Nos dias que correm, já se usa menos dinheiro vivo. Quase tudo o que fazemos é pago com o cartão de débito ou crédito. Esses pagamentos com cartão – ou com as aplicações digitais que têm o cartão associado – passam pelos bancos onde temos conta aberta. Sucede que o extrato é conhecido não só por nós mas também pela entidade bancária. E a privacidade bancária?
A verdade é que tudo o que fazemos no nosso dia-a-dia – a menos que o façamos com dinheiro vivo – é controlado, se assim as entidades bancárias o quiserem. Sabem quanto pagamos de contas ao final do mês, sabem quanto pagamos de portagens, e onde, que restaurantes frequentamos, em que hotéis ficamos a dormir, se vamos ao cinema, qual o montante das nossas poupanças, as despesas com a casa e até a nossa conta da Netflix. Dia, mês, ano e até a hora.
É, no entanto, um ‘problema’ que parece não preocupar todos os clientes de bancos. “Não me parece que seja um problema porque também não acho que quem trabalha num banco esteja a olhar para o extrato individual de cada cliente”, começa por contar Maria, cliente de um dos maiores bancos portugueses. Ainda assim, confessa: “Também digo isto porque recebo pouco e a minha vida não é assim tão interessante. Calculo que se recebesse milhares de euros e andasse a gastá-los numa vida de luxo fosse mais interessante”, brinca.
Também Júlio é da mesma opinião. “A minha vida não é de luxo e não tenho nada a esconder”, diz. “Acho que o banco não se preocupa com isso, ainda que me faça alguma confusão que a minha vida possa ser toda controlada pelo banco, tenho ideia que não se preocupam com isto. Mas isto digo eu, se calhar estou enganado”.
Opinião diferente tem Rita Ferreira. “Raramente uso multibanco e também não tenho débitos diretos”. Porquê? “Porque o banco não tem nada a ver com a minha vida. Sou daquelas pessoas que usa dinheiro vivo para tudo o que posso. Ainda que a entidade bancária saiba que o levantei, não sabe onde o gastei. Então mas agora têm que saber quantos maços de tabaco compro por semana?”, brinca. “É raro fazer compras com multibanco, até no supermercado”.
Lembra, no entanto, o caso de uma amiga que é ‘obrigada’ a usar o cartão. “Tinha uma amiga que pagava imenso de comissões e a sugestão que o banco lhe deu foi ‘então mudamos a sua conta, as comissões ficam mais baratas mas para que fiquem a esse preço, tem que pagar 50 euros com cartão todos os meses’. E isto é usar o cartão em supermercados, restaurantes, lojas de roupa… não serve para débitos diretos, por exemplo”, conta ao i. “É uma forma de o banco nos obrigar a gastar e, ao mesmo tempo, ter controlo no que gastamos porque é certo que se temos que pagar com o cartão, eles sabem o que estamos a comprar ou de que serviço estamos a usufruir”, acrescenta Rita, confessando que vai continuar a atuar desta forma: “Uso cada vez menos o meu cartão bancário e vou continuar desta forma”, garante.
O assunto não é de agora e todos os cidadãos com contas no banco sabem que funciona desta forma. Mas os bancos também têm certas obrigações. Além de o banco saber tudo o que se passa nas nossas contas, a partir de determinado valor, também as Finanças o sabem. Ou seja, um titular que, no final do ano, tenha num mesmo banco contas com saldo total superior a 50 mil euros, vai ver essa informação ser fornecida ao Fisco que, depois, vai avaliar se tem ou não motivos para avançar com uma inspeção e solicitar informação mais completa, como é o caso dos movimentos da conta. É que, para o Governo, esta quebra de sigilo é importante para combater as fraudes fiscais.
Sigilo bancário praticamente inquebrável
É preciso lembrar que o facto de os bancos poderem ter acesso a praticamente tudo o que fazemos e que envolva dinheiro não é necessariamente mau e existe o sigilo bancário, que só deve ser quebrado, como já referimos acima, para que seja enviado ao Fisco ou se, em caso de investigação, seja pedido pelas autoridades e o tribunal dê autorização.
Fora isso, o banco é obrigado a reger-se pelo sigilo. Até porque “só assim é possível que os clientes possam confiar nas instituições de crédito e garantir a segurança do seu património”, explica na sua página a Caixa Geral de Depósitos, acrescentando que “ao abrigo do sigilo bancário estes profissionais não podem revelar ou utilizar informações, obtidas no exercício das suas atividades, respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes”. E a regra é igual para as outras instituições bancárias.
Por regra e lei, a vida de um cliente está segura no banco mas se houver suspeitas de fraude ou crime, o sigilo bancário pode ser levantado.
E isso tem acontecido. Para se ter uma ideia, só em 2023, o Fisco instaurou 677 processos de pedido de levantamento do sigilo bancário, um valor que representa um crescimento de 13,4% face ao ano anterior, segundo dados do relatório da Autoridade Tributária (AT) sobre o combate à fraude e evasão fiscais e aduaneiras. Este é, aliás, um valor que tem aumentado todos os anos: em 2021 foram abertos 555 processos, em 2022 registaram-se 597 e em 2023 o valor cresceu novamente.