Nota prévia: O prémio Nobel da Paz foi atribuído a uma estimável organização japonesa que apoia as vítimas dos bombardeamentos e combate a proliferação nuclear. Foi uma escolha louvável e humanista. Foi também a forma de não ofender americanos, israelitas e os predadores ambientais se escolhesse Guterres, bem assim como os tiranos da Rússia, estados satélites e chineses se elegesse Navalny, a título póstumo.
1. É preciso voltar ao tempo em que Eanes, Presidente, e Balsemão, primeiro-ministro, gravavam, cada um na sua cassete, as conversas entre ambos para se poder estabelecer um paralelo com as declarações de Ventura, sugerindo que Montenegro lhe propôs um acordo que poderia levá-lo ao Governo, de pronto desmentido pelo primeiro-ministro. Quanto à “espantástica” (simbiose de espantosa e fantástica) revelação, cada um acreditará em quem quiser, na ausência de uma mosca testemunha e à improvável hipótese de os protagonistas aceitarem submeter-se a um detetor de mentiras. A versão de Ventura é mais difícil de encaixar com a realidade dos factos, sobretudo depois de ele já ter mudado de posição vezes sem conta a respeito da relação com o PSD, a AD e o Orçamento. Sobra, em seu abono, a circunstância de ter havido entre os dois políticos, e não só, encontros pessoais não publicitados. Em contrapartida, é inexplicável que tamanha reviravolta de Montenegro quanto ao seu “não é não” não tivesse levado o Chega a ser menos agressivo ou mesmo tolerante e não houvesse transpirado algo sobre a alegada abertura. Dito isto, e face também às sucessivas piruetas e linhas vermelhas amovíveis de Pedro Nuno Santos (PNS), há que reconhecer que o primeiro-ministro fez bem ao encerrar as conversas à esquerda e à direita, optando por apresentar o documento, confrontando cada um com a sua responsabilidade. É valentia! Uma coisa é negociar pontualmente, outra é abrir portas a uma coligação governamental ou eternizar a discussão com um PS hesitante e fracionado perante o dilema orçamental. É desolador verificar que a discussão do OE se vai prolongar como um leilão, se passar na generalidade e chegar à especialidade. Sobretudo quando se vê que, afinal, o que lá está dentro poderia ter a assinatura de António Costa. Com a controvérsia empolada por parte de um PNS transformado em contorcionista político (sábado, parece ter apontado à abstenção ao dar prioridade às autárquicas) e o arrufo de Ventura, é bem possível que o documento sofra alterações tão substanciais que seja o próprio primeiro-ministro a repudiá-lo, o que seria um inédito político planetário. Desde as eleições, Pedro Nuno Santos e Ventura atiram o PSD para os braços um do outro. É um jogo complicado que não dignifica ninguém e contraria a regra de bom senso de que se deve viabilizar o primeiro Orçamento de um executivo minoritário através da abstenção. Claro que era fácil e mais elegante, antes de existir uma terceira força como o Chega, mas não há razões para romper com essa lógica. Desde logo, porque PS e PSD mantêm-se depositários de cerca de 60% dos votos expressos, embora possa dar azo a um crescimento exponencial dos brancos e da abstenção. Aquilo a que assistimos é o resultado de uma depreciação da qualidade da política que se pratica em Portugal e no mundo democrático em geral, sobressaindo posições cada vez mais extremadas à esquerda e à direita. Acresce que entre nós é manifesto que Luís não gosta de Pedro Nuno nem de André, que Pedro Nuno também não aprecia nada Luís e detesta André, enquanto André não suporta nenhum deles, santificando outro Pedro, que gostaria de ver instalado em Belém. Este nível de hostilidade remete para o futebol nacional de há dez anos, verificando-se em todas as sociedades democráticas, nas quais campeia o sectarismo, a traição e uma violência verbal exacerbada, cujo paradigma é o tom da corrida presidencial americana. Por mais que custe, a democracia permite isso, deixando que a pessoalização se sobreponha ao desígnio coletivo. Esse ambiente é favorável à entrada nas fileiras de gente intolerante, impreparada e sem dimensão de Estado. Depois do que disse, seria de uma enorme falta de caráter Ventura flexibilizar a sua posição e deixar passar o OE, mesmo invocando a Pátria. Ficava-lhe mal eticamente, se é que isso ainda conta. A solução aparenta estar apenas no PS. E aí, se realmente Pedro Nuno Santos não tiver a coragem política interna de impor a passagem do Orçamento sem o desvirtuar profundamente, pois que venham eleições e se devolva outra vez a palavra ao desgraçado povo. Esperando que, nessa circunstância, os protagonistas tenham a clareza de anunciar ao que vêm, proclamando o tipo de alianças que farão, a fim que cada português (dos poucos que estiverem para isso) tenha consciência da escolha que lhe compete. Basta de cataventos e taticismos acriançados. Reconheça-se que dos três principais protagonistas quem foi mais claro na campanha anterior e manteve a palavra foi Montenegro. Disse e cumpriu o “não é não” e a palavra de honra de não ser primeiro-ministro se não fosse o mais votado. Saber se fez bem ou mal são outros quinhentos. Mas, reconheça-se, que não mentiu.
2. As declarações de Luís Montenegro sobre o jornalismo português foram claramente infelizes. Desde logo porque sem a comunicação social grandes casos de corrupção, de degradação social e de crimes nunca teriam sido conhecidos. A alusão a supostos casos de jornalistas comandados através de auriculares vai-se colar à pele do primeiro-ministro por muito tempo e por mais esclarecimentos que ele dê no Expresso. Cheira ao “raramente me engano” de Cavaco e ao “nem que Cristo desça à terra” de Marcelo. Se pretendia ironizar e provocar q.b., era melhor aconselhar-se, por exemplo, com o esgotado mímico Araújo da SIC. Reconheça-se, porém, que há gente a precisar de auriculares para ser orientada. Alguns estão no governo e mesmo no grupo parlamentar social-democrata. Talvez evitasse declarações como a de Hugo Soares quando disse não saber se votaria em Trump ou Kamala. Há um axioma antiquíssimo que explica que o problema não são as perguntas, mas as respostas. Quanto ao resto, o jornalismo português é o que é. Está ao nível dos políticos, do empresariado, do sindicalismo, do ensino, da justiça, da saúde e tantas outras coisas que nos remetem para a cauda da Europa.
3. A propósito de jornalismo, é inevitável abordar superficialmente o plano do governo apresentado para o setor. É inegável que resulta de uma preocupação para defender um dos pilares da Democracia, apoiando os privados e racionalizando o público em termos de televisão e de publicidade, aproveitando para dar à Lusa condições de sobrevivência e de distribuição, dado que lhe compete ser a grande depositária do rigor jornalístico. O plano para a RTP, que pouco refere a área rádio, foi articulado com a atual administração, herdada do costismo e reconfirmada pela AD. É, portanto, um modelo de entendimento de bloco central. Mais do que o proclamar, é preciso que haja quem tenha a capacidade de executar, sem estragar o que está bem e mudando o muito que está mal. A tarefa é ciclópica, até porque o setor anda em bolandas na parte privada, enquanto o público não foi reformado desde o tempo do preclaro Morais Sarmento, no governo Durão Barroso, há vinte anos. Ora, nessas duas décadas tudo mudou. Basta lembrar que o Google tinha quatro anos, o Facebook não existia, tal como o YouTube e muito menos o tik-tok e o X. No meio disto, há quem há que se oponha internamente a este espírito reformista, passando logo a alimentar a expectativa de que fique tudo em águas de bacalhau com o chumbo do Orçamento, uma eventual chamada às urnas e uma vitória de Pedro Nuno Santos.