No canto superior esquerdo do painel central d’As Tentações de Santo Antão, Hieronymus Bosch pintou o incêndio de uma aldeia a iluminar a escuridão. Nesse conjunto, sobre o qual esvoaçam demónios, destaca-se um edifício com telhados inclinados e planta em forma de cruz – indiscutivelmente uma igreja. Ainda não foi consumida pelas chamas, ma s, no meio do caos, há uma flecha que cede e se inclina perigosamente. Em breve irá despenhar-se.
Muitos poderão ter-se lembrado deste detalhe da obra-prima do Museu de Arte Antiga ao princípio da noite de 15 de abril de 2019, quando os telejornais transmitiram em direto imagens do incêndio que consumiu parte da catedral da Notre-Dame de Paris. A queda da flecha desenhada no século XIX pelo arquiteto Viollet-le-Duc, que estava também a ser objeto de intervenção, protagonizou um dos momentos mais impactantes do sinistro.
Se a igreja a arder do tríptico de Bosch simbolizava as tensões no seio da Cristandade por volta de 1500 (que haveriam de culminar na cisão da Reforma), o incêndio da Notre-Dame parecia representar na perfeição a crise espiritual do nosso tempo.
Colapso iminente
O fogo tinha deflagrado numa zona onde decorriam obras de restauro, o sótão, debaixo do telhado chapeado a chumbo, pelas 18h18. Na origem esteve um curto-circuito, uma fagulha provocada por máquinas ou uma beata lançada por um trabalhador incauto – nunca se saberá ao certo. A estrutura, em grande parte feita com madeira de carvalho do século XIII, rapidamente se tornou pasto das chamas. Às 18h52, o fumo branco que se libertava do telhado já era visível do exterior. Os bombeiros chegariam dez minutos depois.
Ao longo de algumas horas angustiantes, pensou-se que este ícone da Idade Média francesa e da arquitetura mundial poderia não sobreviver. «Tudo está em vias de arder: a obra de carpintaria, que data do século XIX de um lado, e do século XIII do outro, não ficará nada», lamentou então o porta-voz da catedral, André Finot. «Está por saber se a abóbada, que protege a catedral, será afetada ou não».
Caso a abóbada colapsasse, como parece ter estado perto de acontecer, as paredes também cederiam e de Notre-Dame restaria hoje, muito provavelmente, apenas um amontoado anárquico de pedregulhos. As páginas deste grande «livro de pedra», como lhe chamou Victor Hugo, ter-se-iam perdido para sempre.
Mas não. Para crédito dos construtores medievais, a abóbada manteve-se firme. E a antiguidade jogou a seu favor. Como explicou o historiador de arte alemão Erwin Panofsky: «O facto de algumas abóbadas góticas não caírem depois de suas nervuras terem sido atingidas por fogo de artilharia na Primeira Guerra Mundial, não quer dizer que teriam resistido da mesma forma se as nervuras tivessem sido tiradas depois de sete semanas, e não depois de sete séculos: alvenaria antiga mantém-se intacta muitas vezes apenas por força da coesão».
Às 21h15 de 15 de abril, os bombeiros tinham conseguido controlado as chamas e na manhã seguinte o incêndio foi dado como extinto. A Velha Senhora continuava de pé.
Chuva de milhões
As manifestações de solidariedade e generosidade não se fizeram esperar. Com as cinzas ainda quentes, começou a chover dinheiro sobre Notre-Dame. Um dia depois de Emmanuel Macron anunciar a reconstrução integral e pedir o contributo de todos, já tinham sido angariados 860 milhões de euros. Só o magnata Bernard Arnault, dono do grupo Louis Vuitton, avançou com 200 milhões; a família Bettencourt, da L’Oréal, doou outro tanto; o multimilionário e colecionador de arte François Pinault e a petrolífera Total contribuíram com 100 milhões cada.
Com tanto dinheiro disponível, as obras começaram quase de imediato. Numa primeira fase, foi preciso limpar os destroços e assegurar que a estrutura estava sólida. Em seguida, repôr o que estava em falta e puxar o lustro a esta joia da arquitetura medieval.
Para a missão, foram convocados arqueólogos, arquitetos e artesãos especializados – nomeadamente canteiros e carpinteiros – mas também equipas de cientistas. Os operários usaram técnicas e até ferramentas idênticas às usadas pelos construtores de há 800 anos. Os métodos tradicionais foram conciliados com tecnologia de ponta, como modelos 3D. Para supervisionar as obras foi nomeado um militar com larga experiência, o general Jean-Louis Georgelin, em tempos chefe da casa militar de Jacques Chirac.
O trabalho mais complexo foi justamente a reconstituição do telhado de madeira, para o qual tiveram de ser abatidos mais de mil carvalhos de grandes dimensões.
Um novo galo canta no telhado
Quando as portas da catedral (uma palavra que vem de ‘cátedra’, ou seja, a cadeira onde se sentava o bispo) abrirem ao público este domingo, dia 8 de dezembro, revelarão um interior mais luminoso. A pedra calcária foi limpa em profundidade, e nalguns locais substituída. Os vitrais também foram lavados e revelam agora as cores originais em todo o seu esplendor. O novo altar, que substitui o velho altar destruído pelo incêndio, é em bronze e há 1500 cadeiras novas para os fiéis e visitantes. Os quase oito mil tubos do órgão brilham com um fulgor redobrado. O designer Jean-Charles de Caltebajac criou novos paramentos para os sacerdotes que fazem lembrar obras de arte moderna.
No exterior, os arcobotantes foram reforçados – do lado exposto ao vento, as rajadas de 100 km/h haviam-nos fragilizado ao ponto de estarem perto de ceder. Quanto à cobertura, bem lá em cima, a flecha acrescentada no século XIX por Viollet-le-Duc e derrubada pelas chamas foi substituída por uma rigorosamente igual, ali colocada com o auxílio do maior guindaste da Europa. E um novo galo dourado – o orgulhoso símbolo de França – canta agora no cume da catedral. Contém no seu interior um espinho da Coroa de Espinhos do tesouro de Notre-Dame e um pergaminho com os nomes de duas mil pessoas envolvidas no restauro. Numa visita à igreja renovada, o Presidente francês, Emmanuel Macron, elogiou este feito «impossível».
Intelectualmente rigorosa
Iniciada em 1163, com a colocação da primeira pedra pelo própria Papa Alexandre III, e consagrada em 1182, após ter sido terminado o coro, Notre-Dame, na Île-de-France, pertence à primeira geração de construções góticas. As obras da fachada iniciaram-se em 1204 e por volta de 1220 a abóbada foi reformulada, datando daí a estrutura do telhado que ardeu em 2019.
Haverá catedrais mais espetaculares, colossais ou capazes de induzir vertigem. Talvez não haja nenhuma mais digna e serena. De uma clareza proverbial, Notre-Dame é um exemplo de classicismo e rigor contido. «Tem a fachada intelectualmente mais rigorosa de toda a arte gótica», escreveu Kenneth Clark em Civilização. Esse rigor é, em grande medida, filho da geometria. Como disse Tomás de Aquino, um dos grande filósofos e teólogos da Idade Média: «Os sentidos exultam perante coisas bem proporcionadas, já que estas se lhes assemelham».
O espaço de Notre-Dame releva de todo um sistema de relações proporcionais entre as partes e o todo. A catedral pretendia, através da ordem e da proporção, aprisionar as leis divinas que haviam regido a Criação. «Um grande triângulo equilátero, traçado a partir da chave da abóbada, define o espaço interior», explica Jean Cosse em Iniciation à l’art des cathédrales. «A compartimentação lógica deste triângulo fundador define a altura e a largura dos corredores, a secção das bancadas, a base das janelas do clerestório, etc.».
No interior, há cinco naves – caso raro entre os templos góticos -, o que mostra desde logo a importância do projeto. Porém, o arquiteto recorreu a um pequeno truque, que tornou tudo mais simples: dividiu a fachada em três partes, uma central e duas laterais, cada uma das quais marcada pela sua torre quadrada. Horizontalmente, também são três os níveis, como a Santíssima Trindade: o dos três portais, encimados pela galeria dos Reis; o da grande rosácea, enquadrada por dois janelões; e, por fim, o das duas torres, provavelmente inacabadas, mas ainda assim em perfeito equilíbrio.
O livro de pedra
Numa época em que muitos não sabiam ler, a catedral, com os seus vitrais e imagens esculpidas, fazia o papel de liber pauperam, livro dos pobres. Mas a própria arquitetura falava por si. Vale a pena recuperar, a esse propósito, as palavras de Victor Hugo, em Nossa Senhora de Paris, o romance ambientado na Paris de finais do século XV, também ele formado por um triângulo – o corcunda Quasimodo, o arquidiácono Claudio Frollo e a bela cigana Esmeralda, com a catedral por pano de fundo. Um pouco antes da metade da história, o romancista faz uma digressão para explicar por que vê Notre-Dame como um livro de pedra.
«Com efeito, desde a origem das coisas até ao século XV da era cristã, inclusivamente, a arquitetura é o grande livro da humanidade, a expressão principal do homem nos seus diversos estádios de desenvolvimento, seja como força, seja como inteligência», começa.
«Quando a memória das primeiras raças se sentiu sobrecarregada, quando a bagagem das recordações do género humano se tornou tão pesada e tão confusa que a palavra, nua e voadora, corria o risco de se perder pelo caminho, ela foi transcrita no solo da maneira a um tempo mais visível, mais duradoura e mais natural. Selou-se cada tradição sob a forma de um monumento.
Os primeiros monumentos foram simples pedaços de rocha que o ferro não tinha tocado, diz Moisés. A arquitetura começou como toda a escrita. Colocou-se uma pedra de pé, e era uma letra, e cada letra era um hieróglifo, e sobre cada hieróglifo repousava um grupo de ideias como o capitel sobre a coluna. Assim fizeram as primeiras raças, por toda a parte, no mesmo momento, sobre a superfície do mundo inteiro. Encontramos a pedra levantada dos Celtas na Sibéria da Ásia, nas pampas da América.
Mais tarde fizeram-se palavras. Colocou-se pedra sobre pedra, emparelhou-se estas sílabas de granito, o verbo ensaiou algumas combinações. O dólmen e o cromeleque celtas, o túmulo etrusco, o galgal hebraico são palavras. Alguns, sobretudo o túmulo, são nomes próprios. Por vezes, quando havia pedra em abundância e uma vasta praia, chegava-se a escrever uma frase. O imenso complexo de Karnak é já todo ele uma fórmula.
Por fim, fizeram-se livros. As tradições tinham gerado símbolos, sob os quais elas desapareciam como o tronco de uma árvore sob a folhagem; todos estes símbolos, de que a humanidade fazia fé, iam crescendo, multiplicando-se, cruzando-se, complicando-se cada vez mais; os primeiros monumentos já não bastavam para os conter; transbordavam de todos os lados; estes monumentos já só exprimiam a tradição primitiva, como eles simples, nua e deitada no solo. O símbolo tinha necessidade de desabrochar no edifício. A arquitetura desenvolveu-se então com o pensamento humano; tornou-se um gigante com mil cabeças e mil braços, e fixou sob uma forma eterna, visível e palpável todo este simbolismo flutuante. Enquanto Dédalo, que é a força, tirava medidas, enquanto Orfeu, que é a inteligência, cantava, o pilar que é uma letra, a arcada que é uma sílaba, a pirâmide que é uma palavra, postos em movimento primeiro por uma lei da geometria, depois por uma lei da poesia, agrupavam-se, combinavam-se, amalgamavam-se, desciam, subiam, sobrepunham-se no solo, encavalitavam-se no céu, até que pudessem escrever, ao ditado de uma ideia geral de uma época, estes livros maravilhosos que eram também maravilhosos edifícios: o pagode de Ecklinga, o Ramesseum do Egipto, o templo de Salomão.
A ideia-mãe, o verbo, estava não apenas no fundo de todos estes edifícios, mas ainda na sua forma. O templo de Salomão, por exemplo, não era de modo algum apenas a encadernação do livro santo, era o próprio livro santo. Sobre cada uma das suas muralhas concêntricas os padres podiam ler o verbo traduzido e manifesto aos olhos, e seguiam assim as suas transformações de santuário em santuário, até conseguirem agarrar no seu derradeiro tabernáculo a forma mais concreta, que era ainda arquitetura: o arco. Assim o verbo estava encerrado no edifício, mas a sua imagem estava na sua envolvente como a figura humana no sarcófago de uma múmia.
E não apenas a forma dos edifícios mas ainda a sua localização escolhida revelava o pensamento que representavam. Consoante o símbolo a exprimir fosse gracioso ou sombrio, enquanto a Grécia coroava as suas montanhas de um templo gracioso ao olhar, a Índia esventrava as suas para aí cinzelar estes disformes pagodes subterrâneos levados por gigantescas filas de elefantes de granito.
Assim, durante os primeiros seis mil anos do mundo, desde o pagode mais imemorial do Indostão até à catedral de Colónia, a arquitetura foi a grande escritura do género humano. E isso é tão verdadeiro que não apenas todo o símbolo religioso, mas ainda todo o pensamento humano tem a sua página neste livro imenso e o seu monumento.»
Um objeto poroso à luz do dia
E o que diz este imenso livro de pedra chamado Notre-Dame? Que palavras contém?
Para começar, há a luz. Segundo o Génesis, no princípio dos tempos «havia trevas sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas. Disse Deus: haja luz. E houve luz».
Segundo o historiador francês Georges Duby, o abade Suger, ‘inventor’ do gótico, «transferiu a teologia da luz e da música para o estilo gótico». A visão estética de Suger, continuava Duby, era «Luz, perseguição de um Deus encarnado, lucidez, lógica». Traduzida para a linguagem da pedra, esta teologia criou um objeto «poroso à luz do dia», luz essa que «desce em cascatas» do céu para o interior da catedral… e para o coração dos homens. Na mesma linha, outro historiador alemão, Otto von Simpson falou de um «esqueleto tectónico» que possibilita um «conceito de transparência que penetra todas as partes do edifício».
As pedras falam
No apogeu da Idade Média, o mundo material era visto como uma correspondência do mundo divino (muito à maneira de Platão) – uma certa desconfiança sobre o domínio dos sentidos tinha sido ultrapassada.
«Acreditava-se agora que a alma dos homens, embora imortal, representasse o princípio organizador e unificador do corpo mortal, não existindo independentemente dele», nota E. Panofsky no seu estudo clássico Arquitetura Gótica e Escolástica, onde traça um paralelo entre a arquitetura e a filosofia da época. Continua o historiador de arte alemão: «Como a Summa [Suma Teológica, o compêndio dos ensinamentos da Igreja coligido por Tomás de Aquino no século XIII] do apogeu escolástico, a catedral do apogeu gótico aspirava em primeiro lugar à ‘completude’, caminhando, assim por meio da síntese e da iluminação, em direção a uma solução completa e definitiva. É por isso que se pode falar da planta, ou do sistema, do apogeu gótico com muito mais propriedade do que em relação a qualquer outra época. Através do seu programa imagético, a catedral do apogeu gótico tentava representar todo o conjunto do conhecimento cristão, da teologia, da moral, das ciências naturais e da história, no qual tudo tinha o seu lugar certo, e sendo suprimido o que não tivesse».
Resumindo, este livro de pedra constituía uma síntese de todo o conhecimento disponível: teológico, moral, científico, filosófico, histórico e técnico, naturalmente.
Saxa loquuntur – as pedras falam. Falam-nos de reis e de santos, do Antigo e do Novo Testamento, da Criação, das virtudes e dos pecados. Falam-nos também de fenómenos sociais como o renascimento urbano do século XII e a competição entre as cidades. E, claro, contam-nos ainda uma história de poder – o poder dos reis de França e da Igreja. Limpas as suas páginas da fuligem, devolvida a claridade ao seu interior, torna-se mais fácil ler estas páginas.