Sem perdão


Durante a contagem decrescente para o termo da Administração Biden há quem reclame o direito a não ser perdoado pelo ainda Presidente.


A boa aplicação do Direito, desejavelmente em tempo útil, é um dos factores de competitividade dos Estados, diminuindo custos para as famílias e para as empresas e atraindo investimento estrangeiro. A boa aplicação do Direito vive não só da qualidade da legislação (clareza, estabilidade, previsibilidade, capacidade de adaptação às novas realidades sociais, económicas e técnicas) como da separação de poderes, com garantias de independência da função judicial.

Estas boas intenções podem ser perturbadas em momentos de crise, quer nos casos de excepção constitucional (os casos em que a Constituição permite, mediante procedimentos pré-definidos, adoptar regimes excepcionais para lidar com o estado de sítio ou de emergência), quer nos momentos de ruptura constitucional, maxime em caso de revolução. As rupturas constitucionais são fonte de mecanismos de “desgraduação” de situações jurídicas constituídas no passado e que chocam com a nova ordem de valores. Estes mecanismos podem ter natureza legislativa (leis de amnistia que isentam de responsabilidade determinadas condutas, como aconteceu em Espanha, em 1977, a benefício dos funcionários e agentes do franquismo mas também dos opositores, ou em Portugal, em 1996, amnistiando os crimes de terrorismo praticados desde 27 de Julho de 1976 até 21 de Junho de 1991). Na prática dos Estados é possível identificar uma pluralidade de mecanismos institucionais, de justiça “restaurativa”, bastas vezes identificados como “Comissões da verdade e reconciliação”. O exemplo mais marcante, a par das experiências no Uganda, Uruguai, Chile, Paraguai, Argentina e Brasil, existiu na África do Sul com a possibilidade de os depoentes poderem solicitar uma amnistia pelos crimes praticados.

Estes procedimentos catárticos reconhecem a impossibilidade, política, mas por vezes também jurídica, de fazer do Direito um instrumento de vingança histórica: summum ius, summa iniuria.

Em Portugal, a competência em matéria de tipificação penal integra a reserva relativa da Assembleia da República e, quanto aos tipos negativos (amnistia), a prática nunca incluiu a autorização legislativa ao Governo. Já em matéria de indulto e comutação de penas, o Presidente da República herdou, sem qualquer limite material ou quantitativo, uma generosa indulgentia principis. A Constituição não limita este poder, bastando ao Presidente ouvir o Governo. Esta  vasta  latitude não exclui o indulto e a comutação de penas em causa própria, com o Presidente a auto-perdoar-se. A prática dos sucessivos Presidentes tem sido restritiva, quer na quantidade dos indultos e comutações, quer na justificação (por questões de saúde e/ou avançada idade), quer na distância afectiva em relação aos agraciados (não houve auto-indultos ou medidas de clemência dirigidas a familiares, amigos, correligionários ou afins).

Já nos EUA o perdão presidencial é frequente, íntimo e sinalagmático. Gerald Ford perdoou Nixon, o antecessor. Bush pai perdoou 6 dos líderes do caso Irão-Contras. Clinton perdoou ao meio-irmão, condenado por distribuição de cocaína. Trump perdoou a Steve Banon, Michael Flyn, Paul Manafort, Charles Kushner (pai do genro e, ergo, compadre),…Biden perdoou o filho, quebrando uma promessa política, invocando o perigo de perseguição por parte da futura Administração Trump.

O perdão preventivo estaria a ser equacionado por Biden a benefício da vasta lista de inimigos de Trump. Vários dos putativos beneficiários já vieram a terreiro recusar o perdão por antecipação, que consideram ser equivalente a uma condenação sem processo e sem exercício dos direitos de defesa.

Sem perdão


Durante a contagem decrescente para o termo da Administração Biden há quem reclame o direito a não ser perdoado pelo ainda Presidente.


A boa aplicação do Direito, desejavelmente em tempo útil, é um dos factores de competitividade dos Estados, diminuindo custos para as famílias e para as empresas e atraindo investimento estrangeiro. A boa aplicação do Direito vive não só da qualidade da legislação (clareza, estabilidade, previsibilidade, capacidade de adaptação às novas realidades sociais, económicas e técnicas) como da separação de poderes, com garantias de independência da função judicial.

Estas boas intenções podem ser perturbadas em momentos de crise, quer nos casos de excepção constitucional (os casos em que a Constituição permite, mediante procedimentos pré-definidos, adoptar regimes excepcionais para lidar com o estado de sítio ou de emergência), quer nos momentos de ruptura constitucional, maxime em caso de revolução. As rupturas constitucionais são fonte de mecanismos de “desgraduação” de situações jurídicas constituídas no passado e que chocam com a nova ordem de valores. Estes mecanismos podem ter natureza legislativa (leis de amnistia que isentam de responsabilidade determinadas condutas, como aconteceu em Espanha, em 1977, a benefício dos funcionários e agentes do franquismo mas também dos opositores, ou em Portugal, em 1996, amnistiando os crimes de terrorismo praticados desde 27 de Julho de 1976 até 21 de Junho de 1991). Na prática dos Estados é possível identificar uma pluralidade de mecanismos institucionais, de justiça “restaurativa”, bastas vezes identificados como “Comissões da verdade e reconciliação”. O exemplo mais marcante, a par das experiências no Uganda, Uruguai, Chile, Paraguai, Argentina e Brasil, existiu na África do Sul com a possibilidade de os depoentes poderem solicitar uma amnistia pelos crimes praticados.

Estes procedimentos catárticos reconhecem a impossibilidade, política, mas por vezes também jurídica, de fazer do Direito um instrumento de vingança histórica: summum ius, summa iniuria.

Em Portugal, a competência em matéria de tipificação penal integra a reserva relativa da Assembleia da República e, quanto aos tipos negativos (amnistia), a prática nunca incluiu a autorização legislativa ao Governo. Já em matéria de indulto e comutação de penas, o Presidente da República herdou, sem qualquer limite material ou quantitativo, uma generosa indulgentia principis. A Constituição não limita este poder, bastando ao Presidente ouvir o Governo. Esta  vasta  latitude não exclui o indulto e a comutação de penas em causa própria, com o Presidente a auto-perdoar-se. A prática dos sucessivos Presidentes tem sido restritiva, quer na quantidade dos indultos e comutações, quer na justificação (por questões de saúde e/ou avançada idade), quer na distância afectiva em relação aos agraciados (não houve auto-indultos ou medidas de clemência dirigidas a familiares, amigos, correligionários ou afins).

Já nos EUA o perdão presidencial é frequente, íntimo e sinalagmático. Gerald Ford perdoou Nixon, o antecessor. Bush pai perdoou 6 dos líderes do caso Irão-Contras. Clinton perdoou ao meio-irmão, condenado por distribuição de cocaína. Trump perdoou a Steve Banon, Michael Flyn, Paul Manafort, Charles Kushner (pai do genro e, ergo, compadre),…Biden perdoou o filho, quebrando uma promessa política, invocando o perigo de perseguição por parte da futura Administração Trump.

O perdão preventivo estaria a ser equacionado por Biden a benefício da vasta lista de inimigos de Trump. Vários dos putativos beneficiários já vieram a terreiro recusar o perdão por antecipação, que consideram ser equivalente a uma condenação sem processo e sem exercício dos direitos de defesa.