Após a queda do tirano Bashar al-Assad, as atenções centram-se em Damasco para acompanhar os desenvolvimentos do dia seguinte. O que será da Síria? Um país condenado à guerra civil e ao caos – como alguns dos seus vizinhos – ou um exemplo de sucesso? As opiniões dos especialistas dividem-se, mas o ceticismo, por mais residual que seja, está naturalmente presente em todos.
O Hay´at Tharir al-Sham (HTS), um ex-braço da Al Qaeda, tomou o poder num momento em que os dissidentes de Assad, colocados em cativeiro, voltam a sentir o cheiro da liberdade. Muitos não chegaram ao dia da queda, mortos às mãos do regime e enterrados em valas comuns. Os vídeos que retratam a busca desesperada dos familiares pelos seus entes queridos na prisão de Saydnaya – um bastião da repressão de Assad – são para estômagos fortes. Com tudo isto, o fim de um regime deste calibre oferece uma inicial sensação de alívio. Mas haverá razões, à exceção da queda, para festejar?
Passados doze dias da tomada do poder em Damasco por parte dos rebeldes, «Damasco está surpreendentemente calma», escreveu o jornalista Daniel Bellamy na Euronews. «As pessoas estavam a viver as suas vidas como habitualmente na capital da Síria (…) fazendo compras e socializando – e com surpreendentemente poucos rebeldes armados a patrulhar as ruas», conta o jornalista. «No aeroporto internacional de Damasco, o novo chefe de segurança – um dos rebeldes que marcharam pela Síria até à capital – chegou com a sua equipa. Os poucos trabalhadores de manutenção que apareceram para trabalhar amontoaram-se à volta do major Hamza al-Ahmed, ansiosos por saber o que vai acontecer a seguir», continuou.
Entre a felicidadee o medo
Fareed Zakaria, analista de relações internacionais e apresentador do programa da CNN Global Public Square, enumerou os perigos que se afiguram nesta nova Síria: «Um regime balcanizado, ataques a minorias, talvez um ressurgimento do Estado Islâmico. Como disse o Secretário de Estado Antony Blinken, “depois de o termos colocado [Estado Islâmico] na sua caixa, não o podemos deixar sair”».
Um dos seus convidados, Richard Haass – Presidente emérito do Council on Foreign Relations e diretor de planeamento de políticas no Departamento de Estado durante a administração Bush -, deixou patente o seu ceticismo: «O que me vem à mente são os Balcãs. Temos tendência para pensar nos países com entidades singulares, e é esse é uma possibilidade para a Síria (…). Também temos de ter cuidado com a existência de entidades singulares malignas, podemos ter um futuro semelhante ao dos Talibã para a Síria. Mas penas que o mais provável, num futuro previsível, (…) é uma manta de retalhos (…) com os curdos aqui, grupos apoiados pela Turquia em algumas partes do país, os israelitas avançaram de forma preventiva e limitada ao longo da sua fronteira, (…) o HTS terá as suas áreas». O seu envolvimento direto na situação do Iraque, há pouco mais de vinte anos, leva-o a concluir que «por muito difícil que seja derrubar um regime, é ainda mais difícil construir um país funcional».
Mas Kim Ghattas, uma das mais conceituadas correspondentes do Médio Oriente e autora de vários livros sobre a região, também presente no programa mencionado, mostra-se otimista: «Isto não é o Iraque, onde houve uma invasão dos EUA que derrubou Saddam Hussein, e isto não é Líbia, onde houve uma intervenção liderada pela ONU. Este é um processo liderado pelos sírios, e é por isto que penso que devemos ser um pouco mais otimistas e apoiar os esforços sírios. Para nos certificarmos que vão em frente rumo à estabilidade».
Como notado por Ghattas, são processos diferentes, mas há demasiados paralelismos que não podem ser ignorados. É o fim de um regime tirânico em que o poder fica fragmentado, e o ceticismo é palpável. Salwa Ali, uma professora curda, citada pelo Syria Direct, mostra-se entre a felicidade e o medo: «A minha alegria é indescritível pela queda do regime tirânico, que me separou da minha família e dos meus irmãos, dividiu todo o povo e nos roubou a segurança, a paz de espírito e uma vida digna. (…) No entanto, a minha alegria é incompleta devido ao medo do futuro e daqueles que irão governar a Síria. (…) Não sabemos se devemos alegrar-nos e dormir com o coração tranquilo ou se devemos preocupar-nos com o futuro». «Tenho medo de que quem governe a Síria no futuro tenha uma mentalidade criminosa que ultrapasse o domínio de Assad. Estamos cansados da matança, do sangue e da criminalidade. Também tenho receio que as fações estejam alinhadas com o Estado Islâmico. Todos sabemos os abusos e as violações que o Estado Islâmico cometeu em nome da religião», concluiu.
Trata-se de um sentimento que parece ser generalizado, principalmente em regiões específicas e entre grupos étnicos que temem pelo seu futuro.
Um novo panorama
Posto isto, o que se pode já retirar deste novo cenário no Levante?
Primeiro, observam-se evidentes movimentações geopolíticas. A Rússia e o Irão estão mais débeis. A Rússia, a braços com uma guerra que a própria provocou na Ucrânia, perde um aliado estratégico que lhe permitia o estabelecimento de bases que davam a Moscovo um acesso fácil ao Mediterrâneo. Não se sabe ao certo como será a relação do Kremlin com o novo regime. O Irão perde o seu corredor de fornecimento de armas para os seus proxies no Líbano e em Gaza e vê Israel aumentar o seu poderio após neutralizar tanto o Hamas como o Hezbollah.
Depois, assiste-se a uma Turquia mais confiante, que reclama vitória em todo este processo de destituição de Bashar al-Assad, e quer assumir-se como principal potência regional. Também, ao fim de doze anos, Ancara voltou a abrir a sua embaixada em Damasco, evidenciando o seu papel decisivo no golpe de Estado. Resta saber o que o futuro reserva para os curdos, um grupo étnico que a Turquia se empenha em combater e reprimir.
O HTS já nomeou um governo provisório e o seu líder, Abu Mohammed al-Jolani, tem feito uso de uma retórica de uma união num país altamente fragmentado e até instou os refugiados sírios, que se espalharam um pouco por todo o continente europeu após o início da guerra civil, a regressarem ao seu país natal. Segundo uma notícia da Euronews, a vida na Síria aparenta ter normalizado: «As escolas estão a reabrir e os serviços sociais estão a ser restabelecidos. As embaixadas estrangeiras também estão a reabrir lentamente e a bandeira francesa foi hasteada sobre a sua embaixada em Damasco, um gesto simbólico de Paris».
Quanto ao tema sensível dos militares e das forças de segurança, o novo Governo garantiu amnistia a antigos soldados que não foram responsáveis por atos criminosos contra a sua população, após muitos terem fugido aquando da queda do regime de Assad. Numa tentativa de reabilitar este setor tão importante para a estabilização de um país, foi aberto um centro de reconciliação.
Aparentemente, a situação é de tranquilidade numa tentativa contínua de reunificação nacional – uma montanha íngreme que precisará de ser escalada. O enviado das Nações Unidas, Geir Pedersen, apelou a «uma transição política que seja credível, inclusiva e que inclua a mais ampla gama da sociedade e dos partidos sírios». «Há muita esperança de que possamos ver agora o início de uma nova Síria (…) em conformidade com a Resolução 2254 do Conselho de Segurança», concluiu.
Mas será um processo que tem pernas para andar, ou trata-se apenas de uma calma antes da tempestade? Mais uma vez, resta esperar por mais desenvolvimentos.