O que se passou na Síria era expectável assim como o fim de poder de Bashar al-Assad?
A guerra civil na Síria dura há 13 anos porque nunca foi uma nação desde que o regime da família de Bashar al-Assad entrou no poder, foi sempre um conjunto de etnias. E evidentemente nunca houve aquilo que se poderia chamar o elemento sociológico de aquele povo se constituir em nação. Portanto, há ali muitas diferenças ao nível religioso entre sunitas e xiitas, por exemplo. Bashar al-Assad é alauita que é um dos ramos dos xiitas, mas também havia ali muitas mundividências políticas porque na Síria está presente a Al-Qaeda, o Estado Islâmico, o fim do sonho do califado não implicou a morte da ideia do Estado Islâmico e, principalmente no deserto sírio, continuam ainda a existir muitos grupos que ou estão ligados ao Estado Islâmico ou então são aquilo que se chama de grupos afiliados ou simpatizantes do Estado Islâmico. Além disso, havia ali claramente uma parte daquilo que é designado como a nação curda que ambiciona formar um estado independente do Curdistão, além de milícias apoiadas pelos inimigos dos curdos, como é o caso da Turquia que tem dentro do seu próprio território turco muitos curdos. E a experiência que tive com alunos curdos, enquanto coordenador do programa Erasmus, é que continuam a ver-se como uma nação sem Estado e não se sentem integrados na própria Turquia. A juntar a tudo isto que já é uma grande amálgama temos os países vizinhos que têm interesses na Síria, assim como os países afastados.
O que torna a situação ainda mais caótica…
Costumo dizer que a Síria é, neste momento, um tabuleiro de xadrez, em que se está a jogar a Nova Ordem Mundial e não tenho dúvidas que estamos perante um mundo de múltiplas ordens. Escrevi isso num dos meus livros. Na obra O Fim da Hegemonia Americana. Um Mundo de Múltiplas Ordens expliquei claramente que a Segunda Guerra Mundial criou o mundo bipolar. Era o mundo das metades: duas Alemanhas, duas mundividências. Dois pactos: a NATO e o Pacto de Varsóvia. Dois modelos de sociedade: a capitalista e a socialista. Com a implosão da União Soviética e com a queda do Muro de Berlim assistimos ao unilateralismo dos Estados Unidos que foi entretanto desafiado pela Nova Ordem Mundial que é um mundo de múltiplas ordens, em que a hegemonia americana terminou, apesar de continuar a haver uma ordem liberal liderada pelos Estados Unidos e na qual a União Europeia está integrada. Depois vai haver uma ordem eurasiana liderada por Moscovo e a guerra que está a decorrer na Ucrânia é precisamente a ordem eurasiana a definir o seu limite a Ocidente. E depois há uma ordem da Rota da Seda liderada por Pequim que está a assistir a tudo de camarote, como costumo dizer. E porquê? Porque está a tentar perceber como é que pode diminuir ainda mais aquela que foi a hegemonia norte-americana. E aquilo que nos leva à Síria é a ordem islâmica que atualmente chamo ordem muçulmana que está em formação. E está em formação porque não sabemos quem vai liderar essa ordem, se o Irão xiita, se a Arábia Saudita sunita, se a Turquia muçulmana. Eu parto do princípio que vai ser a Turquia, porque o que se passa atualmente na Síria enfraqueceu muito a posição do Irão. E ao enfraquecer muito a posição do Irão acaba por desafiar o poder de um dos interessados distantes que é a Rússia que tem duas bases na Síria, uma naval e uma aero naval. Mas mais do que isso, há dois eurasianismos: um russo e um turco e Putin deixou muito claro que o eurasianismo que existe é apenas russo. Ora, neste momento, a Turquia sente que também tem margem para voltar a falar de um eurasianismo turco que implicará a extensão das suas fronteiras e da sua influência, em parte para recuperar aquilo que foi o Império Otomano, de que ainda há uma grande saudade e é uma grande memória na Turquia atual, na Turquia de Erdogan. Tudo isto leva a que os países vizinhos estejam preocupadíssimos, desde a Jordânia aos Emirados, mas também o Egito e Israel, apesar dos motivos serem diferentes. No entanto, há um que é comum a todos que é o fato de a Síria se ter transformado num narco-Estado por causa das sanções que foram impostas pelos Estados Unidos. Grande parte das drogas que circulam na região são produzidas na Síria e exportadas para os países vizinhos e isso criou imensos problemas sociais nesses países. E depois há um dado muito importante que é Israel.
Israel que já tentou aproveitar parte do terreno para fazer uma espécie de tampão…
Israel está preocupado por dois motivos. O primeiro deve-se ao facto de Israel ter ocupado zonas sírias como, por exemplo, os Montes Golã para defesa do seu território e está interessado em criar esta barreira protetora. Mas, mais do que isso, Israel está com medo de que as armas que de Bashar al-Assad dispunha venham a cair nas mãos do novo grupo HTS que chegou ao poder e o seu discurso não colhe confiança nem junto de Israel, nem da comunidade internacional. Mas chamaria a atenção para um dado muito importante: o grupo HTS é uma coligação, mas se tivermos muita atenção e estudei esse grupo com profundidade, a sua base é a Frente al-Nusra e ninguém da comunidade internacional acredita que este grupo perdeu toda a filiação e toda a ligação à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico. É um grupo terrorista e os terroristas não são sujeitos do direito internacional, não são pessoas de palavra.
Mas muitos falam em libertação da Síria…
Recordo o desenvolvimento mais recente que foi denominado Primavera Árabe. Mas que já expliquei muitas vezes que foi um Outono Árabe porque substituímos ditaduras por regimes que verdadeiramente mantiveram as ditaduras e, mais do que isso, provocaram a intranquilidade. Isso aconteceu, por exemplo, na Líbia. Kadhafi era um líder ditatorial e o seu regime cometeu muitas atrocidades, claramente e de facto representava o diabo, mas era o nosso diabo. Ou seja, o diabo do Ocidente, aquele que protegia o Ocidente dos grupos terroristas que assim que se apossaram do poder mataram e instauraram um regime que verdadeiramente de democrático nada tem. Isto é, foram revoluções feitas em nome dos ideais que o Ocidente apregoa, mas a democracia não se exporta e estes grupos não estão preparados para aquilo que se chama de democracia e para aquilo que se chama representatividade. Qualquer democracia assenta em dois aspetos que é o sufrágio direto e universal e é por isso que este grupo HTS nem sequer quer ouvir falar em eleições. E o sufrágio direto e universal leva a uma responsabilidade que é transformar a legalidade em legitimidade, quem ganha as eleições fica com legitimidade que é a legitimidade de voto, mas depois há uma legitimidade de exercício. Ora, é preciso que as eleições sejam livres que decorram no âmbito de legalidade para haver uma legitimidade de voto e depois é preciso haver uma prática coerente com os princípios democráticos para haver uma legitimidade de exercício. O que acontece é que estes grupos terroristas não dispõem nem da estrutura nem da mentalidade própria de um regime democrático. São grupos que têm uma interpretação própria dos princípios e há um dado muito importante que temos de perceber, quem está a liderar o atual Governo é Mohammed al-Bashir que já era o primeiro-ministro de uma parte da Síria que não era controlada por Bashar al-Assad. Bashar al-Assad, na sequência da guerra civil, controlava 70% da Síria, as outras partes dividiam-se entre o Estado Islâmico, os curdos e pelo HTS. Mohammed al-Bashir passa de Idlib para Damasco e tem graduação em Sharia que é a lei islâmica, aquela que define que a mulher adúltera tem de ser objeto de lapidação ou morta à pedrada, aquela que impõe o código de vestuário à mulher, a burca e a abaya, aquela que verdadeiramente não respeita as minorias, aquela que não admite outra religião.
Vamos continuar a assistir a um regime de ditadura…
Pior, vai substituir uma ditadura. E voltamos à mesma história de Kadhafi, tal qual como Kadhafi também Bashar al-Assad foi um ditador, usou armas químicas contra o seu povo, prendeu e torturou todos os opositores e não tem o mínimo resquício de comportamento democrático. Mas voltamos à questão do diabo, era o diabo que servia aos nossos interesses. Porquê? Porque não deixavam os terroristas chegar ao poder. Neste momento, este grupo vai substituir essa ditadura por uma outra ditadura, passa para uma ditadura teocrática e ditaduras teocráticas a história já tem várias. Basta pensar no que se passa no Irão, quando o aiatola Khomeini fez a revolução e começou aquilo a que se chama a quarta vaga de terrorismo global: o terrorismo de motivação religiosa. Escrevi o livro O Terrorismo Religioso – A Realidade no Feminino e, enquanto ocidental, sinto-me altamente incomodado com a forma como a mulher é tratada quando estes grupos chegam ao poder.
Mas este regime poderá dar alguma estabilidade ou será apenas uma estabilidade transitória?
Nem sequer é transitória. Neste primeiro momento, o HTS chegou ao poder que tem um primeiro-ministro interino que já era o primeiro-ministro do Governo de salvação da Síria. Tenho grandes dúvidas que haja salvação para a Síria nas mãos destes grupos e estes grupos vão agora começar a digladiarem-se uns contra os outros. Quem é que ficou em Damasco? Foi o HTS que chegou à montra do poder e vai exercê-lo de maneira despótica, vai perseguir as milícias pró-turcas, as milícias pró-curdas e algumas poucas forças que ainda permaneçam, pelo menos em espírito, leais a Bashar al-Assad. Acredito que iremos ter uma situação semelhante à Líbia, em que houve em simultâneo cinco Presidentes e neste momento há dois governos.
Este grupo nada tem de libertação e de salvação, como prometem…
Nem vai libertar, nem vai salvar. Libertou a Síria de um ditador, mas substituiu um ditador por uma ditadura e uma ditadura teocrática que é pior do que uma ditadura secular. A ditadura de Bashar al-Assad era uma ditadura secular. A ditadura que vai impor o HTS é uma ditadura teocrática, em que a religião sunita vai ser chamada a exercer os principais cargos da administração política.
Como é que os Estados Unidos e a Europa podem reagir?
Com muita apreensão. Vamos começar pelos Estados Unidos. Os Estados Unidos apoiavam uma parte das forças que combatiam Bashar al-Assad. Sabemos que os Estados Unidos estão, neste momento, a ter uma atitude muito cuidadosa porque apoiavam o exército sírio livre e o exército sírio livre não é o HTS e depois sabem que têm uma base ali, tem uma base muito importante que fica junto à fronteira com o Iraque e com a Jordânia e percebeu claramente que podemos estar perante um movimento transfronteiriço, um movimento tansnacional. E os Estados Unidos que combateram o Estado Islâmico tentaram que Bashar al-Assad fizesse as alterações que não fez. Depois temos o caso da Rússia que deu proteção a Bashar al-Assad, que também tem duas bases fundamentais, principalmente a aeronaval que permite a entrada no Mar Mediterrâneo e com o crescer da influência da Turquia nesta zona vamos ter problemas não só no Mediterrâneo, mas também no Mar Negro. Todos nos lembramos que o comércio de cereais ucranianos para circular através do Mar Negro precisou do apoio da Turquia. Portanto, o que acontece? Assistimos aqui a um player regional que vai subir muito e que vai liderar a ordem muçulmana que é a Turquia. E vamos assistir a dois liderantes das outras ordens, um que sai altamente prejudicado, que é a Rússia, que mostrou a sua fragilidade ao evidenciar que não conseguia manter dois conflitos ao mesmo tempo, um na Ucrânia e o outro manter Bashar al-Assad no poder na Síria. E os Estados Unidos, com a tomada de posse de Donald Trump, vão entregar a questão ucraniana à Europa e vão virar-se para aquele que é o seu destino manifesto que é o Indo-Pacifico. Logo, a ordem liberal vai ficar enfraquecida no que diz respeito ao pilar norte-americano e europeu porque os Estados Unidos vão virar-se para o Indo-Pacífico. E o que interessa da Síria? Interessa claramente que aquele grupo que está no poder o exerça ainda que ditatorialmente, mas não muito diferente da forma como Bashar al-Assad estava a exercer. A política é isto. A política é o jogo de interesses. E não nos podemos esquecer que a Síria tem petróleo. Não podemos esquecer que verdadeiramente há ali muitos interesses instalados, interesses dos países vizinhos, interesses de países distantes. As diferentes forças que se opõem a Bashar al-Assad funcionam como um ninho de vespas, em que tinham um elemento comum, nenhum queria Bashar al-Assad no poder, mas todos ambicionavam tornar-se os donos do poder, os detentores do poder. O que temos é uma situação marcadamente de risco, mais do que de incerteza. Tenho poucas dúvidas que vamos ter aqui um novo Iraque. Os Estados Unidos ainda querem cultivar a incerteza, querem cultivar e manter aberta a porta de haver uma alteração no sentido positivo. Eu tenho grandes dúvidas que não estejamos numa situação de alto risco. E quando temos um primeiro-ministro interino que é graduado na Sharia, é a obediência a uma outra ordem, daí dizer que não estamos num mundo multipolar, estamos num mundo de múltiplas ordens, em que cada ordem faz uma interpretação própria dos princípios. Não há valores universais, não há princípios universais. Esses princípios ditos universais acabam por ser objeto de interpretações dispares e essas interpretações díspares acabam por fazer com que a vida e a liberdade não tenham o mesmo valor em todas as áreas do mundo.
E em relação à Europa?
A Europa abrigou-se debaixo do chapéu protetor dos Estados Unidos que são o principal contribuinte da NATO e entendeu entregar a sua defesa à NATO que é uma forma de dizer aos Estados Unidos. Ora, como esclareço no meu livro novo A Europa numa Encruzilhada, estes movimentos sociais que estão a surgir na Europa põem em causa a unidade europeia e são consequência precisamente por a Europa se ter demitido do seu papel. A Europa permaneceu agarrada às grandes cartas de princípios, o que se chama de eixo normativo e as grandes cartas de princípios tinham sido escritas por mentes ocidentais só que o mundo já não é ocidental. Então a Europa escuda-se nesse seu pioneirismo na defesa dos direitos humanos, mas temos de perceber que os direitos humanos de primeira geração, aqueles que se prendem com as liberdades individuais, são inegociáveis para a mentalidade europeia, para a ordem liberal, mas não são para as outras ordens. Nas outras ordens, os direitos sociais, aqueles que se prendem com a habitação, com a alimentação, com a saúde são direitos de segunda ordem. Em Xangai, quando fiz uma conferência apercebi-me claramente que não aceitavam a minha posição. Mais do que isso, diziam que os direitos de primeira ordem poderiam ser um obstáculo à materialização dos direitos de segunda ordem e que eram os de segunda ordem que interessavam. Ora, isto são duas maneiras diferentes de ver os direitos humanos e é isso que leva a um mundo de múltiplas ordens e leva a que a vida não valha o mesmo em todas as partes do mundo. A Europa cometeu um erro grave quando entregou a sua defesa aos Estados Unidos, ainda hoje uma parte considerável dos países da NATO europeus não afetam à organização os 2% a que estão estatutariamente obrigados, sendo que 2% já não chegam. A Europa acreditava que o eixo normativo seria suficiente para continuar a ser a luz do mundo, não é e a Europa é vista muito como o colonizador dos tempos modernos, inclusive aquele que impõe os modelos, aquele que quer exportar a democracia, aquele que quer exportar princípios. E esta situação implica grandes dificuldades. A Europa está mesmo numa encruzilhada e a questão da Síria não contribui em nada para aliviar o stress dessa encruzilhada. Pelo contrário, a Europa vai precisar de políticas concertadas.
Daí dizer que estamos em alto risco…
Quem não fez o seu trabalho de casa fica mais suscetível e a Europa, assente na ideia de que o eixo normativo é que devia regular as relações internacionais, acabou por se colocar numa posição de grande precariedade. Há uma frase muito importante que é a falta de política também é uma política, apenas má política. A Europa está numa situação gravíssima por acreditar que o eixo normativo era suficiente para regular as relações internacionais, mas não é. Depois entendeu que os Estados Unidos eram um chapéu protetor, mas não são. E o que estamos a assistir verdadeiramente é a definição de qual é o espaço de cada uma das ordens e como é que nos temos de relacionar. Ora, a União Europeia não vai liderar ordem nenhuma, mas vai pertencer à ordem liberal e vai continuar a ter os seus princípios, mas tem de aprender a relacionar-se com todas as outras ordens. E é aqui que as coisas não estão a correr bem porque a União Europeia não pode abandonar a ordem liberal, não pode abandonar a proteção dos Estados Unidos e vai ter de se relacionar com todas as outras ordens, não tentando impor modelos, mas também não aceitando ser desapossada dos seus princípios.