Marshall Brickman. Um tipo que só queria ficar até tarde na cama


1939-2024 Brickman assinou com Woody Allen três guiões.


Às vezes todos os temas parecem esgotados, a cultura exibe então mais estrias e remendos do que tecido original, mostra-se pouco elástica ou vibrante, e é por essa altura que os comediantes tendem a mostrar-se úteis. O humor funciona como esse ato de misericórdia que consegue abater de vez um ponto de vista enquanto nos distrai com as hipóteses de devaneio que nos oferece o seu enterro. Em meados da década de 1970, Woody Allen fizera a transição do stand-up para uns filmes em que provou alguma desenvoltura a esgrimir facécias, esticando rábulas como a procura da melhor salada de ovo do mundo para extrair daí um argumento, aguentando bem aquelas horas no escuro. Por essa altura, contudo, estava um pouco cansado de ser visto apenas como o tipo com um olhar entre o clínico e o chistoso, mas que se limita a «fazer palhaçadas», como disse mais tarde ao crítico de cinema Stig Björkman. Foi então, e ao sentir necessidade de explorar outra direção artística, que quis bater umas bolas com alguém igualmente espirituoso. Foi-lhe sugerido que colaborasse com um tipo que até então se tinha dedicado sobretudo à música, tendo substituído Alan Arkin, que mais tarde viria a ter uma carreira de enorme sucesso como ator, numa banda folk, os Tarriers. Os dois frequentavam os mesmos círculos, e cruzaram-se pela primeira vez quando Allen serviu de número de abertura para a banda num clube noturno chamado Bitter End, em Manhattan. Brickman recorda-se que foi uma das primeiras atuações de Allen a solo, num palco. Depois de conviverem nos bastidores, os dois tinham por hábito sair juntos e vaguear roçando as esquinas em busca de inspiração, enquanto se dirigiam para Chinatown para cearem.

Em declarações ao The New York Times, Allen disse que o facto de terem origens e antecedentes semelhantes logo os uniu. «Falávamos a mesma língua. Eu diria que foi a cidade de Nova Iorque. Não era Brooklyn, nem era por sermos ambos judeus, simplesmente gostávamos de Manhattan: gostávamos das ruas, dos parques, dos restaurantes – da sensação geral da cidade».

A primeira colaboração entre os dois resultou no guião de O Herói do Ano 2000 (1973), uma comédia de ficção científica passada numa América totalitária do século XXII, cujo protagonista, um homem do século XX preservado num sono criogénico, ao descongelar se faz passar por um robô que ocupa as funções de criado de forma a passar despercebido e, pela calada, começa a revelar uma veia conspirativa, estando apostado em derrubar o governo. Allen admite que foi apenas a primeira coisa que lhes ocorreu à altura, e que depois desse filme até podiam ter-se posto a escrever um filme de cowboys. Mas, por essa altura, já havia um esboço daquilo que viria a ser Annie Hall, um guião com os dois protagonistas, mas enredados num mistério policial. Allen tinha perdido o entusiasmo em relação à parte do homicídio, e queria que o eventual filme lidasse com questões de ordem mais mundana. «Os dois fomos trabalhando aos poucos o guião, e este evoluiu a partir de muitos desses passeios e conversas».

Aquilo que resultou daí foi o tão peculiar e encantador filme romântico de 1977 sobre um par de neuróticos, que se conhecem num clube de ténis e que se esgatanham em mirabolantes arrufos, em que as referências eruditas balançam entre a frivolidade e os apontamentos espirituosos, com os dois a avaliarem as suas existências em sessões de psicoterapia. O filme conquistou quatro Óscares: melhor filme, melhor atriz (Diane Keaton), melhor realizador (Allen) e melhor argumento.

Allem e Brickman viriam a trabalhar de seguida no argumento de Manhattan (1979), uma comédia romântica a preto e branco, que então foi saudado como uma carta de amor a Nova Iorque, mas que, hoje, é sobretudo referido pela relação central entre um homem de meia-idade e uma rapariga de liceu (Mariel Hemingway), que veio a caldear aqueles que têm sido os constantes desaires na vida íntima de Allen. O filme triunfou nos BAFTAs, os prémios britânicos de cinema e televisão, levando as estatuetas de melhor filme e melhor argumento.

Aquilo que resultou daí foi o tão peculiar e encantador filme romântico de 1977 sobre um par de neuróticos, que se conhecem num clube de ténis e que se esgatanham em mirabolantes arrufos, em que as referências eruditas balançam entre a frivolidade e os apontamentos espirituosos, com os dois a avaliarem as suas existências em sessões de psicoterapia. O filme conquistou quatro Óscares: melhor filme, melhor atriz (Diane Keaton), melhor realizador (Allen) e melhor argumento.

Allen e Brickman viriam a trabalhar de seguida no argumento de Manhattan (1979), uma comédia romântica a preto e branco, que então foi saudade como uma carta de amor a Nova Iorque, mas que, hoje, é sobretudo referido pela relação central entre um homem de meia-idade e uma rapariga de liceu (Mariel Hemingway), que veio a caldear aqueles que têm sido os constantes desaires na vida íntima de Allen. O filme triunfou nos BAFTAs, os prémios britânicos de cinema e televisão, levando as estatuetas de melhor filme e melhor argumento.

O percurso artístico de Brickman ficaria indelevelmente ligado a essa colaboração com Allen, e o quarto e último argumento que assinaram conjuntamente foi O Misterioso Assassinato em Manhattan (1993), tendo dois desses filmes acabado por se tornar os filmes mais emblemáticos e reconhecíveis do estilo associado a Allen. Numa entrevista à Writers Guild Foundation em 2011, Brickman vincou que essa colaboração, além de ter sido um prazer, marcou uma viragem decisiva na sua vida. Depois da música, a sua carreira viria a culminar com o musical de sucesso da Broadway Jersey Boys, tendo pelo caminho escrito alguns dos mais célebres sketches de humor para o The Tonight Show, quando este era apresentado pelo lendário Johnny Carson. Além disso, no trabalho que fez para a televisão, destacam-se ainda séries como Os Apanhados, The Dick Cavett Show e Os Marretas. Brickman ainda escreveu e realizou o filme de 1980 Simon, em que Alan Arkin encarna um professor de psicologia que sofre uma lavagem cerebral e acredita que veio do espaço sideral. Também realizou Lovesick, de 1983, com Alec Guinness no papel do fantasma de Freud, e The Manhattan Project, de 1986, sobre um estudante do liceu que constrói uma arma nuclear para um projeto escolar.

Brickman morreu na sexta-feira da semana anterior, aos 85 anos, de causas que não foram divulgadas. Nascido em 1939 no Rio de Janeiro, era filho de um casal de judeus socialistas, tendo o pai fugido da Polónia durante a II Guerra Mundial, ao passo que a mãe era oriunda de Nova Iorque. Quando os EUA se envolveram na guerra, mudaram-se para o bairro de Flatbush, em Brooklyn, onde Brickman viria a crescer. Depois de se ter licenciado em Ciências e Música na Universidade de Wisconsin, considerou que qualquer um dos diplomas não passavam de dois papéis inúteis, e se durante uns tempos ainda equacionou tornar-se médico, mudou de ideias depois de passar um semestre a trabalhar num hospital. Mais tarde, viria a reconhecer que nunca teve um projeto de carreira e que muitas das escolhas que fez foi, sobretudo, levando em conta a liberdade que lhe era dado para dormir até tarde.