Será que pode ser tão horrível como tememos?


Trump está mais velho, mais maníaco, mais atascado em problemas legais e financeiros: convém não esquecer que ainda há pouco tempo foi condenado por um tribunal a pagar uma indemnização de centenas de milhões.


Quando Donald J. Trump anunciou a sua candidatura presidencial para 2016, pareceu uma piada.

O sucesso da candidatura de Trump lembrou a vários humoristas o filme The Producers, em que dois produtores de musicais da Broadway decidem montar o pior musical de sempre, convencendo dezenas de velhinhas ricas a financiar a produção mediante a promessa de lhes entregar 50% dos lucros a cada uma…

A única forma de ganharem dinheiro com o esquema de fraude, era que o musical fosse um fiasco completo e desse prejuízos assinaláveis. Teriam cobrado mil para pagar custos de 100 e no fim limitar-se-iam a dizer que não havia lucos para distribuir, mas apenas prejuízos.

Para azar dos produtores, o musical, sobre a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha dos anos 30, em que o Hitler era um personagem gay, totalmente tonto, e os seus capangas um bando de idiotas, uma coisa absolutamente kitsh, rocambolesca, com músicas que ridicularizavam as ações, foi um absoluto sucesso, e teve grandes lucros, mas não o suficiente para pagar 50% dos lucros a cada uma das dezenas de investidoras. Escusado dizer que os produtores acabavam na cadeia.

O musical The Producers era realmente cómico e vi filas inteiras de espetadores, uma boa parte deles, judeus, a rir a gargalhada com os vários desenvolvimentos rocambolescos da história.

Da mesma forma, a candidatura do Donald parecia uma coisa votada ao mais total fracasso, mas aí, quem tal pensou, enganou-se redondamente. O homem e a organização de suporte, com uma aguçada inteligência estratégica, alinharam uma série de temas que tocaram no nervo popular dos americanos e apostaram nos “swing states” (os Estados que mudam de uma eleição para a outra) onde podiam ganhar e obter a vitória eleitoral. Nos Estados Unidos não ganha quem possa ter a maioria dos votos, mas quem eleja mais delegados para o colégio eleitoral, delegados que são eleitos a nível de cada Estado.

No fim, the Donald ganhou e foi eleito presidente. Os temas dele eram simples e simplistas: proteger a economia americana com uma pauta aduaneira que penalizasse as importações; deter a imigração ilegal no sul dos EUA com um «grande e bonito muro»; abandonar as políticas de aliança que não resultassem em lucros para os EUA; taxar menos e promover as políticas natalistas e familiares. Pouco mais…

Quatro anos depois, de intensa polarização política, pouco mudou nos EUA salvo o ódio que cada uma das metades do país tem à outra.

Pouco, apesar de tudo, não é nada. Houve coisas que mudaram: para satisfazer Israel, os EUA denunciaram o acordo com o Irão, tão duramente conseguido juntamente com a União Europeia, tendente à suspensão do programa nuclear iraniano; as politicas de aliança da Ásia/Pacifico e designadamente os acordos comerciais que estavam já negociados, foram quase abandonadas; as pautas aduaneiras americanas provocaram um princípio de retrocesso da globalização; o progresso nas politicas de descarbonização e proteção ambiental (pipelines suspensos, por exemplo) foi parado. Quatro anos de presidência Trump diminuíram o lugar dos EUA no mundo, criaram uma desconfiança perene dos aliados ocidentais perante as políticas americanas e, sobretudo, deram àquela parte dos americanos que se sentem abandonados pela globalização, a certeza de que o mundo está contra eles e as elites apenas se servem deles para enriquecer. 

A presidência Biden tentou em outros quatro anos desfazer alguns destes retrocessos, recriar laços de confiança, energizar a NATO, reforçar a frente unida das democracias ocidentais. O drama é que uma reputação custa uma vida a ganhar e perde-se em cinco minutos, quanto mais em quatro anos.

No plano interno, a presidência Trump foi uma longa série de afrontamentos culturais entre direita e esquerda, a começar pelo combate ao aborto legal, que veio a ter o seu desenlace já depois de terminado o período Trump com o acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF) que revogou o célebre acórdão Roe V. Wade; o combate à vacinação durante o Covid foi outra marca dessa presidência; a intensificação da construção de um muro no sul dos EUA para deter a imigração ilegal, se bem que, diga-se, quer os antecessores (Obama) quer o sucessor (Biden) tinham já iniciado e deram continuidade a essa construção.

Mais insidiosamente, Trump foi fazendo, no exercício dos seus poderes, uma substituição nem sempre subtil, de juízes democratas ou sem afiliação, por juízes claramente filiados nos seus valores. Foi isso que permitiu um recente acórdão do STF que reconheceu a imunidade legal (criminal) de atos do presidente praticados em funções oficiais. Um mimo…

Ninguém, nem a família, esperava que decorridos quatro anos do termo miserável da sua presidência, entre acusações histriónicas de roubo eleitoral (perdeu por vários milhões de votos e muitos delegados) Donald J. Trump pudesse sonhar com o regresso à presidência. Ninguém menos ele.

Primeiro apoderou-se da alma e depois da forma do partido republicano, que pelos vistos não foi capaz de gerar qualquer político de “ficha limpa” que lhe pudesse fazer frente; depois passou a exercer um poder quase religioso sobre os seus apoiantes, ao ponto de estes acharem que quando é condenado por um crime (como já foi), é por perseguição política; finalmente intimidou de tal forma os seus opositores republicanos, que todos desistiram de o afrontar.

Era esta a situação, já neste ano, quando teve o célebre debate com Joe Biden, em que este último demonstrou completa falta de capacidade para continuar no exercício da Presidência. Os “odds” de Trump subiram exponencialmente.

A situação ficou um pouco melhor depois de Biden se ter retirado da corrida presidencial e ter passado o testemunho a Kamala Harris, a sua vice-presidente. Mas apenas um pouco melhor, até porque as sondagens continuam a favorecer Trump e a «tentativa de assassínio» de que foi objeto o puseram quase no patamar dos santos…

A questão que se coloca, com crescente verosimilhança, é a de saber o que será uma nova presidência Trump. A última foi um pesadelo. Há razões para pensar que a possível próxima seja melhor?

Na realidade acho que não há. Acho que há fortes razões para pensar que será muito pior. Desde logo, Donald Trump está mais velho, mais maníaco, mais atascado em problemas legais e financeiros (convém não esquecer que ainda há pouco tempo foi condenado por um tribunal a pagar uma indemnização de centenas de milhões de dólares, que declarou não ter dinheiro para pagar).

Em segundo lugar, Trump regressará vingativo e ressabiado, com vontade de esmagar os seus adversários, rodeado da direita mais extrema dos EUA, com um vice-presidente (JD Vance) que é um verdadeiro catálogo de anomalias ideológicas. O pesadelo completo é um homem destes passar também a deter a maioria do Congresso e ficar com as mãos livres para fazer o que bem entender, sendo certo que é defensor da tese de que tudo o que o presidente faça é legal porque é o presidente a fazê-lo e imune a acusações criminais por acórdão do STF.

Em terceiro lugar, Trump odeia de facto o resto do mundo ocidental, que o despreza, e está visivelmente enfeudado a Putin e, sabe Deus, se aos Chineses.

Tudo junto, só pode dar uma presidência horrível, mais do que possamos supor. Tudo menos bom para a Europa.

PS – só uma palavra sobre a Venezuela: alguém imaginava que o desfecho poderia ter sido outro? Alguma vez um regime despótico de gangsters, abre mão do poder voluntariamente?

Advogado, ex-secretário de estado da Justiça,
subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade. 

Será que pode ser tão horrível como tememos?


Trump está mais velho, mais maníaco, mais atascado em problemas legais e financeiros: convém não esquecer que ainda há pouco tempo foi condenado por um tribunal a pagar uma indemnização de centenas de milhões.


Quando Donald J. Trump anunciou a sua candidatura presidencial para 2016, pareceu uma piada.

O sucesso da candidatura de Trump lembrou a vários humoristas o filme The Producers, em que dois produtores de musicais da Broadway decidem montar o pior musical de sempre, convencendo dezenas de velhinhas ricas a financiar a produção mediante a promessa de lhes entregar 50% dos lucros a cada uma…

A única forma de ganharem dinheiro com o esquema de fraude, era que o musical fosse um fiasco completo e desse prejuízos assinaláveis. Teriam cobrado mil para pagar custos de 100 e no fim limitar-se-iam a dizer que não havia lucos para distribuir, mas apenas prejuízos.

Para azar dos produtores, o musical, sobre a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha dos anos 30, em que o Hitler era um personagem gay, totalmente tonto, e os seus capangas um bando de idiotas, uma coisa absolutamente kitsh, rocambolesca, com músicas que ridicularizavam as ações, foi um absoluto sucesso, e teve grandes lucros, mas não o suficiente para pagar 50% dos lucros a cada uma das dezenas de investidoras. Escusado dizer que os produtores acabavam na cadeia.

O musical The Producers era realmente cómico e vi filas inteiras de espetadores, uma boa parte deles, judeus, a rir a gargalhada com os vários desenvolvimentos rocambolescos da história.

Da mesma forma, a candidatura do Donald parecia uma coisa votada ao mais total fracasso, mas aí, quem tal pensou, enganou-se redondamente. O homem e a organização de suporte, com uma aguçada inteligência estratégica, alinharam uma série de temas que tocaram no nervo popular dos americanos e apostaram nos “swing states” (os Estados que mudam de uma eleição para a outra) onde podiam ganhar e obter a vitória eleitoral. Nos Estados Unidos não ganha quem possa ter a maioria dos votos, mas quem eleja mais delegados para o colégio eleitoral, delegados que são eleitos a nível de cada Estado.

No fim, the Donald ganhou e foi eleito presidente. Os temas dele eram simples e simplistas: proteger a economia americana com uma pauta aduaneira que penalizasse as importações; deter a imigração ilegal no sul dos EUA com um «grande e bonito muro»; abandonar as políticas de aliança que não resultassem em lucros para os EUA; taxar menos e promover as políticas natalistas e familiares. Pouco mais…

Quatro anos depois, de intensa polarização política, pouco mudou nos EUA salvo o ódio que cada uma das metades do país tem à outra.

Pouco, apesar de tudo, não é nada. Houve coisas que mudaram: para satisfazer Israel, os EUA denunciaram o acordo com o Irão, tão duramente conseguido juntamente com a União Europeia, tendente à suspensão do programa nuclear iraniano; as politicas de aliança da Ásia/Pacifico e designadamente os acordos comerciais que estavam já negociados, foram quase abandonadas; as pautas aduaneiras americanas provocaram um princípio de retrocesso da globalização; o progresso nas politicas de descarbonização e proteção ambiental (pipelines suspensos, por exemplo) foi parado. Quatro anos de presidência Trump diminuíram o lugar dos EUA no mundo, criaram uma desconfiança perene dos aliados ocidentais perante as políticas americanas e, sobretudo, deram àquela parte dos americanos que se sentem abandonados pela globalização, a certeza de que o mundo está contra eles e as elites apenas se servem deles para enriquecer. 

A presidência Biden tentou em outros quatro anos desfazer alguns destes retrocessos, recriar laços de confiança, energizar a NATO, reforçar a frente unida das democracias ocidentais. O drama é que uma reputação custa uma vida a ganhar e perde-se em cinco minutos, quanto mais em quatro anos.

No plano interno, a presidência Trump foi uma longa série de afrontamentos culturais entre direita e esquerda, a começar pelo combate ao aborto legal, que veio a ter o seu desenlace já depois de terminado o período Trump com o acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF) que revogou o célebre acórdão Roe V. Wade; o combate à vacinação durante o Covid foi outra marca dessa presidência; a intensificação da construção de um muro no sul dos EUA para deter a imigração ilegal, se bem que, diga-se, quer os antecessores (Obama) quer o sucessor (Biden) tinham já iniciado e deram continuidade a essa construção.

Mais insidiosamente, Trump foi fazendo, no exercício dos seus poderes, uma substituição nem sempre subtil, de juízes democratas ou sem afiliação, por juízes claramente filiados nos seus valores. Foi isso que permitiu um recente acórdão do STF que reconheceu a imunidade legal (criminal) de atos do presidente praticados em funções oficiais. Um mimo…

Ninguém, nem a família, esperava que decorridos quatro anos do termo miserável da sua presidência, entre acusações histriónicas de roubo eleitoral (perdeu por vários milhões de votos e muitos delegados) Donald J. Trump pudesse sonhar com o regresso à presidência. Ninguém menos ele.

Primeiro apoderou-se da alma e depois da forma do partido republicano, que pelos vistos não foi capaz de gerar qualquer político de “ficha limpa” que lhe pudesse fazer frente; depois passou a exercer um poder quase religioso sobre os seus apoiantes, ao ponto de estes acharem que quando é condenado por um crime (como já foi), é por perseguição política; finalmente intimidou de tal forma os seus opositores republicanos, que todos desistiram de o afrontar.

Era esta a situação, já neste ano, quando teve o célebre debate com Joe Biden, em que este último demonstrou completa falta de capacidade para continuar no exercício da Presidência. Os “odds” de Trump subiram exponencialmente.

A situação ficou um pouco melhor depois de Biden se ter retirado da corrida presidencial e ter passado o testemunho a Kamala Harris, a sua vice-presidente. Mas apenas um pouco melhor, até porque as sondagens continuam a favorecer Trump e a «tentativa de assassínio» de que foi objeto o puseram quase no patamar dos santos…

A questão que se coloca, com crescente verosimilhança, é a de saber o que será uma nova presidência Trump. A última foi um pesadelo. Há razões para pensar que a possível próxima seja melhor?

Na realidade acho que não há. Acho que há fortes razões para pensar que será muito pior. Desde logo, Donald Trump está mais velho, mais maníaco, mais atascado em problemas legais e financeiros (convém não esquecer que ainda há pouco tempo foi condenado por um tribunal a pagar uma indemnização de centenas de milhões de dólares, que declarou não ter dinheiro para pagar).

Em segundo lugar, Trump regressará vingativo e ressabiado, com vontade de esmagar os seus adversários, rodeado da direita mais extrema dos EUA, com um vice-presidente (JD Vance) que é um verdadeiro catálogo de anomalias ideológicas. O pesadelo completo é um homem destes passar também a deter a maioria do Congresso e ficar com as mãos livres para fazer o que bem entender, sendo certo que é defensor da tese de que tudo o que o presidente faça é legal porque é o presidente a fazê-lo e imune a acusações criminais por acórdão do STF.

Em terceiro lugar, Trump odeia de facto o resto do mundo ocidental, que o despreza, e está visivelmente enfeudado a Putin e, sabe Deus, se aos Chineses.

Tudo junto, só pode dar uma presidência horrível, mais do que possamos supor. Tudo menos bom para a Europa.

PS – só uma palavra sobre a Venezuela: alguém imaginava que o desfecho poderia ter sido outro? Alguma vez um regime despótico de gangsters, abre mão do poder voluntariamente?

Advogado, ex-secretário de estado da Justiça,
subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade.