Nota prévia: A lei prevê de forma clara que o Estado e demais entidades públicas têm responsabilidades quando por ação ou omissão resultem danos para particulares. Este conceito jurídico chama-se “Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado”. É pouco aplicado entre nós, apesar de bem detalhado na lei. Se o Estado português fosse pessoa de bem, a ministra da Saúde deveria acionar rapidamente os mecanismos para a cumprir, após as recentes falhas do INEM. É que ali não há dúvidas de que houve omissão de auxílio a quem precisava dele desesperadamente. Se as culpas são de fulano, sicrano ou do equipamento, só interessa na medida da melhoria dos procedimentos. A falha foi do Estado e terá custado vidas ou graves danos porque a ajuda tardou ou não chegou. Foi mais um exemplo de um país fabuloso no papel e muitas vezes deplorável no terreno.
1. Contrariando a essência exigente da social democracia europeia dos anos 70/80, na qual ao apoio social tinha de corresponder o empenho cívico do beneficiário e a sua retidão de processos, certos partidos da esquerda moderada fazem tábua rasa disso. Basta olhar para as reações neobloquistas que saltam das bocas de alguns dos mais contraditórios e abastados socialistas contra autarcas como Ricardo Leão e Sónia Sanfona por se oporem ao dar tudo a todos e, sobretudo, aos que não precisam, para ver que estamos perante uma ridícula demagogia que não é barata, mas cara. Esses socialistas de salão desconhecem o terreno autárquico. Posicionam-se na esquerda politicamente correta com toques de wokismo. Procuram o voto fácil e interesseiro dos que iludem o sistema para receber apoios a que nunca teriam direito, não tendo sequer o pudor de exibir sinais de riqueza. Lembram o presidente de um grande clube que apresentava o rendimento mínimo, mas ia de helicóptero para a Comporta, nos anos 90. O combate aos abusos nos apoios sociais tem o tempo da nossa democracia, mas a verdade é que o problema se agrava cada vez mais. Os autarcas são os primeiros a darem conta disso e não é por haver redes de inveja (que sempre houve). É porque há gente que vive de expedientes ou até do crime e que tem o desplante de pedir ou exigir apoios, casa e tudo o que possa haver. Toquem alto as sanfonas da denúncia desses casos em nome dos que tudo pagam e dos que mais precisam, por infortúnio permanente ou momentâneo da vida. Tenham a coragem da denúncia. Distingam-se da esquerda demagógico-eleitoralista e da direita radical que precisam também de pescar nessas águas para se fortalecer, ao contrário do que faz por exemplo o CDS e mesmo a Iniciativa Liberal. É preciso coragem, tanto política como física, para um autarca assumir posições dessa natureza. No caso concreto do PS, são esses que encarnam o espírito soarista e que se distinguem dos que estão a proceder à “melanchonizacão” do PS, por um mero oportunismo que lhes alargue o espaço político. Proclamam-se de esquerda para manter mansões em Sintra erguidas à margem da lei, apartamentos em Cascais, confortáveis pensões europeias que são sempre generosamente atualizadas, ao contrário do que sucede com os tiveram sucesso no trabalho, que mais descontaram e que mais fizeram. Esses ficarão reduzidos a 1,9% de aumento (ou mesmo a zero nalguns casos) quando a inflação foi de 2,5%. Isto enquanto os que menos descontaram são atualizados em 3,5%. Não admira que no ano passado tenham emigrado 81 mil dos mais bem preparados para países socialmente justos do Ocidente ou outros onde um capitalismo financeiro desenfreado permite mesmo assim juntar um pé de meia para acautelar o futuro.
2. Falando ainda do PS, a Federação de Coimbra acaba de censurar um comentário de um militante, excluindo-o do Facebook, crítico da avocação da escolha do candidato socialista à Câmara de Condeixa-a-Nova. Segundo o líder distrital do PS/Coimbra, João Portugal, o comentário voltará a ser divulgado ao abrigo de “uma nova política de privacidade e gestão das redes sociais”. Um jornalista que abordou o dirigente partidário disse-lhe sentir-se “no direito de crer que sem a interpelação feita o comentário ficaria sujeito à mordaça”. Cá estaremos para ver.
3. A sessão solene que evocou os 100 anos do nascimento de Mário Soares proporcionou, em geral, discursos de qualidade que demonstraram facetas de uma figura única da vida portuguesa que nunca se propôs ser consensual. Soares foi sempre homem das causas que achava justas e nunca hesitou em chegar a situações limite para as defender. De entre as intervenções no Parlamento destacaram-se três. Desde logo a do Presidente da Assembleia, Aguiar-Branco, que a cada passo se torna mais um potencial candidato a Belém da direita moderada. Marcelo Rebelo Sousa teve também uma intervenção brilhante como é seu apanágio. O momento controverso veio, como é hábito, de André Ventura, que atacou duramente Soares por supostamente ter montado uma teia que tomou conta do aparelho de Estado (o que não é totalmente falso) mas sobretudo pela descolonização. Eficaz e populista, Ventura foi desolador quanto à substância. Não teve a coragem de dizer verdades como a de que nunca Portugal conseguiria ganhar a guerra colonial e que o salazarismo foi incapaz de procurar soluções logo nos meados dos anos 60. Preferiu responsabilizar Soares pela descolonização desastrosa em vez de atacar os militares que desistiram do combate, sem preparem um plano de retirada da população branca, uma vez que era evidente o que vinha a seguir. Se não fosse um discurso meramente populista seria isso que Ventura deveria ter gritado do alto da tribuna. É a diferença que há entre ele e um nacionalista clássico. Todas as descolonizações em África foram um desastre, tal como as do mundo árabe. Faltou também ao líder do Chega a valentia de assinalar que foi a sociedade civil que fez a guerra, sacrificando muitos dos seus filhos, enquanto certos militares andaram sempre longe das frentes. Faltou-lhe dizer que parte dos intervenientes no 25 de Abril o fizeram, inicialmente, por razões de carreira e não por generosidade política. É mais fácil responsabilizar Mário Soares do que apontar a um vasto coletivo que ainda hoje não reconhece que não se mexeu para acabar com uma guerra inevitavelmente perdida. Para a verdadeira direita nacionalista o discurso de Ventura terá valido pouco mais do que zero, mas para ele é indiferente porque optou por seguir o percurso fácil da política de casos e de números circenses demagógicos. É natural que assim ainda tenha muitos votos para ganhar até atingir o poder. Mas, quando lá estiver, a probabilidade de não ter soluções é ainda maior do que a dos comunistas, a quem vai capturando o eleitorado no Sul e na classe média e média baixa das periferias e das cidades mais pequenas.
4. Se há coisa que não se pode negar é que o mundo está mais perigoso hoje do que nos meses em que caíram sucessivamente os regimes comunistas europeus e que a União Soviética se dissolveu. Com o apoio da Turquia, os extremistas sunitas, aparentados ao Estado Islâmico, ao Isis e mais remotamente à Al-Qaeda, fizeram cair em poucas horas o regime do tirano Assad, apoiado pela Rússia e pelos iranianos. Perto, a guerra continua com Israel a ameaçar agora o próprio exército libanês e a destruir o Hezbollah apesar da trégua. Todo o Médio Oriente está em polvorosa e não se sabe quanto tempo, por exemplo, as forças da Líbia vão manter posições de forma relativamente pacífica. Na Coreia do Sul, o que se passou é altamente preocupante, dada a vizinhança, enquanto Taiwan vive no fio da navalha. Na Ucrânia, a guerra arrasta-se. As soluções de paz já vão custar território a Zelenski e o prestígio a Putin, que está longe de alcançar os mínimos que queria. Mesmo assim, na Geórgia os agitadores russos repetem o cenário que desenvolveram na Ucrânia, enquanto na Roménia o dedo do Kremlin apareceu nas presidenciais, pondo à frente um candidato artificial, usando as redes sociais e outros esquemas. Aguarda-se a posse de Trump, um líder imprevisível e um isolacionista. A par disto, a economia europeia vacila com o colapso da França e a doença da Alemanha. São os motores europeus a gripar, enquanto África se afunda ainda mais em desordens e conflitos internos sangrentos. Só há um líder que pode esfregar as mãos de contente: Xi Jinping. É verdade que a economia chinesa sofre apertos nesta altura. Mas o que pode deixar de ter em meios económicos, em crescimento e em desenvolvimento interno está a compensar enormemente na construção do maior arsenal militar alguma vez existente. Há de ter uma finalidade, pois se há coisa que os chineses fazem é planear à distância.