Violência doméstica: Quais são os desafios e caminhos para a erradicação deste crime?

Violência doméstica: Quais são os desafios e caminhos para a erradicação deste crime?


A violência doméstica já fez 18 vítimas mortais, em Portugal, este ano: 15 mulheres e três homens. Para compreender melhor este crime, falámos com Hugo Guinote, da PSP, e Daniel Cotrim, da APAV.


A violência doméstica é um dos problemas mais persistentes e complexos que a sociedade portuguesa enfrenta. Segundo os dados oficiais divulgados pela Comissão Para a Cidadania e Igualdade de Género através do Portal da Violência Doméstica, esta quarta-feira, no período de julho a setembro deste ano, foram acolhidas na Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica 1460 pessoas, sendo 51,1% mulheres, 47,5% crianças e 1,4% homens. Mas existem dados ainda mais alarmantes: neste mesmo período, 5516 pessoas foram abrangidas pela medida de proteção por teleassistência. E, à PSP e à GNR, foram comunicadas 8.415 ocorrências: mais 8,75% que no trimestre anterior.

Em entrevista ao Nascer do SOL, o intendente Hugo Guinote, da PSP, aborda o papel fundamental da polícia, os desafios enfrentados no terreno e os esforços para melhorar o atendimento às vítimas, desde ações preventivas até à resposta em situações de risco. Sobre as medidas de prevenção desenvolvidas pela PSP, destaca o esforço preventivo daquela força de segurança, que se estende às diversas faixas etárias da população: «Assumimos como primordial o desenvolvimento de programas de segurança junto dos mais idosos e naturalmente noutras faixas etárias».

Segundo Hugo Guinote, que exerce as funções de oficial de Direitos Humanos na PSP e chefe da Divisão de Prevenção Pública e Proximidade, a PSP foca-se em identificar e monitorizar comportamentos de risco, tanto por parte das vítimas quanto dos potenciais agressores. O objetivo, explica, é prevenir e intervir antes que os comportamentos de violência se agravem, independentemente do tipo de abuso – seja ele físico, psicológico, emocional, económico ou sexual.

A PSP também tem apostado na especialização dos agentes para prestar um atendimento sensível às vítimas de violência doméstica. «São 19 as estruturas em que os polícias que as integram têm uma especialização na área da violência doméstica. É um curso de um mês em que os polícias ficam exclusivamente a trabalhar esta problemática», sublinha. O curso aborda conteúdos legislativos, técnicos e psicológicos, ministrados por profissionais externos, como psicólogos. Para casos de maior vulnerabilidade, a PSP conta com polícias que, segundo o intendente, «são treinados para fazer um atendimento conseguido com técnicas que simultaneamente permitem trabalhar a ambivalência da vítima ou o comportamento da oposição do agressor».

No que toca à colaboração com outras instituições, a PSP estabelece parcerias com entidades como o Serviço Nacional de Saúde, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, entre outras. «Conhecemos as competências das outras organizações», explica. Além de parcerias com ONGs e instituições públicas, «podemos ter os técnicos destas organizações de apoio à vítima nas nossas infraestruturas», esclarece.

O intendente refere ainda que a PSP monitoriza e analisa dados sobre violência doméstica, integrando-os num relatório anual para identificar padrões e evoluções. Nos últimos anos, Portugal registou um aumento nas participações, mantendo-se agora «acima das 30 mil por ano», como nota o intendente. «A principal dificuldade é sempre que a vítima denuncie», afirma, reconhecendo a complexidade do fenómeno e notando que muitos casos de violência doméstica demoram anos a ser denunciados. A principal dificuldade é que «a vítima denuncie e que queira pôr cobro à situação de violência doméstica». Muitas vítimas adaptam-se ao ciclo de maus-tratos e normalizam o comportamento do agressor, o que torna mais difícil procurar ajuda: «As vítimas habituam-se a esse padrão de vida e esquecem-se que têm direito ao respeito».

As raízes do problema

Questionado sobre os fatores que tornam a violência doméstica um problema tão persistente, Hugo Guinote reflete sobre a natureza do comportamento agressivo: «A necessidade de controlo é uma característica recorrente», observa. Segundo nos diz, muitos agressores demonstram insegurança e fragilidade, o que, aliado ao desejo de controlo sobre o parceiro/a, alimenta uma dinâmica de abuso. A falta de confiança é também vista como um fator de risco.

A PSP realiza ações nas escolas, com o objetivo de educar as crianças e jovens desde cedo, promovendo a segurança e a confiança na instituição policial. «A construção do elo de confiança com os mais jovens começa desde muito cedo, desde a escola primária, quando eles começam a habituar-se a ver o polícia entrar e sair da escola», explica o intendente. A PSP acredita que esta proximidade facilita que, quando precisem de ajuda, os jovens não hesitem em procurar a PSP.

A Convenção de Istambul, assinada por Portugal, exige que o Estado tome medidas para sensibilizar a população sobre o tema, algo que tem sido amplamente trabalhado nas redes sociais e nos meios de comunicação. «Hoje em dia, ninguém em Portugal pode dizer que não sabe o que é a violência doméstica e que isso é um crime», afirma Hugo Guinote. No entanto, reconhece que ainda há espaço para melhorar as políticas de proteção às vítimas.

Um dos pontos de destaque é a introdução de um novo modelo de avaliação de risco. Este novo sistema vai além da avaliação de risco nas relações íntimas e também incluirá casos de violência na parentalidade. «A violência doméstica não é apenas conjugal», destaca, mencionando que também é fundamental abordar a violência entre pais e filhos, um aspecto que muitas vezes é negligenciado. Apesar dos avanços, há um reconhecimento claro de que a proteção das vítimas ainda pode ser mais eficaz.

Um dos exemplos disso seria a criação de comissões locais de apoio à violência doméstica, semelhantes às que existem para a proteção de crianças e jovens. «Seria importante que os supervisores de várias organizações de primeira linha pudessem reunir com regularidade para discutir os casos de risco elevado e encontrar soluções mais eficazes», explica. Além disso, enfatiza que é essencial não apenas proteger a vítima, mas também lidar com o agressor. «Se não trabalharmos também com o opressor, vamos deixar metade do problema de fora», afirma, destacando a necessidade de programas de reabilitação para os agressores.

Atualmente, esses programas são mais eficazes quando aplicados como parte de uma condenação judicial, mas Hugo Guinote sugere que seria importante criar opções de intervenção preventiva, antes que o agressor tenha sido formalmente condenado. No entanto, o desafio não se limita ao âmbito judicial ou policial. A sociedade como um todo tem um papel crucial na luta contra a violência doméstica. Para os cidadãos, o mais importante é apoiar as vítimas e incentivá-las a denunciar as agressões.

Um reflexo da maior sensibilização e da pandemia

No primeiro semestre deste ano, registou-se um aumento de 2% nos pedidos de apoio em relação à violência doméstica. Segundo Daniel Cotrim, da APAV, este aumento está diretamente relacionado com a maior sensibilização da sociedade e com a ampliação da rede de serviços de proximidade. A presença de estruturas itinerantes tem facilitado o acesso das vítimas a apoios, que podem agora pedir ajuda de forma mais simples e rápida.

Um dado importante a destacar, acrescenta o psicólogo que exerce o cargo de supervisor técnico da rede nacional de casas abrigo para mulheres e crianças vítimas de violência da APAV desde 2005, é a redução do tempo entre a primeira agressão e a primeira denúncia, que, nos últimos anos, tem vindo a diminuir significativamente. «Quando olhamos para os anos entre a primeira agressão e a primeira denúncia, o tempo tem reduzido para dois a seis anos. Tem sido uma tendência já mais ou menos com dez anos. Antigamente, as pessoas estavam 15 ou mais anos sem pedir ajuda», explica.

Este aumento dos pedidos de apoio também pode estar ligado ao impacto da pandemia, que gerou novos desafios, principalmente no contexto do confinamento e das condições de teletrabalho. «Não duvidamos de todo da relação entre a pandemia e o surgimento dos casos. Motivadas pelo confinamento e até por disfuncionalidade que já existia e se agravou», sublinha. A crise sanitária não só expôs mais situações de violência, como também acelerou a busca por ajuda. «Muita gente ficou em teletrabalho e há situações que permanecem».

A associação, no entanto, não se limita apenas a intervir nas situações já instaladas, mas aposta fortemente na prevenção, educação e sensibilização das comunidades. «É importante insistir no apoio direto às vítimas, mas enquanto organização insistimos mais na prevenção, na educação e na sensibilização das comunidades. Para uma cultura da não-violência e dos direitos humanos», afirma.

O foco está também na capacitação de profissionais, como as forças de segurança, para que identifiquem rapidamente as situações de risco. «Apostamos em profissionais específicos como forças de segurança, para que identifiquem mais rapidamente as situações», revela. Além disso, a APAV reforça a importância de investir na prevenção. «Temos trabalhado muito na área da intervenção e sabemos por estudos internacionais que a prevenção é muito mais barata do que a intervenção», aponta.

A violência doméstica, segundo o especialista, tem consequências profundas nas vidas das vítimas. «Cada vez que uma vítima se vê obrigada a sair da sua casa… acontecem muitas coisas. Por exemplo, altera o emprego, perde a casa, os filhos perdem os laços escolares, etc. É profundamente traumático». E lamenta que haja vítimas que acabam por retornar à situação de vitimização devido à falta de apoio adequado. «Tal acontece muitas vezes porque não têm forma de se readaptar a uma vida sem violência».

A sociedade, conclui, deve refletir sobre os casos mais graves. «Cada vez que alguém é assassinado neste contexto, alguma coisa terá falhado. Sobretudo, se estas pessoas já tinham uma queixa apresentada». O sistema de justiça, destaca, deve ser célere e eficaz, para garantir a proteção das vítimas. «Falamos sobretudo da justiça, o braço desta questão que pode agir rapidamente. E deve ser eficaz». Em relação às vítimas mortais, sabe-se que a violência doméstica já fez 18 este ano: 15 mulheres e 3 homens.

A justiça, diz, não deve ser punitiva, mas sim servir como um meio de responsabilizar os infratores. «Não acreditamos numa justiça justiceira, mas sim que faça justiça. Que responsabilize o infrator e sirva de exemplo para aqueles que cometem os mesmos crimes». E sublinha a importância de uma mudança de perspetiva em relação às vítimas. «É importante que a perspetiva em relação às vítimas se altere. Têm direito à presunção da verdade, da mesma forma que os arguidos têm direito à presunção de inocência».

Por fim, defende ainda que a violência doméstica é uma questão que diz respeito a toda a sociedade. «Temos de ser intolerantes à cultura da violência e cada vez mais respeitadores dos direitos humanos: das mulheres, dos homens e das crianças. A violência doméstica diz respeito a todos nós».