Teresa Nogueira Pinto*
Donald Trump entregou-se, na passada terça-feira, no tribunal criminal de Manhattan. O ocorrido é inédito: nunca um ex-Presidente (ou candidato à presidência) americano tinha enfrentado uma queixa-crime. Depois de anos de investigações, um grande júri no Estado de Nova Iorque decidiu a favor da acusação, o que pressupõe ter provas suficientes para instaurar um processo criminal.
O caso remonta a 2006, quando o ex-Presidente teve um caso com a atriz de filmes pornográficos Stormy Daniels. Em 2016, quando Trump se tornava o alfa e ómega dos meios de comunicação social, Daniels tentou vender a história e, perante a ameaça, o advogado de Trump, Michael Cohen, pagou 130.000 dólares à atriz. Este tipo de suborno, que na América se designa de hush money e de acordo com a defesa de Trump foi feito com dinheiro pessoal, não constitui um crime.
Mas o ex-Presidente é acusado de ter usado dinheiro da campanha e de ter mentido sobre a natureza do pagamento, alegadamente descrito como despesas legais. Em conferência de imprensa, o procurador de justiça do distrito de Manhattan, Alvin Bragg, referiu que Trump terá tido a intenção de suprimir, através de subornos, informação que, caso fosse pública, poderia ter prejudicado a sua campanha eleitoral.
Politização da justiça
Segundo os resultados de uma sondagem da Universidade de Quinnipiac feita após a notícia da acusação, 62 por cento dos inquiridos consideraram que o caso era motivado sobretudo por questões políticas, entre os quais 93 por cento dos que se identificaram como republicanos e 29 por cento dos que se identificaram como democratas. Apenas 32 por cento dos inquiridos consideraram que o caso era determinado por questões legais.
O facto de nem o Departamento de Justiça nem a Comissão Federal de Eleições terem avançado para uma acusação reforça a perceção, sobretudo entre republicanos, de que a justiça está a ser politizada, num caso frágil do ponto de vista jurídico. Perceções que vão ao encontro da tese de Trump, que descreveu a acusação como um ato de «perseguição política e interferência eleitoral ao mais alto nível».
O ex-vice-Presidente Mike Pence classificou a decisão como um «ultraje» e Ron de Santis, provável adversário de Trump na competição pela nomeação republicana, denunciou o recurso ao sistema judicial para avançar uma agenda política, o que «subverte o Estado de direito», acusando o procurador Alvin Bragg de «esticar a lei para atingir um adversário político». Já Nancy Pelosi afirmou que o sistema garantia a Trump «o direito a um julgamento para provar a sua inocência». Comentário que lhe valeu duras críticas, uma vez que um dos princípios básicos do Estado de direito é a presunção de inocência, cabendo o ónus da prova ao acusador e não ao acusado.
A César o que é de César
A falsificação de registos de transações, a ser provada, é considerada um delito leve no estado de Nova Iorque, pelo que a proporção que o caso tem tomado parece ser mais de natureza moral (ou política) do que criminal.
Trump não é o primeiro (e não será o último) Presidente a ter comportamentos condenáveis. Em 1998, Bill Clinton viu-se imerso no escândalo Lewinsky. A notícia do seu envolvimento com a estagiária da Casa Branca veio na sequência de Paula Jones o ter acusado de assédio sexual, enquanto era governador do Arkansas. O processo não foi criminal, mas político: Clinton foi acusado de perjúrio e obstrução da justiça, acabando por sobreviver a um impeachment. E chegou a um acordo público com Jones, a quem pagou 850.000 dólares para retirar a queixa.
Semanas antes das eleições de 2020, o Facebook limitou a visibilidade e o Twitter censurou uma reportagem do New York Post sobre o computador pessoal do filho de Joe Biden, Hunter Biden, classificada como falsa. Mais tarde, em entrevista a Joe Rogan, Mark Zuckerberg admitiu que a decisão de limitar a visibilidade da notícia fora tomada com base num aviso do FBI, e tinha sido errada. A autenticidade do computador e de alguns emails foi posteriormente comprovada, criando a ideia, entre as bases republicanas, de que se tratou de uma tentativa de ocultar informação que prejudicaria a candidatura de Biden. Hillary Clinton e o Comité Nacional Democrata também foram multados pela Comissão Federal de Eleições por violarem a lei de financiamento eleitoral em 2016, ao classificarem as despesas feitas com a Fusion GPS para investigar possíveis ligações de Donald Trump a Moscovo como ‘serviços jurídicos’.
Na verdade, a novidade deste caso não é tanto o que revela sobre os erros da classe política, tantas vezes num limbo entre ilegalidade e imoralidade, mas o facto de confirmar que, em 2023, nenhuma instituição escapa às dinâmicas de hiperpolitização. Na América, as clivagens políticas já invadiram o sistema eleitoral, e ameaçam agora invadir o sistema judicial. É uma tentação presente nos dois lados do espetro político, que reforça a polarização, subverte as regras do jogo e, como na história de Pedro e o Lobo, pode abalar irreversivelmente a confiança nas instituições.
E agora?
O caso deverá arrastar-se ao longo dos próximos meses e é expectável que Trump não vá a julgamento antes de 2024. O processo correrá em paralelo com a disputa pela nomeação republicana, onde Trump é favorito. A acusação não impede Trump de prosseguir com a sua candidatura e, caso seja considerado culpado, é pouco provável, do que se sabe, que seja aplicável pena de prisão.
Este contexto de imprevisibilidade e hostilidade, a partir do qual pode personificar a oposição a um ‘pântano’ de elites corrompidas determinado a destruir o país («our country is going to hell», dizia o ex-Presidente nas suas declarações de terça-feira em Mar-a-Lago), é o terreno onde Trump melhor se move. E o caso traduz-se, por agora, numa vantagem política para o acusado. A perceção de uma acusação injusta e politicamente motivada dá energia às bases trumpistas, e é bem possível que expanda o apoio a Trump entre os eleitores republicanos (segundo as sondagens, 80 por cento acreditam que Trump está a ser vítima de uma ‘caça às bruxas’).
São más notícias para o seu principal (ainda não oficial) adversário, Ron de Santis, que oferecia uma forma nova, numa linha de continuidade ideológica. E para o partido Republicano, que poderá não ter alternativa a Trump, aumentando as hipóteses de perder a Casa Branca em 2024 para um Joe Biden visivelmente confuso e cansado.
* editado por José Cabrita Saraiva