Foi quando acordamos para a democracia que as drogas entraram com força em Portugal. Em pouco tempo, aquilo que era um vício restrito a um pequeno círculo mais boémio da sociedade rapidamente se transformou no flagelo de uma geração e uma ameaça à saúde pública. Nas décadas que se seguiram, os governos democráticos tentaram enfrentar o problema com uma mão pesada: tolerância zero para traficantes e consumidores, severamente punidos se apanhados em flagrante. No entanto, a situação tendia em agravar-se. O consumo crescia ao mesmo ritmo que as doenças como o VIH se propagavam e que os estabelecimentos prisionais sobrelotavam.
Só na viragem do século é que se vislumbrou uma política eficaz para controlar o fenómeno com a descriminalização do consumo no final de 2001. Esta mudança na legislação alterou a forma como se olha para um consumidor de drogas, deixando de lado o preconceito que o comparava a um criminoso, convertendo-o num toxicodependente que necessita de ajuda e apoio especializado.
Desde então que esta política pública portuguesa tem sido apresentada como “exemplo a seguir”. Mas a verdade é que, desde 2009, tem vindo a verificar-se um aumento relevante das condenações por consumo nos últimos anos, como refere o último relatório do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). Só em 2021, registaram-se 1174 processos, na sua maioria (81%) por crimes de tráfico. Cerca de 90% resultaram em condenações e apenas 9% em absolvição.
Ainda assim, Portugal continua a ser um país onde o consumo de drogas não é tão disseminado como no resto da Europa. De acordo com o Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral, promovido pelo SICAD, em 2022, a prevalência ao longo da vida, para qualquer substância psicoativa ilícita (como canábis, ecstasy, anfetaminas, cocaína, heroína, LSD e cogumelos mágicos), situava-se abaixo da média registada pelo conjunto dos países europeus.
Contudo, entre 2001 e 2022, o consumo destas substâncias passou de 7,8% para 12,8%, um aumento de mais de 60%.
Canábis a droga mais comum Se até aos anos 90, a heroína e a cocaína eram as drogas de eleição, atualmente há substâncias mais procuradas pelos consumidores em Portugal. Segundo o estudo do SICAD, que fez uma comparação no plano internacional do consumo de canábis, cocaína, anfetaminas, ecstasy e LSD, tendo como referência os valores disponibilizados para 30 países europeus pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, a canábis, substância ilícita com maiores prevalências de consumo, apresenta um valor máximo de cerca de 11% (Chéquia e França) e média de 5,7% no conjunto dos países, estando Portugal, com uma prevalência de 2,8%, na 24.ª posição.
Quanto ao consumo de cocaína, que na Europa tem uma prevalência média de 0,4%, Portugal encontra-se em 26.º lugar, com uma prevalência de 0,2%, e no consumo de anfetaminas a prevalência é inferior a 0,1%, sendo a média para os 27 países europeus que apresentam informação para esta substância de 1,4%.
Relativamente ao ecstasy, para uma média de 0,9% entre os países que apresentam dados para este indicador, Portugal apresenta uma prevalência de consumo de 0,1%, a mais baixa de todas, a par com a Turquia.
O consumo de LSD apresenta um valor médio de 0,4% para o conjunto dos países que apresentam valores para este indicador, estando Portugal entre os países com menores prevalências (0,1%), a par da Bulgária, Chipre, Hungria, Itália, Lituânia e Luxemburgo.
A canábis é também a substância ilícita mais consumida na Europa, apesar de os consumos de opiáceos, em decréscimo desde o século passado, estarem igualmente a aumentar.
De acordo com o último Relatório Europeu sobre Drogas do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência (OEDT), cerca de 8% da populção adulta na Europa, o que corresponde a 22,6 milhões de europeus entre os 15 e os 64 anos, consumiram canábis no último ano.
Em 2021, as quantidades de resina de canábis (816 toneladas) e de canábis herbácea (256 toneladas) apreendidas na União Europeia atingiram o seu nível mais elevado numa década, “o que sugere uma elevada disponibilidade desta droga”, conclui o estudo do OEDT, apresentado no passado mês de junho, em Bruxelas.
Estima-se ainda que 97 mil consumidores na Europa se submeteram, em 2021, a algum tipo de tratamento da toxicodependência por problemas relacionados com o consumo de canábis.
a porta de entrada da cocaína na europa O relatório, que compila dados de 2021 e 2022, dá destaque também para apreensões recorde de cocaína. Em 2021, foi apreendida a quantidade recorde de 303 toneladas de cocaína pelos Estados-membros da UE, sendo que a Bélgica (96 toneladas), os Países Baixos (72 toneladas) e a Espanha (49 toneladas) foram responsáveis por quase 75 % da quantidade total.
Os dados preliminares relativos a 2022 revelam ainda que a quantidade de cocaína apreendida em Antuérpia, o segundo maior porto marítimo da Europa, aumentou de 91 toneladas em 2021 para 110 toneladas.
Os investigadores do OEDT sugerem, contudo, que os grupos de criminalidade organizada visam cada vez mais portos de menor dimensão de outros países da UE, como Portugal, e de países que fazem fronteira com a UE.
No Relatório Global sobre Cocaína 2023, divulgado em março pela Agência das Nações Unidas para as Drogas e o Crime, Portugal já era apontado como uma das portas de entrada da cocaína na Europa por via marítima.
A região do Algarve, além da Madeira e dos Açores, começa a surgir no mapa pelo tráfico de droga não escondida em carga legítima e onde a cocaína chega sobretudo através de barcos de recreio. Mas há também quantidades significativas de cocaína que são traficadas através dos portos principais, como o de Setúbal, onde chega escondida em mercadoria legal.
Na conferência de imprensa de apresentação do Relatório Europeu sobre Drogas do OEDT, a comissária europeia para a Administração Interna, Ylva Johansson, referiu que dos quase 100 milhões de contentores que entram nos portos europeus anualmente apenas 2% a 10% são inspecionados, acrescentando que a criminalidade ligada a grupos organizados, tem aumentado nas infraestruturas portuárias.
“O crime organizado é uma ameaça tão grande para a nossa sociedade como o terrorismo”, avisou, sublinhando que para derrotar localmente o crime, é preciso “combate-lo internacionalmente através da cooperação policial e trocas de informação” com países terceiros.
Por seu lado, o diretor do observatório europeu, Alexis Goosdeel, alertou que “continuam a surgir novas substâncias, com elevado teor de psicoativos”. A preocupação crescente com o consumo de estimulantes sintéticos é igualmente citada no relatório do OEDT.
A ameaça invisível das drogas sintéticas
O relatório especifica que “os problemas relacionados com os opiáceos na Europa estão a evoluir”, apesar de “a heroína continuar a ser o opiáceo ilícito mais consumido na Europa”, existe, no entanto, uma preocupação crescente com o consumo de opiáceos sintéticos em algumas regiões do velho continente, como no Báltico.
A maioria dos opiáceos sintéticos são extremamente potentes e representam um risco de intoxicação e de morte. São necessárias apenas pequenas quantidades para produzir milhares de doses, o que torna estas substâncias muito mais lucrativas para os grupos do crime organizado.
Além disso, quase toda a heroína consumida na Europa provém do Afeganistão, onde os talibã estão a impedir o cultivo da papoila do ópio, e, embora seja demasiado cedo para dizer de que forma o mercado europeu de heroína será afetado, há receios de que qualquer escassez na disponibilidade da droga possa ser associada a um aumento da oferta e da procura de opiáceos sintéticos, refere o relatório.
Em entrevista ao Público, Alexis Goosdeel também manifestou a sua apreensão sobre esta possibilidade: “A falta de heroína no mercado é uma oportunidade para o crime organizado investir nos opiáceos sintéticos, como o fentanil, que é 700% mais potente do que a morfina. E isso pode ser o início de outra pandemia. Não estou a dizer que isso vai acontecer, nem quero criar pânico, mas é possível que aconteça”, respondeu quando questionado sobre a eventualidade de a crise de opiáceos nos Estados Unidos ser extensível à UE.
O fentanil, uma droga sintética altamente viciante, já é a principal causa de morte entre os norte-americanos com menos de 50 anos. Em 2021, 106 mil pessoas morreram de overdoses e destas, mais de 70 mil foram vítimas do fentanil.
Na maioria dos casos, estas mortes resultam de overdoses acidentais que acontecem quando os consumidores, muitas vezes sem tolerância aos opiáceos, usam drogas que foram contaminadas com fentanil.
Fabricado por cartéis mexicanos a partir de precursores químicos da China e traficado para os Estados Unidos, o fentanil continua para já longe da Europa. Mas isso não quer dizer que não haja outras substâncias psicoativas em rápida ascensão.
No final de 2022, o OEDT monitorava cerca de 930 novas substâncias psicoativas, 41 das quais foram reportadas pela primeira vez na Europa em 2022. Embora apenas um novo opióide sintético tenha sido formalmente notificado em 2022, sinais recentes, principalmente de países bálticos, sugerem maior disponibilidade e mortes induzidas por drogas relacionadas a essas substâncias, particularmente ao derivado do fentanil o carfentanil.