A espada do Quixote furou as rochas brancas de Dover

A espada do Quixote furou as rochas brancas de Dover


A vitória da Espanha sobre a Inglaterra (2-1) foi a vitória da coragem e da criatividade sobre o futebol maçador do medo


BERLIM – Caminho pela alameda que vai dar à imponente entrada principal do Estádio Olímpico, desenhado pelo arquitecto Werner March, e erguido entre 1934 e 1936 para os Jogos Olímpicos que deveriam ter sido um hino à raça ariana se não fosse um estraga-festas Jesse Owens de pele como baquelite. Não por acaso chama-se Jesse Owens Allee. Foi nele que Duarte Pacheco se inspirou para fazer o nosso Estádio Nacional, com a diferença que em vez de ter a porta da maratona num dos topos, no Jamor desenharam-na no meio. Tenho tempo, faltam quatro horas para que se inicie a final deste Campeonato da Europa, muito deficientemente organizado, valha-lhes Santa Hildegarda de Bingen, a obrigar a filas para tudo, até para uma simples entrada para o centro de imprensa, e sem qualquer apoio decente. Enfim, não vale a pena estar com queixas nesta hora derradeira em que a Espanha escandalosamente jovem e requintadamente talentosa entra em campo para defrontar uma Inglaterra que parece ter voltado ao seu velho estilo de abana-pinheiros, sempre muito avessa a tirar partido da inequívoca qualidade ofensiva que possui. Vi, há três anos, pois o último Europeu teve de passar para 2021 à conta da maldita pandemia, a forma como, em Wembley, o conjunto de Southgate se deixou enganar pela Itália apesar de ter conseguido vantagem logo no início. Vi-a no último Campeonato do Mundo, ser despachada pela França. Ando atrás das camisolas dos três leões pelo menos desde 1995 e do Mundialito inglês que serviu de teste para o Euro-96. É um contínuo somar de frustrações desde 1966 e, por isso, os seus adeptos cantam: «Three lions on a shirt/Jules Rimet still gleaming/No more years of hurt/No more need for dreaming». Ah!, desculpem mas vão ter de continuar a boiar em noites de pesadelos. Se o seleccionador inglês fora, até aqui, um tipo calculista, como não sê-lo ao defrontar a mais bela equipa do torneio? Com as suas garridas camisolas vermelhas, os espanhóis impuseram o ritmo do jogo, mostraram porque são melhores e fizeram justiça a si próprios e ao futebol. Ainda há esperança para os temerários.

Um confronto de reinos

Num confronto de reinos, o Estádio Olímpico recebeu um rei (de Espanha) e um Príncipe (de Gales). No relvado esperava-se pelas brincadeiras do infante Yamal, transformado na coqueluche deste meio-bisonho Euro alemão no qual o medo encolheu a maioria das selecções. E todos sabemos como o maior dos efeitos do medo é de turvar os sentidos. Mas medo é algo a que aos espanhóis não assiste e não foi preciso muito para percebermos que os cavaleiros vermelhos da alegria se estavam nas tintas para o Parlamento, para a Torre de Londres, para a rainha Vitória e para Lord Nelson, todos juntos. Já não há Batalhas de Trafalgar para perder. Confesso o meu fascínio pela capacidade dos adeptos ingleses cantarem num coro afinado tudo o que lhes vem à cabeça. «Don’t take me home/Please don’t take me home/I want to stay here/And drink all the beer/Please don’t take me home». Até parece que estão dispostos a ficar por cá, a tombar de bêbados por todas as ruas e praças de Berlim, até que chegue a mulher da fava rica. Se o trabalho é a praga dos grandes bebedores, estes «drunkers» não devem ter nenhum, ou abandonaram os que tinham antes de tomar a Alemanha de assalto. Ora, estou aqui distraído e não falo da bola. Sendo bem tratada, por uns e por outros, percebe-se que a Espanha confia-a sobretudo ao seu ponta-esquerda, Nico Williams, na expectativa que vá por ali fora aos zigue-zagues mais tortos do que um electrocardiograma. Mas as balizas continuam em sossego, sem sobressaltos, tal como os homens que as guardam. Não se esperava um passeio e ele não acontecia. Deixá-lo para os tristes que, no parque em redor deste edifício agora modernizado, exibiam papéis pedindo que lhes vendessem bilhetes, até parecendo que eles andavam por aí a voar fazendo inveja aos pardais. A defesa britânica tem a dureza da macacaúba. As rochas brancas de Dover suportam as espadeiradas do Quixote que nelas via, com certeza, gigantes como via nos moinhos. De repente, logo no início do segundo tempo, um rasgo soberbo de Yamal, no seu ar agarotado de quem vai apanhar papoilas e miosótis, lança Nico para o primeiro golo. É uma fresta. Um buraco. E agora? Nem tempo tenho para a resposta e os ingleses muito menos. Por muito pouco não surge o 2-0. O campo tornou-se maior e está mais ocupado na vertical. Mas toda a Inglaterra treme com as oportunidades de Morata e de Williams. É uma equipa baralhada, a de Southgate. Obrigada a adiantar-se sujeita-se aos contra-golpes. O desequilíbrio é evidente. De La Fuente, que ao intervalo trocou Rodri por Martin Zubimendi, parece por seu lado saber perfeitamente o que fazer. Sai Kaene e entra Watkins, o tal que marcou o golo decisivo, aos 90 minutos, na meia-final contra a Holanda. Será convicção ou apenas um palpite? Bellingham ameaça Unay Simon. Podem não ser um exército de gigantes mas já não são, com foram em alguns jogos anteriores, um exército de ovelhas alvas e pávidas. Yamal obriga Pickford a defender em esforço. Os acontecimentos tornam-se atractivos. Morata sai para entrar Oyarzabal e a Espanha agarra-se a um desígnio de vontade. «Hoy es el día, hoy es el primer día, y ya nunca seremos más jóvenes que ahora», escreveu certa vez Amalia Bautista, poetisa de Madrid. Sim, a juventude e o sortilégio dos dois extremos espanhóis é de encantar, mas a Inglaterra, apesar de estonteada, não está morta. Sozinho, a meia-dúzia de metros da grande-área adversária, Palmer acabado de entrar chuta com o pé esquerdo e faz o empate. «Olés» silenciados, ouve-se o ecoar de «C’mon England!» Faltam 15 minutos para o fim e tudo pode agora acontecer. E, no entanto, parece que regressamos ao início: ergue-se nova muralha branca, os cavaleiros vermelhos voltam a ser donos da bola quase em exclusivo. Yamal tem o golo mas o remate sai à figura. Nacho é chamado ao combate. Williams multiplica-se pela frente de ataque. O medo será castigado! A passe de Oyarzabal  Cucurella corre pela esquerda onde Nico já não está, tira um passe rasteiro para a zona do penalti e o mesmo Oyarzabal surge de rojo para o 2-1.  Oitenta e seis minutos, por extenso. Ainda há confusão na área de Unai mas não passa de um estertor escabujante. O Campeonato da Europa chega ao fim com a vitória da coragem e da arte. Termino a última das crónicas à moda de Lorca, com uma borboleta afogada no tinteiro. As palavras que ainda havia para escrever perdem-se no céu escuro de Berlim.