisa Gustafsson, a Greta Garbo, com a qual disputava partidas de ténis, e passou a ser mais falada por isso do que propriamente pelos seus papéis. Tal como aconteceu a muitos, o som desfez o que restava da famosa Aileen Pringle, e ela só voltou à ribalta depois de quase vinte anos quando anunciou o noivado com James Mallahan Cain, jornalista, escritor de romances negros e grande beberrão, autor do livro O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes, que a maior parte das pessoas não leu mas viu o filme. Com uma indiscutível nonchalance, James respondeu numa entrevista que concedeu ao New York Times à pergunta «Já acabou o seu último livro?» com: «Não. Tenho estado casado». Concordarão comigo se disser que esse “estado casado” não duraria muito tempo. E têm razão: Começou em Agosto de 1944 e terminou em Setembro de 1946. A sentença final, no entanto, foi dada por ela: «Se tivesse continuado casada com esse maníaco já há muito tempo que estaria dentro de um colete de forças em vez de vestir a nova moda de Nova Iorque». James morreu em 1977, e Aileen sobreviveu o suficiente para, digo eu, não continuar a moer ressentimentos. Só deixou este mundo a 16 de Dezembro de 1989 e já não era segredo que o seu cabelo loiro era apenas substituto da cabeleira negra com que passou toda a mocidade.