Como se tivesse atravessado um rio saltando de pedra em pedra, Carolina chegava a Portugal com uma folha de revolucionária sem mancha. O fracasso da guerra civil de Espanha, e a aliança entre Estaline e Hitler, provocara mossas profundas no comunismo nacional, que parecia uma manta de retalhos. O partido tenta arranjar-lhe local mais seguro do que as casas de família. É Cunhal – uma estrela em ascensão e que tal como ela chegara nesse ano ao Secretariado – quem fica com essa missão. Através de um anúncio no Jornal de Notícias, aluga-lhe um quarto na casa de uma viúva na rua Pinheiro Chagas, em Lisboa. Carolina passa por sua noiva, assume novo papel falso: chama-se agora Maria Luísa e é órfã de um oficial do Exército.
Também a Cunhal, dois anos mais novo, a sua beleza não terá sido estranha. Têm ambos em comum o mesmo idealismo, pureza de convicções e incapacidade de virarem costas aos amores. Madalena Soares – a segunda mulher de Ruben de Carvalho, que privaria com Carolina quando esta passava já pela implacável marginalização típica da escola soviética – traça-lhe o perfil amoroso: «Diz-se que teve uma relação amorosa com o Álvaro. Eu intuo isso das conversas que tive com o Ruben e com o Ary dos Santos. E ela, mesmo depois de tudo o que se passou, sempre falou dele com muito respeito e afeto».
O PCP é uma organização mal oleada. A dupla não escapa durante muito tempo à apertada vigilância da PIDE. Os delatores estão por todo o lado. E, a 30 de maio de 1940, são ambos presos.
Sete anos depois da primeira prisão, a dirigente comunista regressava à cadeia das Mónicas. Numa cela ínfima, fica 15 dias em isolamento total. Sem dormir há dias, o medo e a obsessão de responder certo às mesmas perguntas com que, para a apanharem em falso, diariamente a bombardeavam, esgotam-lhe os nervos. As suas recentes experiências tinham-na dececionado. A revolução espanhola fracassara, muitos dos seus antigos companheiros estavam nas cadeias franquistas e outros tinha-se suicidado. Pior é a imagem da filha, que deixara na URSS e que exerce sobre ela uma imensa pressão.
O AGENTE QUE A INTERROGOU NA ANTÓNIO MARIA CARDOSO
Treze dias depois, começa o vaivém entre os calabouços e a António Maria Cardoso, a sede da secreta. A dirigir os interrogatórios, estão José Catela, o secretário-geral da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), antecessora da PIDE, e o inspetor Júlio Almeida. O primeiro, saído das fileiras dos oficiais do exército, era um brutamontes escolhido pelo regime salazarista para dirigir os serviços e reprimir com violência a escalada do comunismo. Tem prestígio nos serviços, onde é condecorado, mas zero de perspicácia para enredar a combatente comunista. Júlio Almeida, esse, é perigoso. Como ela, é um lutador – mas está do outro lado da barricada. Mediram-se. Entre eles, um mundo a duas cores: o dela, que acredita na construção de um futuro perfeito, de igualdade e democracia, através da ditadura do proletariado; e o dele, um fura-vidas, sem ideologia, apto apenas para lutar pela sobrevivência.
Júlio de Almeida vinha de famílias sem teres nem haveres e subira a pulso. De soldado raso chegara a cabo e daí a guarda do Aljube, onde entrara em 1931. Até chegar àquela polícia, fora um pulo.
Na cadeia política, onde as torturas infligidas a membros do Partido Comunista estão taco-a-taco às que viriam a ser utilizadas pela Gestapo, anda à coca de um pequeno deslize dos prisioneiros para trepar na carreira. Tem palestra, sabe insinuar-se e obter confidências.
Dois anos após a sua entrada ao serviço, já acumulara o seu terceiro louvor e chama a atenção da secreta que tutela as prisões políticas e gaba o seu desempenho: «Soube tomar as medidas certas que levaram a que se efetuasse a prisão de um perigoso agitador que sabia interessar a esta polícia apesar de não ser missão de que estivesse encarregado.»
Em 1933, é chefe de guardas. Mas tem demasiada pressa. Casara e ganhara progenitura, e, para aliviar a economia familiar, utiliza os subordinados para levarem a sua casa ou ao emprego do pai, operário dos caminhos de ferro, refeições que desvia da cantina.
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CORTEJAR AS MULHERES DOS PRESOS
Sabe tirar partido da ‘legalidade’ do regime – e, sempre que pode, arranja esquemas para aumentar o fraco ordenado. Num meio concentracionário, o sucesso causa cobiça e é desmascarado. Em 1936, uma série de denúncias chegam ao topo. Um dos colegas, ouvido num processo disciplinar que lhe é movido, revela-lhe as manhas: «Quando no Aljube se realizaram obras, tirou para si um ou dois cestos que um dos operários ali tinha guardados para os vender juntamente com outros.»
Os expedientes do chefe de guardas não ficam por aqui. As mulheres exercem nele um fascínio tão poderoso como o dinheiro, e sabe tirar proveito das fragilidades das familiares dos presos. O mesmo denunciante revela-lhe o caráter: «Nós, às vezes, tínhamos ordens para não deixar as visitas levarem fruta ou outras comidas aos presos mas, quando aparecia uma senhora nova e bonita, ele revogava a ordem. Também foi muito reparado entre os guardas o seu porte menos correto com algumas senhoras porque, em vez de as atender com respeito, fazia-lhes galanteios. Muitas não gostaram, como foi o caso da mulher do preso Bogarim, que me disse a mim, e a outros guardas, que nunca mais ia ao gabinete do Almeida porque ele se tinha portado incorretamente com ela.»
Para a PVDE, que detém o poder disciplinar, o comportamento do chefe dos guardas merece apenas uma repreensão: «Decide-se punir o chefe de guardas com repreensão averbada por nem sempre ter mantido o aprumo e a linha de conduta correspondente à sua situação oficial, tomando por vezes atitudes que, não sendo bem apreendidas pelos seus subordinados, os levaram a tirar ilações menos justas e lisonjeiras. Não é severamente punido atendendo a que se trata de um funcionário que possui excelentes qualidades profissionais e aos serviços que tem prestado e ao seu bom comportamento anterior.»
Defeitos destes, naquele meio, são qualidades. À inteligência e ganância, Almeida aliara a sedução, uma arma fortíssima naquela área. E, apesar da punição, dois anos depois, chega a agente da PVDE, e mais tarde a inspetor.
UMA PAIXÃO IMPROVÁVEL
Quando Carolina é presa, é este homem que tem pela frente nos interrogatórios na sede da PVDE, na António Maria Cardoso. São da mesma idade. Ele é alto, moreno, muito aprumado. Um galã tipo Cary Grant.
Ao medirem-se, ambos sentem um impulso incontornável. Habituados a não brincar com o fogo, acabam por se apaixonar desviando-se completamente das suas rotas. Madalena Soares, a segunda mulher de Ruben de Carvalho, que viria a cruzar-se com ela mais tarde, faz a resenha da tragédia shakespeariana: «Foi uma grande história de amor, viveram juntos 10 anos. Para nós, pode ser completamente incompreensível. É difícil aceitar que uma pessoa como ela, com o seu passado, tenha tido um relacionamento amoroso com alguém sem os seus princípios básicos.»
Parecia que as promessas que a tinham enchido de fé na juventude se desmoronavam. Ou até se pervertiam. Debaixo de um interrogatório cerrado, resiste um mês. Com a sensação que a tinham esvaziado por dentro, deixa que lhe arranquem nomes, endereços. Entrega Cunhal e pela primeira vez assume ter estado na URSS. Retrata-se. «Depois de ter entrado ilegalmente no país e com medo de vir a ser presa, vi-me obrigada a reatar ligações que não desejava nem desejo continuar a manter. Verifico hoje que não sou uma revolucionária e estou disposta a retirar-me da atividade política, suceda o que suceder.»
A DESGRAÇA DE FALAR NA PRISÃO
Carlos Brito, que conheceu também as prisões salazaristas – com a diferença de nunca ter claudicado –, avalia os estragos que a dirigente comunista provoca no partido: «O auto que me mostrou dá conta de amplas declarações sobre o exterior, algumas talvez inventadas para se dar importância. Outras graves, sobre a localização de camaradas, com os respetivos nomes, países, processos e métodos de trabalho. Mais graves, ainda, parece-me, são as declarações que faz sobre o funcionamento do partido no interior, pelas armas que forneceu à PIDE. Nomes, localização, tarefas, métodos. Não se percebe se meteu algum camarada na cadeia. Vários estavam já presos. Mas outros, provavelmente, não e ficaram mais expostos. Imagino, como a conheci, o drama que depois viveu porque ela nunca deixou de ser comunista. A tortura e prisão tornam as pessoas muito frágeis. Deixou de ser ela. Conheci uma camarada que também falou quando esteve preso. Depois, quase se suicidou como pessoa. Gerou dramas tremendos. A tortura, a dor passam, a traição fica.»
Já que não podia ser a heroína perfeita, restava-lhe ser a cobarde absoluta. Carolina tinha considerado ser lógica e ideologicamente acertada a decisão levar a filha para a URSS. Como sobreviver agora aos sentimentos de culpa, de abandono, de traição, de vergonha? Tinha, pela primeira vez, uma missão pessoal: «Continuo sem notícias da minha filha, o que muito me pesa, embora me reconheça a culpada por uma situação que desejo, custe o que custar, liquidar».
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CUNHAL APONTA O EXEMPLO (NEGATIVO) DE CAROLINA
Um ano depois, em 1941, está em liberdade. Mas no PCP, que definha, é a sua derrocada. Cunhal não tolera quebras humanas. As feridas abertas no partido pelas consecutivas traições de funcionários ou elementos da direção levam ao extremar de posições. No manual sobre o comportamento que se devia ter nas prisões, o Se Fores Preso Camarada, escrito por ele nos anos cinquenta, relembrando o caso amoroso que Carolina tem com Júlio Almeida, dá-a como um dos exemplos a não seguir: «Lembra-te com horror daquelas miseráveis – Helena Faria e Carolina Loff – que, aceitando tais amabilidades, acabaram por trair o Partido e se tornaram amantes de polícias de informação, sendo hoje seres desprezíveis.»
Por cada vaga de prisões, são planos que se teciam e desteciam. E Carolina, para quem o partido até aí representara o papel tradicional da família, é expulsa. Enquanto o Comité Central trata de tapar a brecha aberta por ela, em 1941 sai da prisão e passa a viver com Júlio Almeida.
Estivera apenas um ano presa. Suspeita-se que a indulgência da secreta para com ela se devera a um ‘negócio’, uma transação, a conquista da liberdade em troca de revelações sobre o partido. A ela são atribuídos diversos tramas de espionagem. Um espião encaixa-se bem em qualquer papel. Em 1946, com os nazis KO, um agente da CIA sediado na Florida lança a suspeita: «Tenho informação digna de crédito que Carolina Loff é uma agente entre o fascismo espanhol e o português. Vai muito a Espanha e recentemente esteve lá.» E a Legião Portuguesa, convicta de que as fragilidades da antiga revolucionária podem reverter a seu favor, tenta tirar partido da situação: «Neste princípio, poderá ser que, ou mantendo a sua antiga simpatia, ou forçada pela situação da filha, prestar-se a um certo número de incumbências que nos sejam favoráveis.»
‘ELE AMOU-A LOUCAMENTE’
A sorte não se movia a favor da ex-dirigente comunista. Estava à mercê das vontades erráticas da história. O conflito mundial não tem fim à vista, o pacto germano-soviético e a visão estratégica de Estaline saíam furados. A Rússia fora invadida, e a filha está em parte incerta. Magda Fonseca, a prima que acompanhou esses momentos de angústia, guarda a impressão digital dessa dor: «Estivemos muito tempo sem saber da menina. Com as tropas alemãs às portas de Moscovo, eles remeteram as crianças para o interior, para uma República qualquer, em que ninguém sabia delas. Felizmente, foram assim salvas da guerra, porque eles eram todos filhos de republicanos, sobretudo os que tinham combatido na guerra civil de Espanha».
Os anos seguintes foram para Carolina um período negro que teria querido apagar, não só da sua memória mas da realidade. Aparentemente, perdera a coerência. Entre os seus, tornara-se uma pária. Magda tira a temperatura à época: «Quando ela foi expulsa, houve muita gente, até da família, que deixou de lhe falar. Até eu sofri pressões para não me encontrar com ela. Vi o Júlio Almeida ainda algumas vezes, mas nunca o achei interessante. Confesso que sempre tive um parti-pris em relação a ele. Mas ele amou-a loucamente.»
Seria Carolina – que, pelos seus ideais, correra desde a adolescência toda a espécie de riscos em Portugal, na Rússia e na Guerra Civil de Espanha – uma impostora ou, no meio do seu desespero para recuperar a filha, terá apenas utilizado o ex-inspetor da secreta para a tentar reaver? Carlos Brito, sem uma visão maniqueísta da história, tem a sua leitura: «Esta história é única. Algo que não se imaginava que pudesse acontecer. Afinal, o monstro podia amar e a heroína também. O Júlio Almeida teve de ter um impacto grande nela. Acho que ela era uma mulher muito física. Talvez esse lado a tenha dominado. O que é espantoso porque, mais tarde, ela volta para o campo da oposição, e da oposição avançada.»
INSPETOR ABANDONA A PIDE
O peso que cada um deles terá tido no destino do outro não é fácil de deslindar. Também a vida de Almeida, um homem orientado até aí apenas pelo dinheiro, sofrera uma volta de 180 graus. Carolina tornara-se na sua única referência. Num país clerical, intolerável e intolerante, que conhecia bem, o inspetor abandona a família e a secreta.
A nove de setembro de 1945, com os festejos da derrota de Hitler, quebra o vínculo com a PIDE, através de um airoso requerimento: «Tendo eu a necessidade de tratar com urgência de um assunto de ordem particular e interesse familiar que é incompatível com a função que desempenha e além disso, encontrando-se muito abalado do sistema nervoso, que exige um […] tratamento regular, vem muito respeitosamente requerer a vossa excelência que se digne conceder-lhe licença ilimitada.»
Almeida aprendera a reconhecer os reflexos éticos, a corrigir a história. O regime passa a ter razões para desconfiar dele. Para a CIA, o espião fascista durante a II Guerra passara a trabalhar para os Aliados. Em 1946, o agente sediado na Flórida deixava claro a influência que Carolina exercera sobre ele desde que saíra da prisão, cinco anos antes. Estava do lado dos Aliados: «Durante os anos 42, 43 e 44, Júlio Almeida foi muitas vezes convidado pelos alemães para trabalhar para os seus serviços, mas penso que nunca aceitou, pelo contrário. Em 1943/944, favoreceu o serviço de Mr. Rene de Reitenbaxh e Mr. Gray, fornecendo-lhes elementos sobre os sul-americanos e os do Eixo [nazis]. Consta que é amigo de Mr. Porto da firma pró-americana e de outros americanos da secção comercial americana.»
OS PIORES ANOS DA SUA VIDA
Os anos que se seguiram, apesar de Carolina já ter vivido tempos terríveis, foram os piores da sua vida. Dotada de um estranho sentido da realidade que a fazia passar das ideias mais românticas às decisões mais firmes, reativa os seus contactos. Com o seu percurso, conhecia naturalmente muita gente.
Durante a II Guerra, Salazar, que fazia jogo duplo, dá guarida a muitos refugiados. Para Portugal são enviados espiões de todo o mundo. É junto da comunidade judaica, em Lisboa, que Carolina estabelece ligações que a levam ao paradeiro da filha. Entre eles o casal Spitz – suspeito, pela Gestapo e pela PIDE, de pertencerem à Rote Kapelle ou Orquestra Vermelha, uma rede soviética a operar na Europa Ocidental ocupada pela Alemanha.
O seu líder, Leopoldo Trepper, um judeu polaco, aliara a uma grande eficiência uma simplicidade notável. Destacava-se pela habilidade excecional na arte de quebrar a vigilância daqueles que os seguiam, e pelo recrutamento dos seus membros: na maioria hebreus, porque, segundo ele explicou, tinham uma conta especial a regular com os nazis.
É este grupo quem arranja emprego a Carolina como secretária nas minas da Borralha, uma exploração de volfrâmio, o metal que temperava a guerra, nas mãos de franceses. Mas só no final da guerra, em 1947, a ex-dirigente comunista consegue localizar a filha. Numa viagem imóvel ao passado, Magda explica como: «Ela só se reencontra com a filha quando a Helena tem 14 anos. Foi de comboio até Paris e daí para Amesterdão para contactar com pessoas que estiveram cá refugiadas. Quem a colocou em contacto com a filha foi um judeu holandês que regressara à capital. No fundo, a vítima de tudo isto foi a filha, que acabou por ficar sem mãe e pai, internada num instituto. Fez uma vida muito razoável na URSS, onde acabou por casar e ter filhos, mas não deixou de estar exilada.»
OS DOIS SOB VIGILÂNCIA
E para o amante de Carolina a vida também não está fácil. Perdera a confiança do regime e não encontra trabalho. Parecia sair com alívio da ambiguidade em que vivia. Depois de 10 anos de vida em comum, em 1958, decide aceitar um trabalho numa empresa em Angola. A separação não esmorece a relação entre ambos. Volta e meia, o ex-inspetor da PVDE regressa à casa que partilham.
Em plena ‘Guerra Fria’, as duas grandes potências disputam as zonas de influência sem entrar em confronto direto. O percurso de Carolina e Júlio Almeida levanta as suspeitas da CIA, que entende que a Rote Kapelle, que nunca fora completamente destruída, tinha sido reativada em Portugal. Com a secreta portuguesa, numa ação conjunta, os americanos tentam desmantelar a rede soviética.
Carolina e Almeida passam a estar sob vigilância cerrada. Entre os vários suspeitos, a ex-dirigente comunista passa a ter como nome de código Expectador-6. O responsável da investigação da CIA pede todas as informações na posse da secreta portuguesa: «Enviem todos os elementos que existam nos vossos ficheiros dos vários expectadores nomeadamente do Júlio Almeida. Ao Expectador-6 deve intercetar-se-lhe o correio e vigiar-se discretamente o ex-funcionário visitante de Luanda.»
Com a filha entrincheirada na memória, Carolina tenta colocá-la em Portugal. Restabelecera a relação com Helena, agora com 25 anos e formada em engenharia nuclear – e, através dos franceses das minas da Borralha, passa a enviar-lhe bens de primeira necessidade. Já só tem soluções práticas para a sua vida. Continua a jogar. Utiliza o seu passado conforme os seus interesses. Junto do ministro dos Negócios Estrangeiros, move influências. Pede que facilitem a entrada da filha em Portugal. Conseguira-lhe um passaporte soviético, mas faltava o mais importante. E requer: «Que o ministério intervenha junto das autoridades francesas para que à sua filha não seja negado o visto de entrada em França, onde permanecerá apenas alguns dias; e que o consulado em Paris lhe conceda um passaporte português para entrada no país.»
REGRESSO À URSS PARA VER A FILHA
Nada feito. Naquele meio, sabe-se demais. A correspondência é intercetada pela CIA. Mas Carolina não perdera as antigas qualidades. Continua a ser uma mulher muito calma, segura de si e dribla as secretas.
As vagas de purgas mantinham-se na Rússia. Antigos companheiros de Estaline morriam com uma bala na nuca, ou nos campos de detenção e de trabalhos forçados. Carolina que, com o seu passado, representaria um risco a eliminar, tem porta aberta para a pátria do socialismo. Com a sabedoria tirada da sua longa experiência, apanha boleias de amigos ou familiares fora da mira do regime que a levam de carro até Paris – e, daqui, através de velhas cumplicidades, chega a Moscovo. Volta e meia é apanhada. Ninguém sabe o que se passaria no mais íntimo dos serviços secretos portugueses. Curiosamente, nunca é presa. Em 1960, a polícia do Estado regista: «Armando de Figueiredo, agente de segunda classe, viajou no Sud Express procedente de Paris. Foi informado pela nacional Carolina Loff da Fonseca, que tinha ido de visita à URSS com a finalidade de visitar a sua filha. A referenciada era portadora de passaporte emitido pelo Governo Civil de Lisboa e nele constava o movimento das autoridades soviéticas. A mesma declarou que a sua intenção, no dia seguinte à chegada a Lisboa, seria apresentar-se nesta direção a explicar a sua ida à URSS.»
Carlos Brito, para quem estas movimentações são pouco ortodoxas, decifra: «Era difícil, sabendo que ela traiu, continuar a ter boas relações com ela. Só se compreendem estas viagens se ela estivesse ligada ao aparelho dos serviços secretos soviéticos. Há aí uma zona obscura que não se consegue decifrar.»
O medo e o instinto de sobrevivência são a essência da condição humana. Mas Carolina nunca se colocaria no papel da vítima. Traiu, nada o faria prever, e arcaria com as consequências. Enquanto o partido se dedica a liquidá-la da sua história e memória, ela continua a viver cada minuto e cada ação como uma verdadeira comunista.
CATARINA LEVA ARY E RUBEN PARA O PCP
Nos anos setenta, chegam às mãos de Carlos Brito, responsável da Direção da Organização Regional de Lisboa (DORL), novos recrutas – e espanta-se com a mentora que os arrebanha: «Começo a receber uma série de intelectuais que foram muito influenciados por ela e que queriam aderir ao partido: o Ruben de Carvalho, o Ary dos Santos, o Rogério Vieira (ator), Augusto Sobral (ator e dramaturgo), entre outros. Começo por reagir com desconfiança. As informações que tinha até aí eram horríveis. Ela tinha sido uma militante destacada, com atividade internacional, uma revolucionária romântica mas fora presa com Álvaro Cunhal e traíra. Entretanto, tinha-se passado muito tempo e nunca mais ouvira falar nela. E pergunto-me: ‘Por que é que esta mulher está a influenciar estes jovens?’».
Carlos Brito – que, no diálogo com a História, é um homem inquieto – decide investigar. Na primavera de 1972, num encontro em Paris com Álvaro Cunhal e Francisco Ramos da Costa para articularem estratégias contra Marcello Caetano, tenta esclarecer a situação. Mas cai doente. Em conversa com Cunhal, este percebe que o amigo não está bem. «Tens os olhos em brasa, vou comprar um termómetro.» Carlos Brito tinha mais de quarenta graus de febre. «Ele conseguiu que eu fosse visto por um camarada que era desertor e trabalhava num hospital. Lá me deu um antibiótico, mas tive de ficar na casa do Álvaro uma semana. Conversámos muito nesses dias e foi aí que lhe coloquei as minhas questões sobre a Carolina. Ele foi muito breve. Disse-me apenas que ela tinha sido uma grande militante.»
Por mais que corresse, o passado conseguia sempre ultrapassá-la. Mas a ex-dirigente comunista, agora vista como uma anti-revolucionária, não enveredara por um caminho de autodestruição. As várias incursões da PIDE pelo PCP dentro convidavam a tomar todos os cuidados. Carlos Brito recupera o fio da história: «Como dirigente, primeiro reajo com desconfiança: por que seria que aquela mulher estava a influenciar os jovens? Começo a falar com as pessoas. Uma delas foi o Ruben. E pela sua conversa percebi que ela tinha uma visão muito correta da luta de classes, da União Soviética. Duvido que fosse estalinista, porque as pessoas que nos chegavam influenciadas por ela não tinham esse cariz.»
ALMEIDA MORRE EM ANGOLA
Júlio Almeida, entretanto, com apenas 53 anos, vítima de paludismo, morrera em Angola. Carolina visitara-o até à despedida. Mas o amor não era a sua única referência. No decorrer da sua luta de comunista marginalizada, mantém a velha inquietação. A sua atividade é sobretudo cultural. É tu-cá-tu-lá com Natália Correia, frequenta o Botequim. Convive com surrealistas, como o poeta Mário Cesariny. Como mulher, continua a impressionar. Boa parte da sua vida está relacionada com o seu aspeto. Madalena Soares traça o perfil da Mata Hari portuguesa: «Era muito enigmática, tinha um sorriso fantástico. De certeza que no seu tempo fez parar o trânsito. Ela também contribuiu para o mito. Homens e mulheres apaixonaram-se por ela. Acho que Augusto Sobral, um homossexual assumido, namorou com ela. E a minha sogra tinha uns ciúmes horríveis dela, porque o Ruben passava a vida na sua casa. Entre aquele grupo de jovens que a rodeavam havia uma relação de duplicidade de âmbito sexual. Penso que aquilo que os cativava era também a sua grande cultura. Dominava tudo, discutia sobre tudo. Uma vez, na casa dela, o Ary dos Santos, que era louco por ela, fez-lhe um poema. Depois, fora dele, atirou-se ao chão, retirou-lhe as sandálias e beijou-lhe os pés como se fosse uma diva. Ela ria-se muito. Gostava de ser adulada e contribuiu para o mito. Mas isso de ela ser espia soviética acho que é uma visão muito romântica da coisa.»
A sua história com Júlio Almeida e a traição ao partido continuam atravessadas no seu caminho. Por mais que tentasse, não conseguia emparedar o passado. Quem a rodeia evita deixar-se levar pela curiosidade. Para Maria Adelaide, a primeira mulher de Ruben, esse era um capítulo encerrado: «O grande mistério era o homem da PIDE mas não se falava sobre isso. Era um caso embaraçoso, a arrumar. Ir atrás de um pide é mais do que a minha imaginação alcança. Sabia que ela entrava e saía da União Soviética, o que não fazia muito sentido depois do que fez. Mas ela falava muito pouco do passado. Eu nem sabia que ela tinha uma filha; quando me contou, fiquei estarrecida.»
FILHA RECUSA VIR DEPOIS DO 25 DE ABRIL
Mas a sua vida pessoal e a vida do seu país, conduzidas cada uma delas ao seu ritmo próprio, acabam por confluir. Em 1974, Abril trazia a liberdade. Essa, pelo menos, era certa e o resto seria outra conversa. Carolina ultrapassava a etapa mais crítica da sua vida. Pode agora ver a filha quando quer, e trazê-la, mesmo, para Portugal. O que Helena, casada e com dois filhos, já não quer. Na verdade, não tinha uma história agradável para lhe oferecer.
Magda, que permaneceu fiel à prima até à sua morte, em 1998, faz a análise psicológica do drama: «A Helena esteve muitos anos sem ver a mãe. Quando a reencontrou, tinha perdido a sua memória. Mas quando a mãe morreu, estava cá. A Carolina estava a ver uma novela. De repente, diz que está cansada, foi para a cama e morreu. Com a neta é que ela conseguiu ter uma relação muito mais próxima, porque essa não tinha nada para a culpar.»
No partido, continua a falar-se dela baixinho. O seu nome foi retirado dos inventários históricos, das fotografias. A vida implica sempre esperança, por mais ingénua que seja. No grupo de comunistas que, ao longo da vida, Catarina continuou a levar para o PCP, esse sentimento era acalentado. Maria Adelaide recorda: «O Ary, como era homossexual e o partido era tão moralista como o resto da sociedade portuguesa, só conseguiu entrar após o 25 de Abril. Nessa altura, como nunca teve a noção de limites, meteu na cabeça que ela devia ser reintegrada. E insistiu muito com a Carolina. Mas, apesar de ela ter sido sempre comunista, nunca considerou essa hipótese.»
E, até morrer, ao contrário de outros que se tornaram militantes noutros partidos, ela manteve-se completamente isolada da vida política. Magda, que assistiu à conversa entre o poeta e a prima, recorda a sua resposta: «Ainda não percebeste que, se eu fizesse parte do Comité Central, também teria expulsado uma pessoa que se comportou como eu?».
Já Madalena Soares prefere lembrar o dia da sua insólita despedida: «No funeral, na altura da cremação, ouve-se de repente uma salva de tiros. Ficámos estupefactos. Era o enterro de um elemento da GNR. Podia ser um bom homem, mas há sempre aquela conotação com a repressão. Que coincidência contraditória da História!».