João Varandas Fernandes. ‘Há setores da Saúde que estão na Idade Média’

João Varandas Fernandes. ‘Há setores da Saúde que estão na Idade Média’


Apesar das críticas, Varanda Fernandes acredita que o SNS pode ser salvo com uma reforma, que inclua, entre outros, o aprofundamento dos Centros de Responsabilidade Integrados, até para acabar com as listas de espera.


Tem um vasto currículo na área da ortopedia. É o atual diretor do Centro de Responsabilidade Integrado (CRI) de Traumatologia Ortopédica no Hospital de S. José, e o público futebolístico conhece-o das suas andanças como vice-presidente do SL Benfica, na era de Luís Filipe Vieira. Fala com uma rapidez impressionante, e bem audível. Coordena o grupo de trabalho de Saúde do CDS, mas isso não impediu o atual diretor executivo do Serviço Nacional de Saúde, Fernando Araújo, de o convidar para liderar a Unidade Técnica de Missão para a implementação dos CRI’s. Os detalhes do diploma para a formação desta unidade técnica estão em elaboração, mas João Varandas Fernandes está entusiasmado com a possibilidade de ajudar o SNS a dar um pulo com os tais Centros de Responsabilidade Integrados, que permitirão, na sua opinião, satisfazer doentes e profissionais de Saúde, acabando com as listas de espera cirúrgicas. O antigo diretor de Urgência do Hospital S. José explica também que hoje, na sua área, cinco a sete por cento dos doentes internados já são estrangeiros e lembra os problemas que as novas formas de mobilidade têm trazido à faixa etária dos 20-40 anos, e também como os maiores de 75 são das principais vítimas de atropelamento de bicicletas e trotinetas. 

Os Centros de Responsabilidade (CRI) Integrada foram criados em 2017, salvo erro.

Já havia legislação antecedente, do tempo da ministra Maria de Belém, uma forte defensora da autonomia nas unidades de gestão clínica.

Por que verdadeiramente nunca entrou em vigor, sem ser em Coimbra?

Entrou em Coimbra em pleno e em alguns sítios de uma forma ténue. Para se implementar completamente é preciso vontade política. A razão para que as coisas se possam fazer vêm muito das condições que haja para poderem ser realizadas. A troika teve consequências negativas, mas, desde 2017, com a legislação que foi saindo sobre os Centros de Responsabilidade Integrada (CRI), e ultimamente com a vontade política, quer do atual ministro, quer da direção executiva do Serviço Nacional de Saúde, tem sido possível dar passos no sentido de virem a ser implementados de uma forma generalizada.

O que são os Centros de Responsabilidade Integrada?

Os CRI’s são estruturas orgânicas de gestão intermédia na dependência dos conselhos de administração, entidades que se integram e com as quais é estabelecido um processo de contratualização interna, através do qual é negociado o compromisso de desempenho assistencial, económico-financeiro por um período de três anos. São um instrumento de autonomia de gestão.

Isso significa que determinado departamento médico, no seu caso cirúrgico, tem uma verba para distribuir por uma equipa que vai operar qualquer doente, quer para o médico e para os enfermeiros, quer para os anestesistas.

A condição prioritária é aumentar a acessibilidade e melhorar os tempos de resposta do SNS, com autonomia. Ou seja, com a responsabilização dos profissionais na gestão dos recursos e que asseguram o desenvolvimento das melhores práticas. E isso traz-nos incentivos financeiros, que têm uma componente variável e uma componente fixa, aí é que podemos tratar das verbas a distribuir por todos os os profissionais que trabalham nos CRI’s.

O que são as verbas fixas e as variáveis? E quem é que beneficia dessas verbas?

Posso falar, no nosso caso, no CRI de Traumatologia Ortopédica do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central – que é composto por sete hospitais -, temos uma distribuição de verbas por todos os funcionários, desde o técnico administrativo aos técnicos de diagnóstico e terapêutica, aos enfermeiros, aos auxiliares, aos médicos.

No fundo, estamos a falar de trabalho adicional para combater as listas de espera.

Sim, é uma cirurgia que é efetuada para além do horário do seu próprio trabalho, e que é para dar resposta o mais rapidamente possível aos doentes que se encontram internados. Agora, os CRI’s, além disso tudo, têm parâmetros de grande avaliação na atividade assistencial e nos indicadores de desempenho.

Isso só tem a ver com quantidade de operações?

Tem a ver com a quantidade, mas também tem a ver com a demora média, com a taxa de mortalidade, com a taxa de infeções, com o número de trabalhos publicados, com a taxa de ocupação do bloco operatório. Tem a ver com uma série de indicadores de atividade assistencial, e não só, que têm de ser acima de 70%. Se for abaixo, já não tem qualquer incentivo. No fundo, os CRI’s têm um processo de contratualização com um sistema de incentivos financeiros. Estes incentivos têm uma componente fixa e uma componente variável, dependente do cumprimento do Contrato-Programa, que engloba vários parâmetros da atividade assistencial e indicadores de desempenho. A componente fixa resulta do valor da produção adicional contratada e a componente variável da aplicação de uma percentagem sobre esse valor. O valor é estabelecido no manual de operacionalização definido por cada Hospital, ajustado ao Índice de Desempenho Global realizado. Este modelo de contrato é desenvolvido para as especialidades cirúrgicas, mas vemos com urgência o desenvolvimento de um modelo semelhante para as especialidades médicas, área da saúde mental, serviços de urgência e meios complementares de diagnóstico.

Digamos que é desde o médico de família até…

Os médicos especialistas de Medicina Geral e Familiar, que exercem a sua atividade nos Centros de Saúde, organizados em USF modelo B, têm incentivos atribuídos ao seu desempenho. É muito importante a multiplicação das Unidades Locais de Saúde (ULS), que integram os Hospitais e os Centros de Saúde do mesmo concelho, porque com a aproximação dos cuidados (Primários de Saúde e Hospitalares) pode existir uma autonomização da gestão e implementação de modelos de organização e de financiamento, quebrando a cultura ‘hospitalocêntrica’, dinamizando os cuidados de saúde e contribuindo para uma melhoria na prestação de cuidados. Estas Unidades devem consagrar cuidados dirigidos aos cidadãos, não pretendendo ser uma acumulação de serviços.

Se os CRI’s são para resolver os problemas dos doentes e dos médicos, qual a razão para não se alargar a outros?

Os médicos especialistas em medicina geral e familiar já têm as USF tipo B, que são remunerados também por incentivos.

Então por que há tanta dificuldade em arranjar médico de família?

Há muita dificuldade em arranjar especialistas de medicina geral e familiar porque é pouco atrativo, e além de ser pouco atrativo do ponto de vista da realização profissional, em muitos dos casos, as remunerações são muito baixas e, de facto, há zonas do país que estão mais carenciadas que outras. Mas o número de médicos que são formados e que se candidatam a essas vagas são manifestamente inferiores ao número de vagas disponíveis. Há escassez de candidatos.

Mas não seria de expandir este modelo do CRI?

Penso que é fundamental a expansão do modelo do USF tipo B – que são remuneradas com incentivos, enquanto o modelo A não é remunerada com incentivos -, que tem a ver com o número de doentes que são atendidos e com a carteira de doentes que potencialmente possam vir a estar sob a responsabilidade desse médico.

Mas tem só a ver com o número de doentes?

Também tem índices de desempenho e tem a atividade assistencial em si. Mas, de facto, o número é muito importante. Nós temos um país em que há cerca de 1.500.000 doentes sem médico especialista em medicina geral e familiar. É urgente cobrir isso, porque se não houver uma cobertura dos cuidados primários de saúde, a pressão sobre os serviços de urgência e sobre os internamentos hospitalares continua a existir. Acho que o nosso foco de maior investimento neste momento deveria ser os cuidados de saúde primários. Há um aumento das listas de espera porque não só há uma escassez de médicos de família, como também a parte hospitalar não está devidamente organizada para receber os doentes que são referenciados. Chegamos a ter listas de espera de mais de dois anos em determinado tipo de doenças. E a burocracia também nessa transição, nessa fluidez, nesse fluxo de doentes, é angustiante, tem um percurso difícil.

Está a referir-se a quê?

À inscrição, ao encaminhamento, à marcação da consulta, à marcação do exame. Tudo isso é difícil. Por isso é que muitas das vezes, os doentes, para resolverem os seus problemas, vão aos serviços de urgência.

Acha que este problema da falta de médicos de família tem alguma comparação com o período da covid, em que muitas pessoas agravaram o seu estado de saúde precisamente por não serem atendidos, já que ficavam em casa?

Os cuidados primários de saúde são importantes, não só no tratamento como também na prevenção e na promoção. Na prevenção da doença e na prevenção da saúde. Isso é tudo importante e, portanto, o médico especialista de medicina geral e familiar tem um papel importantíssimo na sociedade, quer em termos de promoção, de prevenção, como de tratamento. Se isso funcionar, obviamente que vai aliviar os hospitais. Mas para isso também funcionar, porque a saúde não precisa só de medidas avulsas, precisa de uma reforma que tenha um caminho determinado. E esse caminho passa também, ao termos essas condições nos cuidados primários de saúde, por ter condições nos hospitais. E os CRIS’s vêm dar condições aos hospitais para responder de uma forma rápida, com qualidade e com satisfação, quer para os profissionais de saúde, quer para os doentes que precisam dessa mesma assistência.

E acha que isso poderá estancar um pouco a saída dos médicos do público para o privado?

Primeiro, há uma falta de planeamento e um desinvestimento em profissionais e em equipamentos, nomeadamente em instalações e em tecnologias, com maior significado até nos cuidados primários de saúde, nos cuidados continuados e nos cuidados paliativos. Esse é um aspeto. Há uma falta de complementaridade entre os setores público, privado e social. Não se verifica essa complementaridade, essa sinergia que é importante existir. Os portugueses querem ter acesso a cuidados de saúde de qualidade e no tempo adequado. Julgo que os portugueses não querem saber se o cuidado de saúde é prestado no sítio A, B ou C, querem é ter qualidade de saúde a tempo e horas. A Saúde vive no estado de penumbra e é preciso inverter isso.

O Estado tem dinheiro para isso tudo? Já defendeu numa entrevista que, por exemplo, os médicos de família podem estar no privado. Acha que isso faz algum sentido? Supostamente um médico que está no privado ganha mais do que no público.

Os profissionais de saúde, nomeadamente os médicos, ganham cerca de 50 a 60% menos que os dos países da União Europeia. O serviço de saúde tem tido até agora uma amarra ideológica fortíssima que tem destruído boa parte dos alicerces fundamentais do SNS. É excessivo. Há sectores da Saúde na Idade Média. Deve-se despolitizar o serviço de Saúde, nomeadamente o público. Nós tínhamos as Parcerias Público Privadas (PPP), e o relatório do Tribunal de Contas aponta que as PPP, na área da saúde, tinham ganhos da ordem dos 200 milhões de euros e foram extintas por ideologia. Não faz sentido. Estive numa PPP, que foi a primeira e é a única que se mantém ainda hoje, que é a de Cascais. Fui eu e um conjunto de colegas e de administradores da Caixa Geral de Depósitos que fizemos a PPP com um gosto enorme, em que conseguíamos dar resposta, em termos de qualidade, àquilo que a população do concelho de Cascais precisava. Mas todas as outras acabaram, como são os casos de Braga, Vila Franca de Xira, de Loures… Não há uma razão lógica, a não ser ideológica, para extinguir essas parcerias. Daí que diga que o Serviço de Saúde não pode estar refém das amarras ideológicas, tem de ser preservado, tem de ser desenvolvido e com medidas empreendedoras. Aliás, a maioria das correntes de opinião ligadas ao setor defende que este SNS precisa de uma reforma e que esta reforma tem que assentar em vários pilares: nas USF com incentivos, o modelo B, com os CRI’s nos hospitais, que são multidisciplinares, têm várias especialidades, tratam determinado tipo de doenças específicas, e que a seguir têm um conjunto de profissionais que prestam assistência para um determinado número de horas contratualizadas, àquela unidade. Isto é uma vantagem para os doentes.

Que tipos de especialidades?

A medicina interna, a farmacêutica, a neurocirurgia, a dermatologia. Há várias especialidades que colaboram com essas entidades. No meu caso, a fisiatria colabora no meu Centro de Responsabilidade Integrada…

O que está a dizer é alargar a parte cirúrgica a todas as outras estruturas.

Sim, de apoio à qualidade de um doente. Um doente é reoperado na área da traumatologia ortopédica, precisa de uma reabilitação precoce na maioria dos casos. Se tivermos os terapeutas lá, 365 dias por ano, é mais fácil e mais rápido reabilitar esse doente potencialmente do que não tendo. Ou seja, temos de ter um fisiatra, terapeutas, farmácia, psicologia, assistente social, nutrição, medicina interna.

Acha que isso fará estancar a ida de médicos do público para o privado?

Dou-lhe algumas soluções que podem estancar essa debandada. Coordeno um grupo trabalho de saúde no CDS, onde participam elementos reconhecidos de vários grupos profissionais, alguns até independentes, e entendemos que o sistema, além de doentiamente politizado, tendencioso na sua administração, provoca desigualdades no acesso e apresenta uma enorme escalada e renúncia de profissionais de Saúde qualificados que saem quer para o estrangeiro, quer para a medicina privada. Esperemos que a direção executiva do SNS, conjuntamente com algumas orientações políticas, as venha a implementar, depois do Estatuto do SNS, e outros diplomas orgânicos, serem, de facto, publicados. 

Mas não acha que os CRI’s dão outras garantias financeiras aos médicos?

Dão ajuda, mas só por si não resolvem todas as questões, todos os problemas que neste momento existem no setor da Saúde. Não basta publicar estes estatutos, têm que ser executados, tem que haver alterações orgânicas no próprio Ministério da Saúde, com a introdução da direção executiva do SNS, que não tem estado a suceder. As Unidades Locais de Saúde têm que ser divulgadas, têm de ser descentralizadas na sua organização, por causa da integração de cuidados, ou seja, juntar os cuidados primários de saúde com os cuidados hospitalares tem vantagem na horizontal, em que o doente é tratado através do fluxo. Torna-se mais fácil a comunicação.

O objetivo é ligar os centros de saúde…

À atividade hospitalar, aos hospitais.

Mas não é isso que acontece? Não estão em rede?

Não, podem estar em rede, mas não estão interligados debaixo das mesmas regras e das mesmas orientações. No fundo, não estão.

Dê um exemplo concreto.

Se estiverem integrados na mesma organização, na mesma direção que estão os cuidados hospitalares, e este conjunto forma as unidades locais de saúde, a resposta tende a ser mais mais rápida.

Vamos imaginar que tenho um problema no pé. Vou ao centro de saúde. Onde é que se concretiza depois essa ligação?

Se for um problema do pé simples, o Centro de Saúde resolve. Se for um problema complicado, eles passam uma marcação para uma consulta, neste caso em concreto, de ortopedia, num hospital.

E depois, qual é a ligação que é preciso fazer?

Se houver essa integração de cuidados a burocracia diminui. Um exemplo: se as urgências forem multidisciplinares e polivalentes, se forem concentradas, têm uma resposta melhor do que se forem desconcentradas.

Isso é o que o Governo está a tentar fazer, fechar as urgências daqui e manter abertas ali. Mas está a provocar uma grande contestação.

Sim, mas não basta isso. Em Saúde, não se pode ter medidas avulsas. Tem que ser um pacote de reformas, negociado, obviamente, com todos os profissionais e com as entidades que lidam com o setor da saúde. Tem que se ouvir os profissionais e os seus representantes e a partir daí as medidas não são avulsas. O problema da Saúde não se resolve com pensos rápidos. O problema é de tal maneira grave que só se resolve com medidas de fundo, com reformas estruturais, e o Governo tem conhecimento delas. Só se resolve com estas reformas estruturais, com um pacote de medidas que tem que contemplar as USF, as urgências metropolitanas, os CRI, isto é fundamental. Há aqui uma questão que tem que ser tratada, que é a dedicação plena, que está neste momento na ordem do dia. E esta dedicação plena tem que ser acompanhada de remunerações adequadas e de condições de trabalho, além de dar ao mesmo tempo alguma qualidade em termos familiares. Porque o médico em Portugal trabalha mais horas e ganha menos, por isso é que há esta emigração. Estou a falar do público, obviamente. Não sei quanto é que ganhará um médico do privado.

Mas, por exemplo, qual seria a solução perfeita para não termos esta pouca vergonha do encerramento das urgências de obstetrícia e por aí fora?

Primeiro tem que se ter um diálogo com os profissionais do setor que prestam serviço nessa área de especialidade. Tem que haver um consenso entre eles. O poder político tem de estar disponível para ajudar a criar consensos, mas, ao mesmo tempo, fazer ver, com sustentabilidade, o que é melhor para os doentes, mas também o que é melhor para os profissionais. Não se pode fazer uma coisa que só seja vantajosa para um dos lados. O Governo tem de fazer investimentos significativos na área da Saúde e na formação dos profissionais de Saúde. Uma equipa demora, em média, quatro a seis anos para se formar e criar rotinas. Ao final desses quatro a seis anos, vai para a Medicina privada. Então o setor público de Saúde fica completamente vazio, não é? Isto não tem lógica.

E o que defende? Que a pessoa deva ser obrigada…

Não, devem criar condições…

Não acha que devia ser semelhante ao que se passa na Força Aérea, em que um piloto formado não pode ir para o privado sem indemnizar o Estado?

Acho que sim, que devia, mas mais importante do que isso é que sejam dadas condições a esse médico para permanecer no SNS, que não estão a ser dadas, e, por isso, estamos a assistir a esta deserção.

Qual a razão para se ter criado a CCRIA, Convergência dos Centros de Responsabilidade Integrada Associação?

Foi criada por vontade de um conjunto de profissionais, predominantemente médicos, que trabalham nos Centros de Responsabilidade Integrada em funcionamento nos Hospitais. Estes profissionais têm como objetivos, apoiarem, dinamizarem, promoverem os CRI’s e compartilharem experiências, boas práticas clínicas e de governação. É relevante colaborar no crescimento destas Unidades, com autonomia de gestão, facilitando os mais variados meios de comunicação institucionais. A Associação é criada para facilitar essa implementação, contribuindo com as experiências individuais e coletivas, a nível local e regional. O nosso objetivo é contribuir para uma melhoria na qualidade dos cuidados de saúde e valorizar os profissionais de saúde, modernizando a gestão e fundamentar os incentivos baseados no desempenho.

Em quantos hospitais existem os CRI’s?

Existem cerca de 40 CRI’s a nível nacional, concretizados em vários Hospitais. As comunicações que têm sido efetuadas por vários responsáveis políticos, são no sentido de incentivar a criação de novos Centros.

Defende a dedicação exclusiva ao serviço público ou não?

Defendo a dedicação plena ao serviço público, desde que haja condições de trabalho, de atualização, de formação e de remuneração que sejam suficientemente apelativas para que essa dedicação plena seja concretizada. A forma de podermos atrair os profissionais é com o projeto e com a remuneração. Os profissionais são atraídos com isso. Os CRI’s estão numa fase de desenvolvimento e de implantação, daí que tenha sido oportuna a criação da Associação. A haver uma separação profissional entre privado, social e o SNS só deve ser conseguida quando os médicos no SNS tiverem as condições remuneratórias e de poderem praticar a sua especialidade a nível europeu.

Curiosamente, assinou o Manifesto da Insubmissão aos poderes político e económicos. Sendo o representante do CDS na área da Saúde, e perante o seu discurso, estranhei ler este manifesto assinado por si. Que quase começa com a frase a ‘Saúde era na altura da ditadura fascista’. Mesmo à Esquerda são muitos os que dizem que não houve fascismo, houve sim uma ditadura.

Mas eu não sou fascista, sou um democrata.

‘A degradação continuada do direito constitucional à saúde por via de políticas sucessivas de desinvestimento nos serviços públicos de saúde e de aplicação cega de cartilhas neoliberais de transformação deste direito num qualquer bem de consumo sujeito às leis da oferta e da procura, conduziram à atual situação da profunda crise na prestação dos cuidados de saúde’, lê-se no Manifesto. Acha que são os neoliberais os responsáveis pelo estado do SNS?

Não sou um neoliberal puro.

Mas quando fala nos preconceitos ideológicos calculo que não esteja a falar dos neoliberais.

Certo, mas não pretendo uma liberalização total e completa em relação à Saúde. Não é isso que defendo, e aqui estou a falar em nome pessoal. O SNS é um pilar importante da democracia e da estabilidade social do país. Sou um defensor do aprofundamento das reformas no SNS, sem perder a sua matriz de universalidade e de igualdade no acesso. Quando me lê isso, o título é Insubmissão e eu acabei por dizer que o Serviço Saúde, nomeadamente o público, está com uma marca ideológica que eu condeno.

Mas o Manifesto condena as cartilhas neoliberais.

Deve haver bom senso no meio disto. As políticas podem ser muito discutidas, mas há uma coisa que são as condições do país em que estamos a viver. O grau de desenvolvimento que o país tem, não só económico, mas em todas as outras áreas. E a satisfação dos doentes e o atraso nas reformas da saúde que nós estamos a viver. Esta reforma da saúde que estamos a exigir, com mais investimento e melhor planeamento, isto já devia ter sido feito, e têm vindo a ser sucessivamente lançados avisos sobre isto – desde há praticamente 15/20 anos que se adivinhava uma rutura, um desgaste e um colapso iminente no serviço público de saúde. Está a suceder, e se não forem tomadas medidas urgentes para isso, o SNS entra num desgaste inumano, numa erosão enorme. Sou um defensor do SNS, insubmisso a lutas político partidárias – temos profissionais independentes e com as mais variadas opções, mas temos em comum defender um SNS adaptado aos atuais e próximos tempos. Sou coordenador do grupo de trabalho do CDS na área da saúde e existe uma sensibilidade social muito sentida e partilhada por todos. Sou um democrata-cristão, sou um homem de fé, mas não tenho as cartilhas como fundamento. Esta insubmissão é uma revolta por o sistema de saúde estar excessivamente politizado, tem que se despolitizar, desde as nomeações para os conselhos de administração. Tem que se ir às pessoas mais capazes. Sei que não é fácil, é um sistema complexo, o da Saúde, mas temos que começar por algum lado. Acho que esta direção executiva do SNS tem esta vontade de começar a fazer, assim sejam dados os meios para eles poderem fazer.

Não é estranho um vice-presidente do CDS assinar um manifesto de insubmissão que diz que ‘os poderes político e económico têm trabalhado articuladamente para subjugar a classe médica, considerando-a um inimigo interno que urge liquidar’. Acha que isto é verdade?

É, não tenho problema nenhum em ter assinado esse manifesto, como muitas outras pessoas da minha área política.

O que será o SNS daqui a dez anos?

Se nada for feito, será residual. 

Ainda não explicou muito bem como é a integração entre o sistema público, o privado e o social.

Neste momento já existe uma interação entre o sistema público, o privado e o social. Ao fim de seis meses nas listas de espera cirúrgicas é dada a oportunidade ao doente de ser operado noutros hospitais. Sejam eles públicos ou privados.

Se houver uma lista de espera de seis meses.

Superior a seis meses. Falo no sistema público, privado e social, nesta sinergia, nesta ligação que é importante haver, porque no acesso aos cuidados primários de saúde percebemos que há 1.500.000 pessoas que não têm médico de família. O setor privado e o social podiam ajudar a colmatar essa falha. A oportunidade de os doentes serem observados por um médico a que tivesse um acesso mais rápido. Essa integração, logo à nascença, primária, estrutural, é uma coisa que defendo há muito tempo, a integração desses três setores em determinado tipo de patologias.

Os CRI’s algum dia poderão ser implementados em força? Não haverá partidos que vão dizer que isto é desonesto porque cria desigualdades, uma vez que nem todos ganham o mesmo?

Os CRI’s são um caminho para o presente e para o futuro. Nós não somos todos iguais, e há, obviamente, dentro do SNS quem seja mais assíduo, que tem melhor formação, isso existe no SNS. Isto é uma organização de médicos, são os médicos que estão a fazer, juntamente com os conselhos de administração, que estão a criar os Centros de Responsabilidade Integrados, está na lei. Obviamente que tem profissionais nas mais variadas áreas, tem enfermeiros… Isto é um incentivo para reter os profissionais no SNS. Isto não tem nada contra, não tem nada de ideológico. 

Mas sabe que há quem defenda que todos devem ganhar o mesmo.

Não podemos ganhar todos a mesma coisa. Aliás, já não ganhamos hoje a mesma coisa. As pessoas devem ser remuneradas pela sua diferenciação, pela sua prestação e pela sua capacidade de trabalho. Obviamente que para todos os outros que não tenham essa capacidade, essa diferenciação, tem que haver remunerações. Não estou a dizer o contrário.

Por exemplo, um médico que opere mal, que mate, entre aspas, doentes, merece ser bem remunerado?

Não. Merece desempenhar as funções para o qual está predestinado. Pode ser melhor noutras atividades, como em consultas. Pode ser melhor em cirurgias menos complexas. 

E isso acontece de alguma forma no setor público? Há médicos, por exemplo, que são retirados de equipas cirúrgicas porque não operam bem?

Parece-me que sim, por aquilo que tenho ouvido e lido, há médicos que têm estado a ser contestados na sua prática cirúrgica, é o que tenho lido. Cada CRI tem um conselho de gestão, é autónomo, gere os seus funcionários.

Neste vosso Manifesto, ainda não percebi o que vão fazer? Dizem que não aceitam isto e aquilo, mas então…

Já vai em mais de sete mil assinaturas.

Mas o que vão fazer a seguir?

Provavelmente vamos ter alguma representatividade para sermos ouvidos e fazer chegar a nossa voz aonde temos que fazer chegar, que são os órgãos do poder político.

O Manifesto também fala na excelência que era o SNS, à semelhança de muitos testemunhos públicos. Não há outros casos melhores, como sejam o inglês e o holandês?

Dou-lhe um exemplo: a mortalidade materno infantil diminuiu drasticamente comparativamente com os países da Europa. Não nos podemos esquecer disso. Foram estabelecidas, no SNS, unidades de cuidados intensivos, vias verdes para tratamento diferenciado e rápido em relação a determinado tipo de doenças, nomeadamente os acidentes vasculares cerebrais, os enfarte do miocárdio. Isso deve-se tudo ao SNS. E os CRI’s, a primeira implantação é no SNS, também aí estamos a ser pioneiros. É uma gestão autónoma, com vista a uma melhoria nos cuidados de saúde, com vista a uma satisfação para doentes e profissionais. O SNS em Portugal tem 40 anos e, como tudo na vida, precisa de ser adaptado às realidades existentes. Vou dar-lhe um exemplo concreto de uma situação que nos preocupa: já foram tomadas algumas medidas para a probabilidade de haver uma epidemia extrema a acontecer no breve ou no médio prazo? Não sei, agora se essas medidas não forem tomadas, por exemplo…

Está a falar na eventualidade de uma nova covid…

Covid ou uma nova variante, ou outro tipo de epidemias. Têm que ser tomadas medidas. Hoje, todos os estudos indicam o triplo do potencial de aumento em tempos futuros. Tem que haver um investimento de reforço na rede de Saúde pública. Não se pode dispensar a rede de saúde pública. Estamos preocupados com estas questões do dia-a-dia, é importante que sejam clarificadas, e que sejam tomadas medidas para que elas sejam resolvidas, pelo menos atenuadas, mas estamos a esquecer-nos que, por exemplo, as epidemias sistémicas podem acontecer a qualquer momento e temos de estar preparados para elas. Não é como aconteceu anteriormente, infelizmente em relação à covid, que por mero sinal até nos saímos bem na maioria dos casos, graças ao esforço dos profissionais de saúde.

Onde se destacou, curiosamente, o novo diretor executivo do SNS, Fernando Araújo.

E muito bem.

Acha que se ele conseguiu isso…

Conheço-o e sei que se lhe forem dados instrumentos para ele poder executar uma reforma do SNS, ele e a equipa, em conjunto com os profissionais de saúde disponíveis para isso, vai iniciar uma reforma de fundo no SNS, que é aquilo que todos nós precisamos.

Foi um dos responsáveis por ter implementado no Hospital S. José a famosa triagem de Manchester.

No ano 2000 estava na equipa do Dr. Fernando Araújo, do Dr. José Manuel Almeida, de Coimbra, e do Dr. Freitas e, na altura, desempenhava as funções de diretor de urgência do Hospital de São José, onde os doentes eram atendidos por ordem de chegada. E nós todos entendemos que, para além daquilo que já se passava na maioria dos hospitais em Portugal, o S. José ainda não tinha a triagem de Manchester e não se justificava essa situação. Após conversas com o ministro de então, o professor Correia de Campos, ele incentivou e ajudou muito a que trouxéssemos para os Hospitais Civis de Lisboa a triagem de Manchester. Isso foi uma mudança de paradigma enorme.

Mas se já existia nos outros hospitais em Portugal, qual a razão para não haver no S. José?

Não sei, talvez por existir uma cultura mais conservadora.

Mas quem é que a levou para os outros hospitais?

Foi a equipa do Fernando Araújo. Os outros hospitais foram mais recetivos, foram mais voluntariosos para aceitar.

Como funcionava o S. José antes dessa medida?

A triagem que existia no São José, na sua maioria das vezes, era por ordem de chegada. E nós introduzimos a triagem de Manchester, que era por ordem de prioridade, por gravidade. Daí as várias cores, mas houve várias resistências de profissionais que se opunham a que triagem de Manchester passasse a ser feita por enfermeiros. 

Acha que hoje poderá haver a mesma resistência em relação aos CRI’s que houve em relação à triagem de Manchester?

Os tempos são diferentes, mas o principal problema dos Centros de Responsabilidade Integrados, neste momento, é a relação interinstitucional entre os serviços que são CRI’s e os que o não são. Há uma dificuldade de relação entre os profissionais que trabalham nos CRI’s e os que trabalham fora desta organização autónoma. Daí que diga que é urgente estabelecer regulamentos e diplomas que façam com que esta articulação se possa fazer de uma maneira mais amigável, mais sustentável do que aquilo que hoje sucede. 

O que acha da contratação de médicos brasileiros e cubanos?

Somos um país aberto à emigração e não devemos impedir a vinda de outros profissionais, desde que sejam respeitados os critérios de admissão. A questão da língua na sua plenitude é um problema parcial. Os processos devem ser céleres, após os médicos apresentarem prova do passado técnico científico, através de documentação originária desses próprios países. Pela carência de especialistas em algumas áreas, não vejo razão para fecharmos portas.

E o que acha de se oferecer casas para eles virem para cá?

Os médicos portugueses devem ser tratados em pé de igualdade. Estão a oferecer casas? Não sei se estão. Se estão a oferecer casas a médicos estrangeiros para virem trabalhar para o nosso país, devem igualmente oferecer casas aos médicos portugueses que queiram ir trabalhar para as regiões mais carenciadas de cuidados de saúde. Não devem existir privilégios dos médicos estrangeiros. Os profissionais portugueses devem estar em pé de igualdade. Além da oferta das condições de habitação, devem existir condições de trabalho e de formação.

Até porque temos falta de pediatras, por exemplo.

E não só. Faltam-nos também anestesistas, intensivistas, obstetras, ortopedistas, internistas. 

Isso tudo porquê? Porque não formámos?

Não foram formados em quantidade, mas também porque não ocuparam as vagas disponíveis. A maior razão foi a deserção da maioria dos profissionais formados no SNS para a Medicina privada e para o estrangeiro.

Há uma certa ciumeira na classe médica entre os cirurgiões, porque nem todos ganham a mesma coisa com as operações adicionais que fazem.

Isso depende do GDH, o Grupo Diagnóstico Homogéneo, que dá a classificação exata da severidade do doente, tendo correspondência em termos de pagamento. Podemos concluir que é necessário refletir sobre os regulamentos existentes em parceria com as diferentes instituições. O mal estar que está instalado nos profissionais de saúde, nomeadamente pelos diferentes pagamentos, na prestação de trabalho em Serviço de Urgência, em cuidados especiais e nas áreas de transplantação, podem ser atenuados com uniformização dessas áreas, evitando deliberações em casos particulares.

É um médico político que está a falar. Deixe o médico político, e explique casos concretos. Um transplante de um rim tem um valor…

O grau de gravidade e a complexidade são diferentes.

Quem faz um transplante cardíaco recebe menos que alguns transplantes?

O importante é aumentar o número de dadores e órgãos disponíveis para transplante. Para isso é necessário a alteração da Lei, nomeadamente permitir colheita de órgãos sem morte cerebral.

Os médicos ganham para além do ordenado normal com cada transplante ou operação que fazem?

As remunerações correspondentes à transplantação são entregues à equipa que as executa.

O médico responsável é que distribui pela equipa?

De acordo com os médicos que trabalham nessas intervenções, faz-se a distribuição.

Uns podem ter 20.000 euros para distribuir e outros 2000?

A totalidade da quantia a distribuir a cada Unidade é posteriormente repartida por todos.

Há quem diga que em alguns hospitais privados se opera a metro. Isto é: muitas vezes há outras soluções, mas a cirurgia é mais lucrativa.

Em concreto, não conheço as atividades nos hospitais privados. Obviamente que depende dos contratos que os médicos tiverem nesse hospital. Quer nos hospitais privados, quer nos públicos, o código deontológico e o código de ética devem prevalecer. Independentemente dos contratos realizados por cada instituição, existe um código de nomenclatura da Ordem dos Médicos.

Defendeu o novo Hospital Central. Não acha que vai ser um caos concentrar tudo num único hospital? E pergunto se é ou não verdade que este modelo já foi afastado nalguns países?

É verdade que este modelo já foi afastado em alguns países. Se vai ser um caos? Mais importante que a construção do Hospital Central, neste momento, é gerir sete hospitais com uma distância de quilómetros entre alguns, não só do ponto de vista da gestão, como também é muito difícil do ponto de vista do apoio clínico. E há uma quantidade de recursos humanos que, de uma forma central, podiam ser melhor aproveitados do que estando de uma forma dispersa. A ser feito um hospital central tem que se tomar em linha de conta a lotação e quais as funções que um hospital central vai ter em funcionamento.

Vamos dar um exemplo concreto de um doente que está no Hospital dos Capuchos. Se for preciso tem de ir fazer um exame ao Hospital São José. No caso de haver o Hospital Central será tudo no mesmo sítio.

Desde que tenha uma gestão com uma estratégia bem definida, tem tudo para resultar numa satisfação maior, quer para os profissionais, quer para os doentes.

Qual é a avaliação que faz do ministro da Saúde? Acha que houve falta de coragem do Governo para ter nomeado Fernando Araújo?

O senhor ministro da Saúde, para além de ter uma formação médica, é um político de carreira. Todos nós sabemos o enraizamento e as características da sua atuação na região Norte. O professor Fernando Araújo é um médico que já desempenhou funções de secretário de Estado, mas é considerado um gestor nesta área. Acho que as razões que levaram este ministro a ser escolhido foram de ordem política, em detrimento de um ministro técnico. E a valorização que dou ao professor Fernando Araújo está na expectativa de que ele consiga, se lhe forem dados os meios, pôr em prática a reforma do sistema de saúde em Portugal. É importante e urgente lançar as bases de uma reforma estrutural do SNS. Se não forem dados os meios, não vai resultar. Apesar da complexidade na abordagem de uma reforma no sistema de saúde, penso que se pode fazer mais e melhor sem tantas promessas.