O futuro precisa de ajuda para vir até nós. Algo que simplesmente se desenrola de acordo com o planeado não é o futuro, mas um regime de juros, apenas um atravessamento do mesmo, cancelando ou submetendo aos seus desígnios esse elemento de renovação que o tempo permite. A grande arma de Oliviero Toscani era a polémica, uma espécie de rapto da atenção, o ataque aos códigos, trazendo para o centro da relação consumista um elemento indigesto, doloroso. Era um genial provocador, o raro exemplo de um publicitário que virava sobre a cabeça aquela função, fazendo dela uma forma de arte. «Detesto a fotografia artística», disse em 2010. «Uma fotografia torna-se arte quando provoca uma reação, seja ela de interesse, curiosidade ou atenção».
Ele entendeu que a única forma de atingir a consciência era produzir o escândalo, da forma mais inesperada, e sem concessões. E se é inegável que as suas imagens serviram o propósito de construir uma marca de roupa, aumentando as suas vendas em todo o mundo, também é certo que aquelas campanhas publicitárias da Benetton atiravam o cadáver da época para cima da mesa de jantar. Eram imagens que sacudiam, provocavam choque, causavam mal-estar, virando o regime de distração contra si mesmo. De súbito, nas páginas de uma revista ou num imenso outdoor, ali estava a ferida infeta, os elementos da crueldade e degradação da nossa realidade, de tal modo que a reação dos seus críticos foi quase sempre a censura. Invariavelmente, ficavam expostos os enormes pruridos, a hipocrisia, o receio de que se espreitasse por detrás do cenário.
Projeção mundial
Em grande medida, o que a comunicação empresarial nos oferece há décadas são cenários, idílios cretinizantes, álibis para a nossa deserção. Toscani fez um furo nesse filme dos grandes cartazes, nesse ludíbrio constante e espetacular. Ele trouxe para ali tudo aquilo que esses cartazes procuram esconder. Destapou os elementos sórdidos que revelam um fundo grotesco. Revolveu de forma inclemente todas essas modas sentimentais, tudo aquilo que nos exaure os sentidos e a capacidade de sentir o ridículo das mensagens, esse contágio que embota a consciência. A partir dos anos 1980 e ao longo de três décadas mostrou a sua inteligência diabólica pela capacidade de se servir da iconicidade das imagens para perturbar em vez de comover ou seduzir, chegando a todo o mundo com campanhas que fizeram da marca italiana Benetton uma espécie de jornal de parede, que apontava o dedo nas direções mais inesperadas. Assim, o cartaz publicitário ficou exposto pela relação ordinária que estabelece connosco, pelo modo como faz parte do esforço de afastamento, dessa separação lucrativa daquilo que outrora fora uno. «É desta cisão que o mercado depois se investe, é esta cisão que ele mediatiza e explora, modelando dia após dia a utopia de um mundo onde cada homem passa a ser exposto, em todos os níveis, somente ao mercado» (Tiqqun).
Um genial provocador
Ele desprezava o género de campanhas que operam como estimulantes para dirigir o ânimo consumista neste ou naquele sentido, sempre atrás de algum efeito ilusório. Toscani provou que se pode projetar uma marca através desse perigoso idealismo que busca a confirmação da beleza na sua antítese. No fundo, expos como o atual ethos empresarial funciona pela captura da atenção gerando sempre no consumidor um sentido de falta, construindo essa perceção de si mesmo como inábil, fraco, exposto, sempre sujeito ao julgamento dos outros, a ser olhado de forma impiedosa. E assim se apaga o mundo à sua volta. Em vez de ganhar dimensão o mundo, toda a comunicação das marcas se dirige a um ser isolado, que poderia assumir o controlo do seu destino se ao menos vestisse a indumentária certa, tivesse o corte de cabelo apropriado, conduzisse o carro que rasga o seu percurso numa faixa própria, dando vontade aos outros de desligarem a ignição e interromper a marcha para assistir boquiabertos à sua passagem.
O cartaz publicitário, na verdade, é esse separador que realmente abre as notícias de todos os jornais, e ali estava um publicitário que impôs aos consumidores que despertassem das suas fantasias insubstanciais, e voltassem a encarar o mundo, sendo levados a pensar nos «assuntos com os quais, por norma, os anunciantes não querem lidar». Sempre que se reúne um desses conselhos de comunicadores e estrategas de marketing, o discurso recai sobre o que o consumidor quer e não quer. Isso faz parte da ilusão, fingir que o consumidor exprime um desejo, quando o que se discute verdadeiramente nesses gabinetes é como gerar um grau de hipnose em que todas as relações humanas passam a estar mediadas pelo mercado.
As campanhas de sucesso
«A publicidade tradicional diz que, se comprar um determinado produto, ficará bonita, sexualmente poderosa, bem-sucedida. Essa treta não existe verdadeiramente», defendia Toscani. Fica claro como o homem que morreu esta segunda-feira, aos 82 anos, foi um dos artistas mais consumados da sua geração, alguém que percebeu que a arte deve-se estar nas tintas para o regime amorfo dos museus, das zonas onde o público se dispõe a manifestar as suas inclinações e a sua apreciação estética dos fenómenos, a arte deve dirigir-se para fora, intervir nas zonas onde a atenção segue diariamente sem grandes sobressaltos, provocando a verdadeira surpresa da existência.
Tocou os temas que causavam o maior desconforto ou até pavor, como a sida, a má-consciência que continua a evitar o tema do racismo, a pena de morte, a degradação da imagem pessoal que está por trás dos distúrbios alimentares, o patrocínio constante dos conflitos civis e entre nações. Entre as campanhas que alcançaram maior repercussão, contam-se aquela que mostrava uma mulher negra a amamentar uma criança branca (1989); um homem a morrer de sida e que Toscani batizou de ‘La Pietà’, em referência à clássica escultura homónima de Miguel Ângelo; uma freira a beijar um jovem padre (1991); reclusos no corredor da morte nos EUA (2000) e uma jovem que sofria de anorexia (2007). Toscani havia revelado em agosto passado, numa entrevista ao jornal Corriere della Sera, que padecia de amiloidose, doença rara e incurável provocada pela acumulação de proteínas defeituosas e de que o organismo não consegue livrar-se.
Levou da vida o que quis
Foi já num estado de saúde grave que, na sexta-feira, fora internado num hospital. Ao longo do último ano, Toscani perdera 40 quilos, e a fotografia que ilustrava a entrevista no jornal italiano tornava claro que estava perto do fim. Mas levou da vida o que quis, tendo-se dedicado nos últimos anos a criar cavalos, a plantar vinhas e, de algum modo, a estar em ligação com a substância do tempo. Na tal entrevista deixou claro que dispensava a dor, mas que, de resto, não tinha medo de morrer.
Nascido a 28 de fevereiro de 1942, neto de um anarquista, terá aprendido muito com o pai, Fedele Toscani, um célebre repórter que fotografou o cadáver exposto do ditador Benito Mussolini, virado de cabeça para baixo, no centro de Milão, em abril de 1945. Estudou em Zurique, na Suíça, e aprendeu o ofício trabalhando para várias revistas de moda, tendo um papel importante na afirmação de modelos como Monica Bellucci. Mas foi ao assumir a direção criativa de Benetton que teve a possibilidade de realmente marcar uma diferença, sendo que, recentemente, quando questionado sobre qual a fotografia que escolheria se tivesse de destacar apenas uma, respondeu que o seu trabalho procurou uma unidade de propósitos, e que, num mundo que só gera átomos, a diferença está aí, numa intervenção pensada no conjunto e pelo empenhamento. «Não é uma foto que faz história, é a escolha ética, estética e política», disse.