Há uma diferença entre o primeiro e este novo mandato de Donald Trump. “Se no primeiro era visto como um populista rico que sabia misturar muito bem duas modalidades de populismo: o cultural ou identitário – em que falava para os verdadeiros americanos e via nos estrangeiros os seus principais inimigos – com algumas características do populismo sócio-económico ao dizer que era a voz dos deixados para trás, designadamente dos mineiros e daqueles que tinham ficado sem os seus empregos, revelando que Trump não era construtor do sistema, mas resultado de um sistema, agora estamos perante mais do que isso”, diz ao i, José Filipe Pinto.
De acordo com o especialista em relações internacionais, esta nova versão – Trump 2.0 – “é alguém que ambiciona ser o construtor de um novo sistema”. E acrescenta: “Neste momento, Trump deixou de ser uma incógnita e passou a ser uma ameaça para o modelo da democracia representativa. Não temos aqui já um produto do sistema. Estamos perante alguém que ambiciona construir o seu próprio sistema”. Mas apesar de reconhecer que a mudança é sempre difícil, admite que esta “vai ser feita ao arrepio daqueles que têm sido os valores centrais do modelo ocidental da civilização”.
E esta nova versão também é visível na constituição da sua equipa governamental. “Todas as pessoas que são colocadas na administração são da sua estrita confiança mas, mais do que isso, não têm uma personalidade capaz de desempenhar um cargo político, estão perfeitamente descontextualizadas, parecendo erros de casting, atendendo a que não têm um passado, um conhecimento, uma especialização nas áreas que lhe são atribuídas”, mas diz, no entanto, que há uma exceção que se pode virar contra o Presidente norte-americano que é Elon Musk. “É o homem mais rico do mundo, mas já o defini como um adiantado mental e se temos dificuldade em perceber qual é o verdadeiro alcance daquilo que pretende Donald Trump ainda menos percebemos qual é o modelo preconizado por Elon Musk. Donald Trump convidou-o apenas no sentido de diminuir as despesas e aumentar aquilo a que podemos chamar de eficácia da administração, no entanto olhando para as últimas decisões de Elon Musk pode ser alguém que pode sair fora do controle de Donald Trump”, refere ao nosso jornal.
E explica esta incerteza: “É alguém que tem uma aproximação à extrema-direita europeia e pode fazer parte ainda da estratégia de Trump, mas depois a outras dimensões, como, por exemplo, a expedição a Marte, a aposta na inteligência artificial, o que revela que pode estar para além daquilo que Trump entende como o sistema que quer criar”.
Tríade negra da liderança
José Filipe Pinto admite que Trump está a criar a ideia de um sistema baseado na sua personalidade e que, no seu entender, estamos perante a tríade negra da liderança que é identificada por três características: narcisismo, maquiavelismo e psicopatia. “Que Trump é um narcisista, as provas são mais do que evidentes. E o melhor exemplo é quando percebemos que raramente utiliza os verbos e os pronomes a não ser na primeira pessoa do singular. Isto é mais do que uma visão egocêntrica é um narcisismo”.
Quanto ao maquiavelismo, o especialista em relações internacionais diz que essa característica é visível quando Trump “é alguém que entende que pode ditar as regras ao arrepio de todos os normativos existentes e faz desses normativos a interpretação que considera que serve os seus interesses, ou seja, substitui os princípios pelos interesses, tendo aí claramente o maquiavelismo propício para a intriga e que se pode consubstanciar na frase ‘se os meios acusam, os fins desculpam ou então os fins justificam os meios’.
Por outro lado, aponta para “alguma psicopatia, no sentido de precisar continuamente que valorizarem a sua autoestima, precisando constantemente de manifestações de apoio, de manifestações de simpatia e de aceitação”, salienta ao i.
Riscos
Para o responsável, esta nova versão do Presidente norte-americano é mais perigosa e dá exemplos: pretende sair dos Acordos de Paris e da Organização Mundial de Saúde. Decisões que, no seu entender, podem ser interpretadas com o facto de se ver como construtor de um modelo â sua medida, “o que poderá ser uma ameaça à democracia representativa, àquilo a que se chama de democracia liberal”, acrescentando que Trump se vê como sendo “alguém que pensa fora da caixa e que se julga acima das instituições e com isso a democracia norte-americana pode vir a sofrer uma grande alteração ou, pelo menos, um grande sobressalto”.
Outro perigo, segundo José Filipe Pinto, diz respeito à sua ideia de política externa, em que assenta na diplomacia do livro de cheques. “Por isso mesmo, está disponível para comprar a Gronelândia, para comprar o Canal do Panamá e já disse, inclusive, que está disponível para comprar o Canadá. Essa diplomacia do livro de cheques está inserida na tradição norte-americana, porque o atual território dos Estados Unidos, mais de metade foi comprado a outros países: França, Espanha, Dinamarca e México”, acrescenta, recordando que a última aquisição norte-americana foi a compra das Ilhas Virgens à Dinamarca na década de 40 do século passado. Essa diplomacia faz parte da tradição norte-americana e sem esta diplomacia, o território atual não contemplaria 50 Estados. Basta pensarmos que o próprio Alasca foi comprado pelos Estados Unidos ao Império Russo”, refere.
No entanto, o responsável chama a atenção para o facto de esta diplomacia do livro de cheques ser acompanhada por uma outra que é a diplomacia da canhoneira económica. “Isto significa que a palavra mais querida de Donald Trump é tarifa porque sabe que, aumentando as tarifas colocará outras economias em dificuldade. O modelo de política externa não se baseia em aliados internos nem em inimigos perpétuos, baseia-se em interesses perpétuos que é de pôr a economia norte-americana em primeiro lugar.
Negócios
Nasceu a 14 de junho de 1946, em Queens, Nova Iorque. O pai era um promotor imobiliário e é o quarto de cinco filhos. Frequentou o liceu num colégio interno privado na zona rural de Nova Iorque. Passou os dois primeiros anos da faculdade na Universidade Fordham de Nova Iorque, antes de completar a sua formação na Escola de Finanças e Comércio Wharton da Universidade da Pensilvânia.
Trump regressou a Nova Iorque e começou a trabalhar no ramo imobiliário do pai. Em 1971, tornou-se presidente de um conjunto de empresas familiares, que mais tarde veio a chamar-se de Trump Organization.
Como Presidente, Donald Trump irá receber um salário anual de 400 mil dólares (mais de 380 mil euros), valor que irá juntar à sua fortuna que, de acordo com o Índice de Bilionários da Bloomberg das 500 pessoas mais ricas do mundo, está avaliada na ordem dos sete mil milhões de dólares (mais de 6,6 mil milhões de euros). No entanto, o Wall Street Journal tem apontado para valores entre os 7,5 e 10 mil milhões de dólares (mais de 7,1 mil milhões de euros e mais de 9,5 mil milhões de euros), um aumento de 100% face à sua riqueza quando concorreu ao cargo em 2016 e 2020.
O mercado imobiliário, setor onde começou os seus projetos, é a principal fonte da sua fortuna. E não só. As 114,75 milhões de ações que detém na sua rede social, Trump Media – empresa que criou depois de ter sido banido do Twitter e do Facebook, na sequência do motim no Capitólio, a 6 de janeiro de 2021 – também contribuem para aumentar a sua riqueza.
A estes negócios juntam-se ainda outros: carne bovina, vodka, aviação, jogos e sites de viagens.
O mundo das criptomoedas
Dias antes da tomada de posse, Trump anunciou o lançamento da sua própria criptomoeda, que tem o seu nome, o que provocou uma verdadeira corrida e acabou por subir para vários milhares de milhões de dólares em apenas algumas horas. Numa mensagem publicada na sua rede social Truth e no X (antigo Twitter) apresentou esta nova moeda digital como uma “meme coin” com um preço inicial de dez dólares (cerca de 9,52 euros).
É certo que não tem qualquer utilização económica ou transacional – concebida para capitalizar a popularidade de uma personalidade, de um movimento ou de um fenómeno viral na Internet – e é frequentemente identificada como um ativo puramente especulativo. “Este Trump Meme celebra um líder que nunca recua, seja qual for a situação”, surgiu no site oficial do projeto, referindo-se à tentativa de assassinato do candidato republicano em julho passado.
Logo a seguir foi a vez de Melania Trump, colocar online a sua própria criptomoeda com o nome de Melania. Trump tem prometido ser um “Presidente criptográfico” e a ideia é que aponte os criptoactivos como um imperativo ou prioridade nacional – uma formulação estratégica destinada a orientar as agências governamentais a trabalhar com o setor em causa. Aliás, em julho, foi o rosto de uma conferência de Bitcoin, onde prometeu fazer dos EUA a capital mundial dos criptoactivos.
Curiosamente, assim que tomou posse proibiu por intermédio de uma ordem executiva, a Reserva Federal (Fed) de desenvolver uma moeda digital. A ordem interdita “a criação, a emissão ou a promoção de uma moeda digital proveniente do um banco central” e impõe “a terminação” de todos os trabalhos em curso visando tal eventual lançamento. A possibilidade de desenvolvimento de um dólar digital tem sido um tema que tem motivado várias reflexões no seio da própria Fed, sem que tenha conduzido a qualquer decisão.