Churchill e Salazar. Uma relação de interesse e desconfiança

Churchill e Salazar. Uma relação de interesse e desconfiança


A neutralidade de Portugal durante a Segunda Guerra foi vista com bons olhos pelo estadista britânico. Mas as relações quase azedaram por causa dos Açores, e chegou mesmo a haver um plano para derrubar o ditador de Santa Comba


Um aristocrata, nascido num grande palácio de uma grande potência mundial; um filho de feitor de uma pequena aldeia rural do interior de Portugal. Os destinos de Winston Spencer Churchill e António de Oliveira Salazar haveriam de cruzar-se em 1940, mais ou menos na altura em que a Grã-Bretanha enfrentava a sua “hora mais negra”. Com a sombra do domínio nazi a estender-se sobre a Europa, Salazar declarara a neutralidade portuguesa, o que era uma excelente notícia para Churchill. Até porque não se tratava apenas de Portugal – a decisão de Salazar influenciaria também a vizinha Espanha de Franco, que manteria uma posição idêntica.

Note-se que Churchill não tinha em grande conta os países neutrais, sobre os quais dissera um dia:“Cada um deles tem esperança de que, se conseguir alimentar o crocodilo durante tempo suficiente, será o último a ser comido por ele”.

Mas o caso de Portugal era um pouco diferente. A 24 de setembro de 1940, o primeiro-ministro britânico escreveu mesmo ao ditador português a agradecer a posição e a felicitá-lo: “Segui com a maior simpatia e admiração os esforços por si feitos para evitar que a guerra se alastrasse à Península Ibérica. Como tantas vezes ao longo da Aliança Anglo-Portuguesa, os interesses britânicos e portugueses são idênticos nesta questão vital”. E em 1941 Salazar recebia (em Coimbra), o doutoramento honoris causa atribuído pela Universidade de Oxford.

Além de Espanha, que se inclinaria mais para o Eixo nazi-fascista, e que por isso era tão importante manter afastada da guerra, havia a questão dos Açores, uma plataforma atlântica da maior importância (como haveria de ficar demonstrado no Dia D) e que envolveria longas e tensas negociações.

“atitude benevolente” 

“Churchill adotou uma atitude benevolente face à ditadura fascista estabelecida por Salazar em Portugal em 1932, provavelmente por considerações estratégicas, uma vez que a ameaça de uma tomada do poder pelos comunistas parecia remota, ao contrário de Espanha”, assinalou o historiador Antoine Capet, professor da Universidade de Ruão, no artigo “The Creeds of the Devil”: Churchill between the Two Totalitarianisms, 1917-1945 (‘Os Credos do Diabo’:Churchill entre os dois totalitarismos, 1917-1945), disponível na página da International Churchill Society.

“Salazar tinha dois ativos inestimáveis:a sua falta de agressividade e a possessão dos Açores, uma posição capital a deter na Batalha do Atlântico. Churchill tinha ficado obcecado com a devastação provocada pelos submarinos alemães na guerra de 1914-1918, e não restam muitas dúvidas de que estas considerações estratégicas pesaram na seu tratamento complacente de Salazar, que de facto cumpriu a sua parte do acordo ao permitir à Grã-Bretanha ocupar os Açores enquanto a guerra durou”, continua Capet. “Não há motivos para crer que Churchill tivesse quaisquer ilusões em relação a Salazar, e ainda menos que sentisse algum tipo de empatia por ele ou pelo regime. Simplesmente, Churchill acreditava evidentemente que tinha pregado uma partida a Hitler ao virar o jogo contra ele, com um ditador fascista que participava indiretamente na luta britânica contra os submarinos da Alemanha nazi. Churchill nunca deixou escapar uma oportunidade de enganar os seus opositores, mas no seu discurso na Câmara dos Comuns, anunciando esta esplêndida vitória diplomática em 12 de Outubro de 1943, Churchill teve outro motivo para se alegrar, uma vez que o acordo com Salazar foi naturalmente apresentado como um acordo com Portugal, o mais antigo aliado da Grã-Bretanha, como sempre foi e é apresentado”. 

O estadista começou o seu discurso à Câmara dos Comuns, a que o seu pai tinha em tempos presidido, com estas palavras solenes:“Tenho um anúncio a fazer a esta Casa que resulta do Tratado assinado entre esta Nação e Portugal no ano de 1373 entre Sua Majestade o Rei Eduardo III e o Rei Fernando e a Rainha Leonor de Portugal. Este acordo durou mais de 600 anos e não tem paralelo na história mundial. Devo agora anunciar a sua mais recente aplicação”. Embora vigorasse em Portugal um regime próximo do fascismo, a velha aliança não era beliscada.

“Um homem muito complicado” 

Mas a atitude dos britânicos para com os portugueses ao longo da guerra não foi isenta de oscilações. “Julgo que os britânicos, com a guerra a encaminhar-se para o fim, lidaram muito mal com os portugueses e com Salazar”, disse em entrevista ao Nascer do SOL o historiador Neill Lochery, autor do livro Lisboa – A Guerra nas Sombras da Cidade da Luz – 1939-1945. “Foram cautelosos, porque queriam continuar a ter acesso permanente aos Açores, e também porque não eram estúpidos. Percebiam que era provável que viesse aí uma guerra fria com a União Soviética, e por isso não queriam hostilizar os portugueses e Salazar, cujas opiniões sobre o comunismo até estavam em sintonia com as da aliança ocidental em geral”.

No Reino Unido, Salazar era descrito como “o ditador matreiro”, devido às suas posições ambíguas e à sua capacidade para manter um equilíbrio descomprometido entre o favorecimento dos britânicos e a não hostilização dos nazis, a quem durante uma boa parte do conflito continuou a ser vendido volfrâmio, em troca de ouro com grande probabilidade extorquido aos judeus atirados para os campos de concentração. “ODoutor Salazar é um homem muito complicado”, diria o diplomata Anthony Eden, futuro primeiro-ministro e figura muito próxima de Churchill, ao embaixador português.

Ainda assim, prossegue Lochery, “Churchill era muito mais benevolente em relação à posição de Portugal do que em relação à Suécia, por exemplo. Há duas formas de olhar para a neutralidade portuguesa. Dois enquadramentos possíveis. Um é o da moral. É legítimo o país ter vendido volfrâmio aos alemães? É legítimo ter permitido às empresas alemães operarem em Portugal? É legítimo ter lucrado com a guerra, em especial bancos como o Espírito Santo? Assim que se tornou claro a forma como o Terceiro Reich tratava os judeus na Europa ocupada, deveria ter Salazar parado de fazer negócio com os alemães e ter deixado de aceitar ouro alemão, pois sabia que tinha proveniência duvidosa? Esse é o enquadramento moral. Outro enquadramento possível é o da segurança. Aí Salazar fez tudo o que podia para garantir a segurança e a integridade territorial do país. E podia citar factos da Guerra Peninsular, em que as duas potências europeias da época, a França e a Grã-Bretanha, combateram uma guerra sangrenta em solo português, que provocou um número significativo de vítimas e teve efeitos devastadores na economia e na agricultura, muitos deles causados pelos britânicos e pela sua política de terra queimada. E depois poderia citar a Grande Guerra, em que os portugueses combateram ao lado dos aliados, causando tremendos tumultos políticos, sociais e económicos em Portugal. E levando, ironicamente, à ditadura militar e ao colapso da República. Salazar podia argumentar que a sua principal preocupação era evitar que a política internacional voltasse a fazer estragos em Portugal. Do ponto de vista da segurança, esse era o principal objetivo. Quanto à posição de Churchill, penso que oscilava entre estes dois polos. Julgo que, lá no fundo, Churchill compreendia que a principal preocupação de Salazar era manter a integridade territorial de Portugal e do império português. E, de tempos a tempos, quando lhe convinha, invocava o argumento moral: ‘Doutor Salazar, tem de parar de vender volfrâmio aos alemães. Está a prejudicar a causa aliada’. Portanto Churchill era seletivo nos critérios que usava para lidar com a neutralidade portuguesa. Depois da guerra, quando o ministro dos Negócios Estrangeiros inglês disse ‘Vejam bem! Salazar pôs as bandeiras a meia-haste pela morte de Hitler. Enviou uma carta de condolências ao povo alemão!’, Churchill respondeu: ‘Tudo bem… Não se esqueçam que ele correu um grande risco ao dar-nos acesso aos Açores sem lhe darmos garantias de proteção’. Olhando para o seu depoimento e para os documentos, Churchill foi bastante compreensivo para com a posição portuguesa”, conclui o historiador.

O projeto de derrube de Salazar 

Mas houve um momento em que os britânicos parecem ter estado perto de perder a paciência para com o regime português. “Em maio de 1944, o Foreign Office britânico [ministério dos Negócios Estrangeiros] chegou mesmo a planear o derrube de Salazar, contando para isso sobretudo com o apoio dos oficiais próximos do general Carmona e dos meios militares monárquicos”, escreve Yves Léonard, historiador e biógrafo de Salazar, em História da Nação Portuguesa. “Após as tensões suscitadas pelas negociações sobre os Açores em 1942 e 1943, período durante o qual o embaixador de Portugal em Londres, Armindo Monteiro, muito mais do que Salazar, contou com a confiança de Anthony Eden, o projecto acabou por ser abandonado, Winston Churchill e o Foreign Office acabaram por considerar o regime salazarista um mal menor e que a permanência de Salazar no poder continuava a ser a melhor garantia de estabilidade e de preservação dos interesses britânicos tanto em Portugal como nas colónias.” Salazar manteve-se no poder até à queda em agosto de 1968, ao contrário de Churchill, que logo a seguir à guerra perdeu as eleições para os Trabalhistas.