O sol já perdeu a guita, mas em terras do Minho ainda racha as pedras. Ao final da tarde, operários juntam-se no café da Bela, no centro de Joane, para refrescar a goela, enquanto picam tiras de bucho ou de fígado de cebolada. O sino toca, anunciando uma morte. O cangalheiro entra e fixa num placard a foto de mais alguém que partiu. Manuel Couto, 62 anos, acompanha com olhar ziguezagueante o ritmo de quem entra e sai. A conversa corre em surdina, como num confessionário. Não é um homem amargurado ou ressentido, pelo contrário, soube contornar as adversidades mantendo o humor. Mas talvez apenas o tenha conseguido porque perdeu a fé.
Volta e meia, a memória trai a aparente tranquilidade. E um sentimento de impotência, que é o que mais o aflige, atira-o para um momento da sua infância – do qual, por mais que tente, não consegue fugir. As recordações daquele dia, quando apenas tinha 12 anos, rebentam-lhe em cima como uma nuvem bojuda a rebentar de água.
Na sacristia, o sacerdote, prendendo-lhe o corpo entre as pernas, explorava-lhe as intimidades e exigia a confissão de «pecados» que desconhecia. Hoje, ao lembrar o que se passou, os músculos do seu rosto parecem petrificar, acompanhando a reação que o momento desencadeou: «Fugi, senti um nojo tão grande que, quanto cheguei ao átrio, vomitei. Ainda sinto esse nojo. Sempre que o vejo sinto esse nojo».
E tudo fora por culpa sua. O que lhe dera para se ir confessar a Joane, que à época era ainda uma pequena aldeia no distrito de Vila Nova de Famalicão? Vivia a dois quilómetros, em Santa Maria, mas não gostava do padre da aldeia, que lhe dava uns carolos e o ameaçava por tudo e por nada de ir para o Inferno e de levar consigo toda a família. Se contasse em casa o que lhe acontecera em Joane, ainda apanhava: «Naquela altura, ninguém acreditava que um padre fizesse isto a uma criança. Ia contar a quem?».
‘Queria saber tudo sobre o meu corpo’
Estava-se no primeiro ano da década de 70, a ‘Primavera marcelista’ afinal não trouxera novidades, muito menos no Minho, onde a Igreja, aconchegada pelo Regime, perseguia as suas alas progressistas e impunha regras e costumes, ameaçando os tresmalhados com a fuça do Diabo. E a miséria dos seus fiéis era certa. Os homens bebiam muito para esquecer; e as mulheres, pelas mesmas razões, falavam em demasia.
A mãe de Manuel – uma entre tantas tecedeiras da zona, que acreditava que um futuro melhor apenas se encontrava no Além – fazia, a bem ou a mal, com que o pequeno cumprisse as suas obrigações religiosas.
O rapazito começara a trabalhar aos 9 anos na casa de lavradores ricos da região. Pela sega, tocava os animais para que o amanho da terra fosse feito sem empecilhos. Em troca, se os donos tivessem vontade e ele merecesse, recebia uma rasa de milho. Três anos depois, já andava nas minas a partir e carregar brita por seis escudos à jorna.
O corpo andava maçado e sempre que podia furtava-se aos deveres cristãos, que eram muitos. A missa ao domingo, a de Natal, a Pascal, as procissões, os terços, as preces: «E a missa pela alma da avó, da tia Lina, da tia Laura. De manhã, mal entrávamos na escola, rezávamos em frente ao Cristo, ao retrato de Salazar e ao de Américo Thomaz e, quando se saía, rezava-se outra vez. Em casa, antes de irmos para a cama, rezava-se o terço. Não se fazia outra coisa. Se não cumpríssemos, sabia-se logo. As beatas encarregavam-se de avisar a família e o padre – e lá era eu excomungado. Fui excomungado umas 30 e tal vezes!».
E foi para escapar a esta vigilância apertada que decidiu, dando disso conta à família, cumprir as suas obrigações religiosas na igreja de Joane, onde há décadas – mas sempre pela calada – se falava dos vícios inconfessáveis do cónego Fernando.
Com mais dois irmãos, este tinha feito da casa paroquial uma quinta da família. Os três vinham da família Piairo, gente pobre dos arredores de Guimarães. O pai, tamanqueiro, e a mãe, tecedeira, não tinham visto melhor caminho para os filhos do que o seminário, e eles souberam aproveitar. Mais tarde, para se afastarem das origens humildes, trocariam o apelido dos pais por outro mais pomposo, passando a apresentar-se como os Sousa e Silva, segundo reza o Diário da República da época.
O mais velho dos irmãos, António Manuel, nascido em 1926, formara-se em Direito, montara escritório em Braga e sobre ele recaíam as mesmas suspeitas; Fernando, com três anos de diferença, doutorara-se em Navarra em Direito Canónico, trepando na carreira eclesiástica da Cúria Arquidiocesana de Braga e chegando a vigário judicial do Tribunal Eclesiástico; o mais novo, Manuel, fixou-se como pároco de Joane. Era na casa deste último que todos pernoitavam.
Aos domingos, o cónego Fernando, que por essa altura era diretor espiritual no seminário de Santiago, voluntariava-se para administrar a confissão às crianças mais novas. Foi assim que se cruzou com o pequeno Manuel.
Manuel entrara na sacristia. Era muito franzino. O sacerdote estava sentado. Puxou-o para o meio das suas pernas. Colou a cabeça à dele. Transpirava. Por razões diferentes, transpiravam os dois. O abuso não era apenas físico: «Queria saber tudo sobre o meu corpo, se me masturbava, se brincava com as meninas no monte e se me deitava com elas. Eu dizia que não, mas ele tanto insistia que eu acabava por confessar coisas que nunca tinha feito. Às raparigas fazia o mesmo. Tentava sempre saber o que elas faziam com os rapazes. Foi assim durante décadas!».
O olhar do sacerdote devassava-o
Custódio Silva, 53 anos, formado em Contabilidade e Gestão, entra no café pontualmente e junta-se ao grupo. Nova rodada de bucho, enchem-se os copos. Apesar da diferença de idades, entre ele e Manuel não há segredos. Une-os uma amizade acima das diferenças abissais das vidas que levaram. O primeiro vem de uma família da classe média, licenciou-se; o segundo criou-se entre operários e seguiu-lhes as pisadas.
A meio da década de 70, o 25 de Abril trazia a liberdade. Apesar das diferenças de opinião, disso poucos duvidavam. Entre os resistentes às mudanças, as gentes do Minho – incendiadas pelo célebre cónego Melo, ligado ao MDLP, um grupo bombista de extrema-direita – pintavam a manta. Por vezes, de sangue. Manuel tinha outras ideias. Formara uma associação que agregava jovens de ar sério e conspirativo. Na primeira celebração do aniversário da Revolução, o padre cortou-lhes as vazas: «Alugaram cinco camionetas e convocaram todas as famílias e os filhos para irem numa romaria à Nossa Senhora da Peneda. Nós sentíamos que nos davam uma grande importância com essa excursão…!».
A gargalhada triunfante enche o café. Entre uma e outra história, os olhares dos dois amigos cruzam-se reflexivos. Em Joane nada mudava. O cónego Fernando mantinha-se por ali. As crianças, como o mercúrio, fugiam dele, mas as famílias atiravam-nas de novo para o redil.
Custódio fez a primeira comunhão aos seis anos, já tocara Abril. Tinha o olho azul, caracóis louros e uma enorme inocência. Mas há coisas que não se evaporam da sua memória, como o olhar do sacerdote que lhe inspecionava o corpo com toda a desfaçatez, antes mesmo de ele se aproximar do confessionário.
A ‘cadeira penitencial’, à semelhança de uma guarita, tinha uma portinhola na porta frontal, por onde entrava o confessor, e janelas laterais rendilhadas, através das quais os crentes se abriam com o ministro de Deus. O cónego Fernando não obedecia ao preceito.
Custódio vivia a sua grande primeira experiência espiritual, tremiam-lhe as pernas e a voz. O sacerdote abriu então a portinhola e exigiu que entrasse e se ajoelhasse entre as suas pernas. As mãos movediças percorriam o corpo do menino: «Com o tempo, fui-me apercebendo que aquilo não era normal e dava-lhe palmadas nas mãos sempre que avançava. Não deixava que me tocasse».
Corria o tempo e ninguém travava a febre doentia do sacerdote. Anos 80 do século passado. As classes protegem-se. Duarte Castro, 45 anos, tinha a defendê-lo o nome de peso da família. Desde muito pequeno que sentiu a vocação. Queria seguir o exemplo de um tio, um carmelita. O cónego Fernando, tal como os seus irmãos, era visita de casa e foi a ele que o miúdo se confessou pela primeira vez. «Não tenho dúvidas que não me fez como aos outros por eu ser filho de quem era. Nunca me tocou, mas as conversas eram idênticas», afirma.
Aos 14 anos, sem pressentir que o lodo tem lastros e que a sua religiosidade em poucos dias seria abalada, Duarte entrava no seminário menor de Braga, onde o cónego Fernando lecionava Educação Moral e Cívica, e lá pernoitava durante a semana.
Quando acordavam e até regressarem ao dormitório os garotos, como se as tentações os assediassem a toda a hora, andavam sempre em ‘fila pirilau’ para evitar conversas a dois. Só em grupo. Mas poucas. Quando chegava a noite, o terror dominava-o: «As camas no dormitório eram praticamente pegadas. Havia gente que ia buscar os miúdos e os levava não sei para onde. Tenho o sono leve e dava por isso. Estava escuro, não se viam os rostos.»
Assaltado por temores, por uma sensação iminente de catástrofe, Duarte mal conseguia pregar olho. Não se atrevia a mexer-se. Prendia a respiração para que ninguém desse por ele: «Só recebíamos visitas dos familiares de 15 em 15 dias. Saí logo na primeira vez que os meus pais me foram ver. Nunca lhes expliquei a verdadeira razão. Disse apenas que percebera que não tinha vocação».
As ‘culpas’ de D. Jorge Ortiga
Vinte e nove de agosto. O ramerame no café ao final da tarde mantém-se. A algazarra de mais um dia de trabalho sobrepõe-se ao som do televisor. Crise, incêndios, guerra. Na abertura do Simpósio do Clero, em Fátima, D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, assume que a existência de abusos sexuais na Igreja causa «vergonha» e que não pode haver mais «tolerância nem encobrimento». Custódio e Manuel, depois de cotejarem as recordações compartilhadas, comentam a notícia com indiferença. As explicações devem corresponder a ações. «Houve denúncias sobre o cónego Fernando, mas ele ainda aqui anda, celebra e confessa», dizem.
No entanto, a Igreja não ignorava o comportamento desse clérigo. As denúncias que chegavam a D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga entre 1999 e 2021, caíam como um castelo de areia. Custódio Fernandes, formado em Direito, foi um dos cidadãos de Joane que serviu de mensageiro das vítimas.
No seu escritório, Custódio folheia uma gorda pasta de correspondência trocada com o bispo. Destaca uma. Da sua leitura verifica-se que, desde pelo menos 2003, informava o clérigo D. Jorge Ortiga dos abusos de menores praticados pelo cónego Fernando. O bispo, aparentemente, mostrara a sua abertura para o assunto, mas, por carta, adiantara: «Necessitamos de elementos verdadeiramente objetivos»
E Custódio tratou de os arranjar. A 8 de maio de 2010, enviou para a arquidiocese de Braga uma missiva onde anexou uma carta de uma das vítimas. Esta pedira-lhe que fizesse chegar a D. Jorge o seu apelo para afastar o sacerdote em causa. O relato, desta vez de uma rapariga, era quase uma cópia dos das outras vítimas, mas chegava com um pedido que era mais um prenúncio: «Espero piamente que o Sr. Bispo possa tomar alguma atitude em relação a este referido senhor… Pois, se não o fizer, a nossa igreja vai continuar em decadência e com falta de jovens, pois o Sr. Padre Fernando insiste em afastar-nos do bem e da própria igreja».
Para que não houvesse dúvidas quanto à dimensão dos abusos, Custódio, pelo seu próprio punho, acrescentou que falara com mais vítimas que estavam dispostas a narrar o que lhes acontecera, mas com a mesma condição: que o outro fosse afastado da paróquia. E autor da epístola avançava a razão: «Porque não querem depois ser vítimas da sua loucura desmedida… Ora, todos nós sabemos que é uma pessoa sem escrúpulos, mentiroso e maquiavélico na sua forma de agir».
Mas havia coisas que o antigo arcebispo de Braga entendia que precisavam de se manter trancadas e nada fez. E não foi caso único. Também Olga (nome fictício), em 2019, lhe denunciou um caso que envolvia os seus filhos menores e um sacerdote da zona. D. Jorge Ortiga, já depois das arrumações que nesta matéria o Papa Francisco impusera à Igreja, mantinha-se afeto à tradição do silêncio. Só três anos depois, após ter sido substituído por D. José Cordeiro, é que a denúncia foi parar às autoridades judiciais. E Olga acrescenta: «D. Jorge Ortiga pediu-me que dissesse, no caso de alguém me questionar, que sempre tinha tido o seu apoio. Claro que não o vou fazer!».
Questionado pelo Nascer do Sol, D. Jorge remeteu as explicações sobre o cónego Fernando para o seu sucessor: «Alguma coisa deve de ter havido, penso que foi na altura da minha mudança e está tudo devidamente documentado. Quem lhe poderá falar sobre esse caso é D. José Cordeiro.»
Ainda mais esquivo é o cónego Fernando que, ao atender o telefone à jornalista do Nascer do Sol, corta a conversa e desliga. Por mais que caminhemos, o nosso inferno pessoal segue-nos o passo.
No café da Bela, parece que os dias não correm. O cangalheiro não tem aparecido. Já não é mau! As manhãs submersas, a neblina rentinha ao chão, são o prenúncio do melancólico outono.