Como vê o problema da água?
Tenho 50 anos de carreira e sempre me lembro de ter havido problemas de água, são sempre diferentes, sempre difíceis, mas também têm sido sempre resolvidos.
Mas fala-se cada vez mais da escassez de água, especialmente em determinadas zonas do país, como o Algarve, apesar de ter chovido mais nos últimos meses…
Temos de perceber o que queremos resolver, e se há problemas que não têm solução, há outros que têm. S. Francisco de Assis dizia: ‘Deus, dai-me força para mudar o que pode ser mudado, resignação para aceitar o que não pode ser mudado e sabedoria para distinguir uma coisa da outra’ e os problemas da água são exatamente assim. Alguns, em determinado contexto não têm solução, mas na maior parte dos casos têm. E a verdade é que não há escassez de água, nem Portugal, nem do mundo, mas pode haver guerras em Portugal e no mundo por causa da água, porque há problemas que estão a ser resolvidos de forma errada.
São sempre decisões políticas?
A água, em última análise, é uma questão política e está sempre dependente do responsável político do momento para a tomada de decisão ou não. E tecnicamente a questão da água é muito complexa do ponto de vista ambiental, económico e social.
Como vê as decisões que, entretanto, têm sido tomadas?
Em Portugal temos dois países. Temos uma parte do país onde não há falta de água e temos outra parte, onde há falta. Portugal é muito pequeno, mas é assimétrico. No entanto, não há escassez de água, há é um problema de gestão e acredito que gerindo melhor não teríamos esse problema em nenhum sítio do país. Legitimamente há opiniões diferentes e essencialmente a questão põe-se se temos escassez ou não, uns dizem que sim, outros dizem que não. Sou daqueles que diz que não. Melhor, temos escassez, mas não tínhamos razão para isso porque tínhamos água que chegue e há países muito mais secos e que são mais ricos que nós. Isto é, há muitos países com menos água por habitante e que são mais ricos do que nós, porque gerem a água de forma diferente. Temos de gerir melhor a água. Não podemos dizer que temos escassez em Portugal e depois termos quase 200 entidades gestoras com mais de 20% das perdas e termos grandes consumos, designadamente os agrícolas. Se tivéssemos escassez não haveria tantas entidades gestoras com perdas tão grandes que chegam aos 70%. Se tivéssemos escassez mediamos a água, porque o que não medimos também não gerimos. Se tivéssemos escassez estaríamos a utilizar água residual tratada, em vez de estarmos a desperdiçar no mar 600 milhões de metros cúbicos de água que vem das cidades e onde já gastamos quase um euro por metro cúbico nas nossas faturas citadinas para pagar essa água. E o que é que estamos a fazer com essa água alegremente? Estamos a atirá-la para o mar, inclusivamente no Algarve, que é o sítio do país onde há mais escassez. Se tivéssemos escassez já teríamos dessalinizadoras a funcionar, como outros países têm. Se não temos nada disto então é porque a escassez não é tão grande como aquela que, às vezes, se diz e a felicidade é que temos solução para isso. Qual é? Pela eficiência, gerindo melhor os sistemas da água. No caso da agricultura, temos uma agricultura a quem temos de agradecer por nos alimentar a todos, quase tudo o que precisamos para comer é produzido cá – exceto, por exemplo, o café, o cacau, o chá, as bananas, como também não temos condições para produzir em quantidade os cereais que precisamos. Por isso, cerca de 95% do trigo e cerca de 70% do milho é importado. Foram feitas duas tentativas para produzir cereais em Portugal e falharam as duas. Uma antes do 25 de Abril e outra depois. Os cereais são produtos de cêntimos, vendem-se a 20 cêntimos o quilo e ao produtor até é pago menos e para serem produzidos em Portugal, segundo as minhas contas, precisávamos de cinco Alquevas, em que cada Alqueva custa 2500 milhões de euros e cada Alqueva precisava de um Guadiana. Mas não temos cinco Guadianas, nem temos cinco vezes 2500 milhões de euros e, mesmo que, se tivéssemos e se construíssemos essas barragens, iriam demorar 20, 30 ou 40 anos a fazer. Portugal não é abençoado para fazer esse tipo de cultura e está sujeito à concorrência ao nível mundial, onde há só solo fértil e água, em que chove na altura certa, sem precisar de se estar a armazenar ou a transvazar ou a dessalinizar.
Nesse tipo de culturas compensa mais importar…
Exatamente, é a chamada água virtual. Temos de perceber que tudo aquilo que não temos condições de produzir cá mais vale comprar fora e depois exportar outras coisas, em que somos mais competitivos. Por exemplo, Singapura não tem agricultora e é rica, o mesmo acontece com o Luxemburgo.
Os agricultores portugueses usam a água de forma eficiente?
Muitos sim, infelizmente. E infelizmente porquê? Porque temos em Portugal uma agricultura extremamente eficiente com rega gota a gota, onde há mais escassez de água no Algarve, por isso é que digo infelizmente, caso fosse ineficiente ainda poderia haver uma solução para produzir o que estão a produzir com menos água. No entanto, como o já estão a fazer é mais difícil. Em relação ao Algarve, para não haver falta de água temos de ser realistas e temos de separar o abastecimento público da agricultura. Isso já acontece em todos os sítios, menos no Algarve. E mesmo quando há secas já não há falta de água nas torneiras porque as captações das Águas de Portugal estão separadas da agricultura e da indústria e deve manter-se assim. O problema neste momento da água em Portugal chama-se Algarve, em que a água já não chega para os atuais usos e os usos estão a aumentar.
Em relação à agricultura, culpa-se, em grande parte, a produção da pera abacate…
Quer seja para a laranja, seja para o abacate, seja para o campo de golfe é usada a mesma quantidade de água para a rega. Estou a falar de cinco mil metros cúbicos por hectare e por ano, só que com um pormenor, uma certa área de laranjal rende muito menos do que a mesma área de pera abacate, porque a laranja – mesmo sendo uma das melhores do mundo – é vendida na árvore a 20/30 cêntimos o quilo. Porque é que vendem barato? Se calhar estão a produzir mais do que aquilo que o mercado está disposto a pagar. Inclusive estão a vender a melhor laranja do mundo para sumo de laranja de marca branca a granel. Por exemplo, uma família come à vontade um quilo de laranja por dia e para haver esse quilo de laranja por dia foi gasto 300 ou 400 de litros de água com rega gota a gota. Ou seja, num dia, uma família que come um quilo de laranjas gasta tanta água para fazer tudo em casa, como a água que foi necessária para produzir esse tal quilo de laranja que come. Mas não devemos demonizar a agricultura, porque a agricultura não gasta água. As plantas são máquinas de evaporar água e só assim é que produzem os alimentos. Não são os agricultores que gastam água, os alimentos é que gastam muita água. Agora, o agricultor essencialmente quer o melhor para si e para a sua família e é bom para o país que tenhamos agricultores ricos e famílias de agricultores ricas, mas para isso, não precisam de produzir melhor, porque já o fazem, precisam é de vender melhor. Como é possível uma laranja com a qualidade da do Algarve ser vendida a 20 ou 30 cêntimos o quilo e compramos no supermercado cinco ou dez vezes mais cara? O segredo está no preço. Temos uma agricultura de cêntimos e temos de passar para uma agricultura de euros. No caso do Algarve há quatro números mágicos: 75, 15, 135 e 40. 75 metros cúbicos que as Águas do Algarve vão buscar ao mar para abastecimento público e para os hotéis, 15 é a quantidade de água que é gasta para regar os 40 campos de golfe do Algarve, 135 é a água gasta para todo o regadio e 40 é a quantidade residual tratada que é desperdiçada anualmente no mar porque não tem procura. Ora, numa situação destas pergunta-se há escassez? Não há escassez, então qual é a solução apontada? Fazer uma dessalinizadora para 15 milhões de metros cúbicos.
Um investimento que está previsto no PRR…
Queremos ir buscar ao mar, gastando 100 milhões de metros cúbicos e gastando uma quantidade de energia significativa. Por um lado, essa água fica a 50 a 60 cêntimos o metro cúbico, por outro lado, estou a atirar para o mar não 15, mas 40 milhões de metros cúbicos que poderia servir para regar todos os campos de golfe do Algarve para acabar com essa dicotomia e picardia que não faz sentido entre a agricultura e o turismo de golfe e, por uma razão muito simples, o golfe no Algarve corresponde a 5% do terreno agrícola, ou seja, gasta 5% da área. Mas o output do turismo do golfe é maior do que a agricultura. Ou seja, um campo de golfe tem 40 hectares, o equivalente a 40 campos de futebol e um jogador gasta 100 euros por um quarto e é capaz de gastar outros 100 euros em bebidas e em refeições. Feitas as contas, um campo de golfe dá um rendimento de cinco milhões por ano e dá emprego. A mesma área se for para laranjas dá certamente também emprego, mas só rende 200 mil euros por ano, é 25 vezes menos. Se for produzida pera abacate na mesma área, rende mais do que laranja e gasta mais ou menos a mesma quantidade de água. Se for mirtilo ainda rende mais porque é vendido a 20 euros o quilo, enquanto o abacate é vendido a três ou quatro euros o quilo. O que isto revela? Do ponto de vista dos abastecimentos públicos é necessário acabar com as perdas de água que são intoleráveis e perdas acima de 20% não deveriam ser possíveis, como também não é razoável gastar-se tanta água na agricultura em produtos baratos para exportação. Mais, Alqueva é muito importante para o país, fiz parte do Governo que o fez, mas não está a contribuir para a segurança alimentar do país, porque está a dar prejuízo. Está a vender água a três cêntimos, está a produzir essencialmente azeite a granel que depois é exportado e depois Portugal compra a outros países dez vezes mais caro e o mesmo acontece com a amêndoa. É muito importante que as universidades e os institutos de investigação trabalhem em perfeita articulação com os agricultores para os ajudarem não a produzir bem porque isso já o fazem, mas a produzir coisas que deem dinheiro e com isso tirem mais partido da água que temos.
O Governo no início do ano anunciou uma série de restrições para o Algarve. As medidas pecam por ser tardias?
As medidas pecam por falta de diálogo e por falta de profundidade de análise. Se calhar são as medidas possíveis, mas num contexto em que não há uma articulação suficiente, curiosamente, coisa que já houve no passado, quando havia os conselhos de bacia, em que se sentavam à mesa para partilhar a água existente. No caso do Algarve, fez-se um plano de eficiência hídrica, no entanto, não se pôs em causa a forma como os sistemas de abastecimento público estão a ser geridos. Em relação aos números que já dei: dos 75 milhões que são gastos no abastecimento público, cerca de 15 são perdas reais da água e se passássemos de 15 para 10 em vez de irmos buscar à natureza 75 só precisávamos de 65. Se os campos de golfe fossem obrigatoriamente regados com água residual tratada já podíamos abater àqueles 65 e daria 50. Daí afirmar que no Algarve era importante separar completamente o sistema de abastecimento público do resto, depois a agricultura autorregular-se e até ficava com mais água disponível porque parte da água para o abastecimento público poderia ser usada para a agricultura, só assim se podia mostrar que está a usar bem a água que está a pagar, o que não está a acontecer atualmente. Em Portugal, 90% dos consumos agrícolas não são medidos e não sendo medidos não são suficientemente bem geridos. A própria entidade gestora, a APA, não tem o registo de todos os furos. Por exemplo, no Minho não precisa de ter porque tem água a mais, agora no Algarve tem de passar a ter. Conclusão, em 2024, Portugal não tem falta de água pode é no Algarve gerir de forma diferente, gerir melhor e se o fizer há condições para que nos próximos anos não seja preciso fazer restrições, porque são sempre penosas.
E mal compreendidas…
Ninguém quer restrições e do meu ponto de vista não faz nenhum sentido haver falta de água no Algarve, nem em casa das pessoas, nem no turismo que pesa mais de 10% do PIB na região. Vamos fechar piscinas ou campos de golfe? E depois os turistas vão para a Grécia ou vão para outros lados e os portugueses ficam sem emprego? Não faz sentido. E também não faz sentido o que já ouvi dizer que é ir buscar água ao Minho para enviar para o Algarve.
As tais autoestradas de água…
Infelizmente não tem racionalidade económica, oxalá tivesse, porque para ir buscar água ao Minho para trazer para o Algarve, mesmo sendo tecnicamente possível teria de ser feito num cano fechado, ao contrário de algumas soluções mirabolantes que ouço de passar a água de uns rios para os outros, o que é totalmente impossível do ponto de vista ambiental. É uma atrocidade. Era aquilo que os espanhóis também queriam fazer há 30 ou 40 anos. É tecnicamente possível através de um cano de água ir buscar do Norte para o Sul, mas não é razoável dizer-se que se vai buscar água ao Douro porque não tem água que chegue. Em 2022 até houve falta e houve reclamações portuguesas legítimas de que Espanha não estava a enviar água suficiente para cá. Na minha opinião, é totalmente impensável trazer água do Norte para o Sul. Não faz sentido e se o fizéssemos haveria uma guerra de água em Portugal e isso é a última coisa que queríamos. É possível se calhar ir buscar ao Minho, por exemplo. Mas o problema é que trazer essa água para o Sul custa tanto como o TGV, custa milhares de milhões de euros, tem de ter um estudo de impacto ambiental e demora dez, 15, 20 anos a fazer e chega lá com um gasto de energia no mínimo a 25/30 cêntimos o metro cúbico.
Não é rentável, nem do ponto de vista financeiro, nem do ponto de vista temporal?
Exato. Para quem neste momento pede uma solução transvase infelizmente já não vai vê-la enquanto está a trabalhar. Não é possível fazer uma barragem, um transvase em menos de dez anos. Aliás, 15 ou 20 anos já é pouco. Logo, demora esse tempo a construir e depois a água chega a 20 cêntimos o metro cúbico, por esse preço não vale a pena. É preferível por esse valor reutilizar a água de Lisboa, por exemplo, já que fica mais barato do que ir buscar água ao norte.
Porque é que continua a existir uma resistência em reutilizar a água?
Daqui a uns anos vai acontecer o que já se verifica, por exemplo, em Singapura ou na Namíbia, que reutilizam a água de esgoto para abastecimento público. Essa é uma solução que vai acontecer dentro de talvez cinco, dez anos, daí não fazer sentido em investir num transvase que demora mais tempo a ser construído. De uma forma geral, em Portugal não precisamos de reutilizar o esgoto para beber porque temos o problema resolvido para as próximas décadas com o sistema das Águas de Portugal, praticamente não há falhas de água nas torneiras, mesmo nas secas, tirando o Algarve. Neste caso, só vale a pena pensar no Algarve e porque é que não reutilizam a água? Há 600 milhões de metros cúbicos de água, que é mais do que do que aquilo que se gasta em Alqueva – onde se gasta 500 milhões de metros cúbicos – as águas residuais do país são mais que isso e estão a ser lançadas, em última análise, no mar, incluindo no Algarve e quem usa muita água e podia reutilizá-la que é a agricultura tem neste momento um historial de usar água gratuita. Logo, quem tem água gratuita não vai querer pagar nada. Essencialmente, não há reutilização da água em Portugal, como também não há na Europa, como não há em qualquer país do mundo, com a exceção de alguns países, porque há uma ilusão de que há água a mais, que é um bem público que podemos usar e que tem de ser gratuita. Já no que diz respeito ao campo de golfe, é diferente porque quem joga tem dinheiro suficiente para que esse campo seja regado com água reutilizada, como acontece no Porto Santo. Se o Algarve tem 40 campos de golfe, se gasta 15 milhões de metros cúbicos de água e compete com a agricultura, o que digo é que aqueles 40 milhões de metros cúbicos de água residual tratada davam para regar não 40, mas 200 campos de golfe, desde que fossem construídos nos sítios certos para não pesarem no ambientem já que rendem cinco milhões por ano. Ora, 40 campos de golfe vezes cinco rendem 200 milhões. Se tivéssemos 100 campos de golfe renderiam 500 milhões. A mim surpreende-me que estes números não apareçam.
E em relação ao uso da água das chuvas?
Já está a ser muito usada. Só vivemos com a água da chuva que vai para o subsolo e para as barragens. Do Tejo para baixo e também em Trás-os-Montes há problemas de água que têm de ser resolvidos do lado da procura e do lado da oferta. Do lado da procura é necessário ver bem o que se está a cultivar e tentar junto das universidades e dos centros de investigação cultivar coisas que gastem menos água. Há produtos que são adequados a água mais salina, mais salobra e, ao mesmo tempo, produzir culturas que sejam mais rentáveis, que tenham maior valor acrescentado. Não faz sentido pedir um transvase a um setor que não tem capacidade económica para o pagar, o que é preciso é haver uma discussão sobre a matéria e mudar alguns comportamentos e quando digo mudar alguns comportamentos é mesmo mudar algumas culturas.
Quanto ao novo Governo, o que está à espera em relação a estas matérias?
Espero que haja esse diálogo por parte dos novos ministros. E peço a quem está a entrar agora que analise com todos os setores, com serenidade, sem crispação, as soluções e que se façam contas. É também preciso ver os impactos ambientais, esse é que é o desafio. Virou-se a página e quando se vira uma página temos de ter esperança que os assuntos que não foram resolvidos no passado sejam agora resolvidos. Estou de facto, com esperança, conheço as pessoas que estão e acredito que vão fazer essa tentativa. Cá estaremos depois para avaliar os resultados.