Valter Hugo Mãe. O literato como pastor evangélico

Valter Hugo Mãe. O literato como pastor evangélico


Deus na Escuridão é o romance que encerra a série “Irmãos, Ilhas e Ausências”. Arrevesado entre ser menino e purificado para anjo, Valter Hugo Mãe insiste em fazer da literatura uma triste e vicarial missa publicitária, onde o livro aberto surge como hóstia comovida para consolar as massas.


As portas que abriam os romances mudaram de sítio, recuando hoje para lugares suspeitos ao serviço de uma ficção muitas vezes retumbante, autocomplacente e viscosa. As tramas avançam voltadas para dentro, sonham-se a si próprias, semeando aqui e ali pequenos costumes narcísicos e novelos biográficos suficientemente dissimulados para consolar as massas mais acríticas. É cada vez mais raro aquele que se revela verdadeiramente generoso e exigente, capaz de se entregar ‹‹à experiência original que o põe de parte, que o despoja de si nessa distância (…) onde se tornam invisíveis os rostos que preferimos›› (Maurice Blanchot). Pelo contrário, assomam-se os que preferem colocar as rédeas no mercado para alavancar um nome e transportar o sonho de ter ‹‹qualquer coisa para dizer, um mundo neles para libertar, um mandato para assumir, a sua vida injustificável para justificar›› (Maurice Blanchot). Perdem-se, assim, entre frases delicodoces, pequenas genuflexões e motivos que menorizam qualquer leitor, oferecendo um ardil xaroposo em contínua decomposição de açúcares, que nada mais provoca  do que o enfileirado movimento de moscas e formigas.

Parece-nos hoje irreversível a crise em que a literatura se encontra. Nunca o mercado determinou tanto as regras do jogo, produzindo a fome pelos best-sellers e ensaiando o monopólio das grandes cadeias editoriais. Nunca o leitor se viu tão entupido nas montras, nas avenidas e nos cul-de-sac das grandes superfícies livrescas. George Steiner alertou-nos há muito para este problema: ‹‹Afeta o atual clima da edição de “sucesso”: a procura, ao mesmo tempo arrogante e invertebrada, das “vendas”. Liga-se à ausência de um corpo de recensão crítica de reconhecida autoridade, sobretudo no domínio dos “grandes autores de ficção”. (…) O narcisismo é, nesta data precisa, o termo descritivo da moda para o estado de coisas na América. Boa parte das imputações de narcisismo obedecem, sem dúvida, à moda e são demasiado sumárias.››. Talvez estes autores, os que fabricam diariamente uma literatura para consumo, precisem de uma audiência ainda mais larga, onde caiba o sacrifício nos joelhos daqueles leitores mais críticos. Que efetivamente os leiam e escrevam sobre eles, contornando a lógica viciada do mercado que tanto os canoniza e os eleva como hóstias comovidas num serviço porta a porta. Esse pequeno mas significativo gesto, o do verdadeiro leitor – e, por consequência, o do verdadeiro crítico – não seria mais do que o jogo de pousar uma moedinha de chocolate entre as do ofertório dos domingos.

Este narcisismo de que falamos não está apenas presente no sonho autobiográfico e nas antologias de poemas arrolhados de confissões e lamentos. Começa no tom e no modo como os livros se apresentam: nos retratos aumentados do autor que enchem as badanas, na exposição de comentários de outras personalidades afamadas como slogans promocionais, nas cores  propositadamente vibrantes e nos rótulos que gritam os prémios recebidos ou, nos casos mais graves, como o de Valter Hugo Mãe, no uso que faz da crónica “Autobiografia Imaginária” do Jornal das Letras para promover, por vezes, livros de ensaios que outros autores escreveram sobre as suas próprias obras. Mas está também visível num gesto mais simples, nas assinaturas e dedicatórias que oferece a cada leitor, desenhando um auto-retrato de perfil, escusando a Porto Editora de se lançar à promoção de t-shirts e outros produtos de merchandising. É claro, com a evidente excepção da parceria estabelecida com a plataforma Wook, segundo a qual desenvolveu um pacote conjunto do livro “A minha mãe é a minha filha” e de um bloco de notas com uma ilustração do autor intitulada “Mãe ao colo”. Este caso é verídico, procurem-no, já que o conteúdo do livro não tardará em apresentar-se como um tremendo erro na proveta.

O reaparecimento de um romance de Valter Hugo Mãe surge sempre de um eco conhecido. “Deus na escuridão” não foge à regra. É o último livro da série “Irmãos, Ilhas e Ausências” da qual também fazem parte “A Desumanização”, “Homens Imprudentemente Poéticos” e “As Doenças do Brasil”. A intenção não é clara e permanece enigmática. A trama desenvolve-se em três partes, a primeira no verão de 1981, a segunda no ano de 2001 e a terceira sem aparente data anunciada. Conta-nos a história de Pouquinho, uma criança que nasce sem as origens, isto é, sem genitais, na ilha da madeira e que vem interpretada por todos como uma espécie de anjo, ou ‹‹gémeo de Deus››, até ao momento em que se apaixona por Rosinda. É narrada a partir da voz acriançada do irmão, Felicíssimo, o que lhe confere desde o início um tom infantil e patético, uma vez que não só diverge da linguagem das crianças como se revela imoderada e desinteressante para quem o lê, perturbando a hipótese de a narrativa atingir a profundidade a que se predispôs. Às restantes personagens, Valter Hugo Mãe decide atribuir nomes relativamente barrocos, de tão excessivos os diminutivos, como Nhanho, Agustinha, Mariinha, Paulinho ou Luisinha. Badalam expressões como ‹‹boquitas››, ‹‹medriquinhas››, ‹‹gritinhos››, ‹‹ligeirinhos››, ‹‹salinha››, ‹‹dentinhos››, ‹‹pulseirinhas››, que contribuem ainda mais para a sensação de ‹‹um quase nada gemido igual aos gatos››. Talvez Pouquinho seja a versão curta para Poucochinho. Não se trata de estilo, mas sim de incontinência. Tudo parece provir de um paraíso interior, de uma fantasia imaginária que denota o tremendo erro de perspetiva face à representação daquilo que é a voz de uma criança. Para Valter Hugo Mãe, ela parece ter sido transposta para dentro desta melodia entediante do nhem-nhem-nhem, o que cobre em absoluto a experiência da leitura.

Vejamos o arranque: ‹‹Pouquinho nasceu sem as origens. Era inteirinho um menino, mas vinha mordido entre as pernas como se algum predador o tivesse buscado na barriga de nossa mãe. Quiseram muito esconder de mim. Doutor Paulino inventava ordens para manter minha infância incólume, mas o susto pelos rostos me explicava que meu irmão nascia aleijado. Eu quis descer sobre ele como uma casca, uma carapaça, uma casa, uma mãe, e deixá-lo demorar. Talvez fosse de continuar a nascer mais tarde. Poderia não ter nascido por completo. Igual às árvores, certamente deitaria as origens como um fruto quando chegasse à adultez. Teríamos apenas de esperar. Por outro lado, pensei que, se era por ali tão vazio, cresceria para ser uma menina. Ia ser seguramente uma menina. Era preciso prever-lhe um nome de duas vias, deixar que madurasse nessa liberdade ao invés de obrigar a cumprir o que não podia ser cumprido.››. Após a constatação de que Felicíssimo deixara cair alguns dos artigos definidos na fralda, inaugura-se uma prosa performativa, empossada e entusiasmada consigo própria: ‹‹As mães são mais que ferros e mais que tubarões, mais que crocodilos e mais que dinamites. (…) As crias solicitam tudo, ficam luminescentes nos braços das mães, são corpos celestes incandescentes que dominam as casas. Quando nasce uma cria, há um planeta com seu nome onde só sua mãe habita. (…) Se meu irmão era um planeta onde só ela seria cidadã, meu irmão não teria atmosfera, seria ainda vulcânico, teria feras à solta que a caçariam, talvez não tivesse sol por perto, fosse sempre noctívago, às escuras, afogado, íntimo, talvez, onde ela não tivesse nem como sentar.››.

O livro começa e apercebemo-nos que Valter Hugo Mãe se deslumbra mais com o modo pretensiosamente poético como diz as coisas do que com o que verdadeiramente quer dizer. E, sem ter dado conta desta manobra de ilusão, o autor engasga a prosa com versos frouxos, frases  curtas e palavras vagas que não chegam a ser poéticas e que, no limite, pretendem atingir ideias que só a prosa saberia ver. As palavras dobram-se umas às outras, vibram em falso, esforçam-se por representar aquilo que não dizem. Os nomes mais violentos nada têm de violento, os mais profundos nada aprofundam. Nascem de um universo próprio do autor, aéreo e imaginado na última fracção de segundo, sem qualquer relação com o presente ou com a vida. Dá-nos a sensação de que inventa os próprios problemas, de modo a abreviar o confronto com a seriedade dos temas, dos sinais próprios de uma época que não chega a sugerir. Esta ideia que tão obstinadamente arrasta acerca da poesia, incide e esbarra em todas as paredes e, por consequência, resulta daí uma escrita quase seminarista, que quer existir celebrando-se a si mesma e ignorando tudo o resto: ‹‹Eu pensei que, no seu respirado ténue e baixinho, Pouquinho soprava o mundo de sua poeira. Fazendo só beleza. Por ser alguém bom. Alguém muito bom que nos traria o bem. Acenei à senhora Agostinha, que nessa noite se entristeceu por nós. Pratiquei a gratidão. Tive esperança só por isso. Fui deitar.››. Ou ainda: ‹‹Pouquinho ia ser da ordem dos bichos sem malícia, igual aos caracóis ou às camélias, às borboletas ou aos carvalhos, às ovelhas ou aos dentes-de-leão. Ia ser tão limpo e sem culpa que haveria de comparar-se ao valor da paz.››. A vasta maioria das frases carece de elegância e de mestria. Satisfeito com o gesto mais fácil, a metáfora mais imediata, a imagem mais acessível, toda a trama se encontra num ademane tímido e pobre, como uma refeição feita apenas de côdeas.

Pelo contrário, no segundo capítulo, há momentos em que nos é possível começar a roçar numa qualquer descrição expectante, mesmo que grosseira: ‹‹A mitologia conta que, quando encontraram a ilha da Madeira, não puderam adentrar a mata de tão espessa. Por canto nenhum se subia à ilha, cheia de alturas à vista larga e, contudo, sem modo de pousar os pés. Também conta que, esticados nos barcos, os homens de então foguearam a natureza. Circundaram como entenderam e foguearam por toda a parte. Sete anos mais tarde, quando aconteceu de alguém voltar a encontrar nossa terra, a ilha ainda ardia. Os fumos faziam grandeza nos promontórios junto às águas, as chamas subiam para depois das nuvens vindas do interior das maiores caldeiras, onde as gargantas secas dos vulcões tinham nutrido flores exuberantes. Diz-se que, de tão bela a ilha e as suas plantas, tão belas flores aqui se nasciam, ainda voavam pássaros lastimando o incêndio. Pássaros maravilhosos. Muitos ter-se-ão extinguido por lhes doer de gritar e por lhes doer de tristeza. Tantos terão acabado como labaredas em fuga mar fora, pequenos cadáveres incandescentes que se sepultaram nas águas. (…) Quando amanheci, espantado, o céu era rosado de mil vezes mil flamingos que migravam.››. Eis um momento em que o autor começa a descrever pacientemente uma imagem que teria tudo para ser fascinante, mas não tarda em perder-se, desperdiçando o ponto de onde partiu e levando-nos a repensar o quanto tudo foi ainda insuficiente. O autor revela uma mão que treme, que apanha o objecto mas não o guarda e que, por isso, não o usa. Roubando as próprias palavras de Valter Hugo Mãe, ‹‹mais se sobe e desce do que se avança››. E tal como os pássaros acima descritos, as suas palavras nunca chegam a voar alto, tão pouco escavam, nem mesmo se movem à altura dos homens. Oscilam, funâmbulas, como resultado de uma mera fantasia interior que, em vez de poética, se mostra poetizada e excessivamente perfumada. Deste incêndio e dos seus pássaros mortos, cabe-nos cruzar duas ideias: um provérbio resgatado por George Steiner ‹‹que diz que um mau livro significa a perda de uma boa floresta›› e um retrato do seu possível leitor, ‹‹batendo o olhar, como um pássaro a asa, para nos aguentarmos›› (Francis Ponge).

Germinam os vícios como uma ‹‹carapaça de panos››. A tentativa de expandir simultaneamente o campo da comoção e o da emoção estética para cumprir com a adesão do leitor a uma falsa intimidade. O tom do narrador – a voz voluntária de Felicíssimo – procura espiar e acalentar o pensamento mais cândido, como nos seguintes exemplos: ‹‹Fora sua primeira promessa. Partilharia comigo o colchão no canto da cozinha. Seríamos companhia assim de perto.›› e ‹‹Era algo muito frágil, feito de fragilidade, e até os olhares podiam quebrar qualquer coisa.››. De um modo pseudo-motivacional e auto-imitativo, através de um tom que constantemente sussurra desde cima, goteja as mesmas expressões estratégicas, procurando envolver-se com o leitor: ‹‹Tão asseada, tão delicada a melhorar o mundo, a senhora Agostinha do Brinco soprava as pedrinhas e as flores de seu jardim para as embelezar. Uma a uma. A despedir-se e a desculpar-se pela noite.››. Onze páginas mais tarde: ‹‹Certamente ficou demorado a ver para dentro, sim, antes da contingência de ver para fora e cegar para o interior, como acontece com todas as pessoas, uma a uma.››. Na página seguinte: ‹‹Dizer palavras sagradas impunha que as pensasse por inteiro. Uma a uma, cada uma dita para ser sentida.››. Esquiva-se da dificuldade inerente ao processo da escrita: do empenho original pela tensão, pela dinâmica, pela profundidade,  pela descrição concreta dos ambientes e das personagens. Recai sobre um carpir, uma literatura auto-indulgente e popular, que se comove a si mesma. Lembramos as palavras de António Guerreiro a propósito de um discurso político: ‹‹é uma operação realizada pelos media que consiste em suspender completamente o espaço de elaboração crítica e amplificar a adesão sentimental”››, o que não nos surpreende, vindo de um escritor que, em grande parte das entrevistas, vende as palavras que Saramago verteu da admiração que concedeu ao livro o remorso de baltazar serapião”, aquando da atribuição do Prémio Saramago em 2007, e que confessa ter usado os vinte e cinco mil euros para investir na promoção do livro seguinte.

Já no décimo capítulo, aquele que dá o título ao livro e que o autor coloca como sendo o preferido numa entrevista a Bernardo Mendonça – como se haver um capítulo preferido não fosse suficientemente paradigmático da caricatura de um autor negligente – surge finalmente a tão esperada descrição de Deus: ‹‹Deus está na escuridão, e tacteia por toda a parte na vontade intensa de um toque, do aconchego do corpo dos filhos, um gentil toque ou um abraço. (…) Deus, como as mães, corre os dias inteiros à janela e escuta. Qualquer bulício Lhe acelera o coração. Se existem passos em redor de Sua casa, se alguma voz O chama, palpita como doido de alegria na esperança de ter um filho em visita. Deus pisa até de leve, quer tudo em sossego, sem sobressalto, porque sabe apenas estar à espera por tão grande esperança de ser correspondido no amor.››. Amém. Salve-se quem puder. Este é o grande problema de lançar metáforas antes de compreendermos o objeto que nos obceca, movimento esse que estagna o pensamento para passar a trabalhar por aproximação a um desvio que nos conduz à porta da sala ao lado, onde interrompemos uma sessão de catecismo e vemos o autor vestir o hábito da confraria para pregar um punhado de ilusões e sofismas kitsch provenientes de um misticismo bacoco e elementar. A grande questão do livro dissolve-se numa resposta absurda. Entre rezar inutilmente pela fertilidade do pensamento ou vender banha da cobra sem peso nem medida, talvez tivesse sido mais eficiente a procura pelo fertilizante certo. ‹‹Quando não podemos falar, temos que permanecer em silêncio.››, reforça Wittgenstein. Oremos.

Depois de uma centena de páginas nulas, dá-se o casamento entre Pouquinho e Rosinda e, logo de seguida, um outro momento previsível e pouco católico: ‹‹Pouquinho disse: quero que me tragas um filho. Felicíssimo. Quero que te deites com Rosinda e me tragas um filho. Ouve, meu irmão, só tu podes fazer isto por mim sem manchar meu pedido por desonra alguma. (…) Naquela tarde, alguma coisa me parecia tão impossível que minhas próprias origens me enojavam, a escaldarem-me entre as pernas como a presença do diabo na ilha. Poderia ter cortado meu corpo ou deitado por dentro de alguma queda para que partisse em bocados, aos bocados tão pequenos que não fossem mais férteis nem para estrumar as sementeiras. (…) Que pena não ter podido perder as origens em menino. Que pena não ter podido chegar antes dele àquele lugar louco de pedir algo assim a uma criatura sem grande conteúdo como eu››. Ora, parece-nos que ao fim de 17 anos, o autor se lamenta por não ter ainda conseguido responder às questões levantadas no afamado livro “Pornografia erudita”. Poupemos os comentários e a descrição do momento em que Felicíssimo vê o corpo da cunhada como Virgem Maria, Nossa Senhora, evitando demasiados gestos. Para o leitor basta saber que o narrador alinhou na cavalgada, que o pai mais tarde o ameaçou e que este sofreu de uma crise existencial milenária bastante frouxa, isolado, junto da passarada, das árvores secas e do vento fraco nas copas, chegando a alucinar com a imagem da mãe vinda do mar, que era afinal uma velha mulher que o autor pretende que seja vista como Deus e que marca simbolicamente o nascimento sagrado e milagroso do filho.

Dizer que o livro partiu do universo de João Guimarães Rosa seria já demasiado. Ficou apenas o sinal de um mastigar inclinado para a linguagem abrasileirada, aflita com o sucesso das vendas que alcançou um escritor como Itamar Vieira Júnior. Talvez seja mais acertado e digno de nota a sua inspiração nos cultos evangélicos. Valter Hugo Mãe percebeu que há um público profundamente humilhado e ofendido, deslocado dos eixos da estética, que necessita de uma espécie de redenção para a sua fragilidade, de uma cultura que o ilumine. É a partir deste princípio que o escritor esvazia todos os personagens. Não há personagens, nem geografia, nem tempo, tão pouco a revelação de um mundo identificável. Surgem os bonecos afantochados e oportunistas voltados para o consumo do espírito, da epifania, uma autêntica cópia dos evangelizadores. Prevalece o trabalho da língua sem arestas, sem dentes, uma boca composta só de gengivas, que mais não faz do que babar uma demagogia beata. A estratégia é muito clara: embelezar o embevecimento narcísico que a época arrasta consigo; redimir o mundo dos seus pecados com uma espécie de santificação geral e abstrata; crismar e absolver os leitores mais atoleimados, conduzindo-os ao seu paraíso fictício, disposto a que nada se altere e a aceitar que tudo fique na mesma, que todos possam continuar a ser como são. É assim que “Deus na Escuridão” conquista o país pela mão de um parasita espiritual, levando debaixo do sovaco os livrinhos, os desenhinhos, os discozinhos, as garrafinhas de água benta. Resultam os festivais e as feiras como um iluminado charco para dar início à missa vicarial que celebra a cerimónia de baptismo das massas, do leitor-massa. E o autor recorre a técnicas específicas de sedução para que as palavras se confundam com uma coisa sofisticada, quando não passam de um esforço de estupidificação para que o povo comece a sentir o seu estado de graça – a benção, a santidade, a salvação – como tendência para a aceitação do culto.

Ainda relativamente à entrevista a Bernardo Mendonça, Valter Hugo Mãe defende que ‹‹os leitores educados compram, lêem e ficam calados (…) Se não gostarem, é melhor não dizerem nada.››. Ora, que tipo de escritor decide negar e matar a liberdade de um leitor apaixonado convertendo-o num leitor postiço? Certamente aquele que esconde uma vertigem, aquele para quem foi importante conter o risco e assegurar uma leitura invariável e intolerante à crítica. Preocupa-o apenas a garantia da ignorância atribuída ao maior número de consumidores, a transmissão eficaz da auto-promoção e o desenvolvimento iludido de uma auto-confirmação inquestionável. Não há espaço para o leitor, apenas para a massa. Parte da culpa vem daqueles que usam o espaço público do jornal para escarrar aquilo que tanto os editores como os autores vendem, escrevendo o esperado e compondo textos em nada distintos de anúncios publicitários. Sublinhamos as palavras de Pier Paolo Pasolini: ‹‹Eu penso que escandalizar é um direito, sermos escandalizados é um prazer, e quem recusa o prazer de ser escandalizado é moralista, é o chamado moralista.››. Aquele que afirma ter renegado a possibilidade do indivíduo e optado pela massa inerte e inactiva só pode representar em qualquer panorama cultural uma fraude. ‹‹Delicado e profundo, Deus na escuridão é um manifesto de lealdade e resiliência.››, lança a contracapa do livro, que mais não faz do que confirmar o quanto essa escuridão sobrevive a si própria de um modo benigno, provinda de um inferno de superfície que não ameaça. Em vez de encontrarmos um escritor experiente e exigente consigo mesmo, onde a mão se torna imperceptível, esbarramos num outro que anseia ser encarado como o único proprietário daquilo que escreve: a escrita como emanação do próprio, longe de qualquer interpretação e juízo.

Enfim, quando a necessidade é já remota, e tanto o entusiasmo como o desejo se extinguem, mostrando-se irreconhecíveis, embaciados ou adormecidos, o amor não é mais do que uma grilheta de obrigações. E é por tudo isto que Valter Hugo Mãe se tornou num ótimo exemplo do que é ser funcionário da escrita, passando do cargo de escritor para figura pública. Através dele, retiramos, mais uma vez, a convicção de como é tão mais seguro ser-se temido do que ser-se amado. E é também por tudo isto que nos serve uma última prece, retirada de um dos confessionários deste episcopado torpe que compõe o livro:

‹‹São Bento, salva nosso menino. (…) O quanto ele for salvo mais nos salvaremos a todos.››.