“O mundo anda confuso” – Dizia-me há dias, em conversa de magistrados da minha geração e da anterior, um Procurador Geral-Adjunto, há muito jubilado.
“Confuso e mais perigoso” – Foi o que lhe respondi, num tom rabugento, que não controlei.
Outro participante na conversa, acrescentou, mais cáustico, ainda – “Nada de confusões, não foi para desempenhar o papel de cabo de esquadra que escolhi, há mais de quarenta anos, a magistratura, em vez da, então, mais lucrativa função de advogado.
Fi-lo, sim, por acreditar, verdadeiramente, que era possível, usando o Direito, fazer cumprir a Constituição e a Lei.”
“A nossa opção, recordo-me, justificou-se na vontade declarada de muitos de nós que os direitos fundamentais, consagrados na Constituição, fossem levados a sério e respeitados na prática diária da vida cívica; não deixar que dela fosse feita letra morta, como acontecera no passado, quando os magistrados não podiam – e muitos deles não ousavam – questionar a violação evidente das garantias previstas na própria Constituição de 1933” – Atalhei, já mais desperto e novamente militante.
“Foi, aliás, com essa intenção que participei na fundação – e creio que, por tal razão, depois, vocês também aderiram – do Sindicato dos Delegados do Procurador da República, mais tarde Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP).
A ideia era o sindicato, qual catalisador, contribuir para influenciar positivamente a ação do novo Ministério Público (MP) na vigilância e defesa dos direitos constitucionais; não por acaso se quis, então, que essa associação profissional assumisse o modelo de um sindicato. Foi para que os seus sócios sentissem que comungavam da vida e das aspirações da maioria dos portugueses.” – Acrescentou o primeiro, que era o mais velho de todos.
“E não nos digam que, à época, a criminalidade violenta não existia e não era uma preocupação social: existia, sim senhor, era brutal e muitas vezes perpetrada por verdadeiros peritos, antigos membros das milícias da direita mais extrema, provindos dos corpos especiais da tropa colonial e desmobilizados depois da normalização novembrista.
Alguns deles quedaram-se, de repente, sem glória, sem emprego e mesmo sem nenhum apoio dos seus antigos patrões, a quem tal companhia passara a desagradar.
Como já nada mais sabiam fazer, começaram, a eito, a fazer o que lhes tinham ensinado. Não se lembram?” – Insistia o terceiro.
“Sim, vários foram, com efeito, nessa época – lembro-me bem -, os assaltos e homicídios violentos, com uso de shotguns, de que alguns foram acusados e que ocorreram na estrada do Guincho e na linha do elétrico que passava por Algés. Lembram-se?” – Rememorava o mesmo, olhando, como se distraído, para o centro da nossa mesa redonda.
“Isso nunca nos levou, porém, a ponderar participar numa luta contra o crime; a nossa missão, tal como a entendíamos, foi sempre a de pugnar, nos processos, como na sociedade, pelo respeito dos direitos humanos, inclusive os de tais criminosos” – Retomou o primeiro.
“Aliás, também tomámos posição contra os que criticavam o Ministério Público por ter acusado os participantes de crimes igualmente graves, praticados por elementos de uma das organizações da chamada esquerda revolucionária, entretanto surgida.
“Mesmo a nível internacional, tivemos de responder firmemente que os nossos colegas apenas cumpriram com independência o seu dever de objetividade, no respeito pela Constituição e a Lei!” – Desfechou, ainda, o terceiro.
“O que nos movia era apenas a vontade de que a lei fosse aplicada com justiça e de acordo com uma nova perspetiva humanista, que excluía discriminações, preconceitos e vindictas e tinha como propósito reintegrar numa sociedade pacificada todos os que, por um motivo ou outro, haviam sido condenados pela prática de crimes.” – Interveio, de novo, o primeiro.
“Já não era a Revolução, que, essa sim, findara, mas não deixava de ser, ainda assim, uma atuação subversiva dos usos e costumes rudes que a nossa sociedade herdara do antigo regime, no que respeitava à maneira como então se defendia a Lei e a Ordem.” – Filosofei, quase profundo.
“Eram outros tempos, outra, também, a nossa formação. Talvez por isso, a nossa atuação irreverente tenha sido pouco apreciada pelos detentores do poder de então. Para estes, não passávamos de uns petulantes «delegaditos rouge». – Acrescentou o primeiro, sonhador.
“Nada, porém, nos levou a confundir o papel de promotores da Lei e do Direito nos tribunais, com o de guardiães da ordem e segurança nas ruas.
Sabíamos bem que existia uma tensão inultrapassável entre as duas funções e que era fácil incumprir a primeira, se nos deixássemos levar pelo clima emocional e arriscado que, inevitavelmente, a segunda propicia.
Por isso, e como defendia um de nós, que depois optou, já no fim da carreira do MP, pelo lugar de juiz do Supremo, não nos deixávamos levar pelo canto da sereia que dizia que agíamos, ou devíamos agir, como instrumento de uma qualquer luta contra o crime: a luta contra a droga, a luta contra a corrupção, a luta contra qualquer tipo de violência.
A nossa luta – se assim se lhe devia chamar – era, apenas, e não era pouco, no processo: no decurso da investigação criminal, no exercício da ação penal, na defesa dos direitos e interesses legais que a Constituição e o nosso Estatuto previam, pela realização do Direito.” – Continuei, lírico, a filosofar, entre algumas tosses provocadas por cigarros fumados há muitos anos.
“Depois, já com escola, veio uma geração de magistrados mais tecnocrática, mais adestrada na gestão do processo, mobilizada para objetivos estatísticos e os grandes desígnios da política criminal, mais de acordo com os novos tempos, não é?” – disse, a sorrir, o primeiro e o mais velho.
“Bom, agora, é tempo de pagar a conta!” – Exclamou o segundo, pesado e, aparentemente, queixoso.
“A nossa, claro.” – Precisou o primeiro.
Levantámo-nos e, verificadas as agendas, marcámos o próximo almoço.
“Boas Festas!” – Dissemos, quase em uníssono.