Operação Marquês. Tribunal da Relação de Lisboa dá razão a Felícia Cabrita e constitui a jornalista assistente

Operação Marquês. Tribunal da Relação de Lisboa dá razão a Felícia Cabrita e constitui a jornalista assistente


Ricardo Cardoso arrasa novamente Ivo Rosa. No despacho divulgado esta terça-feira pelo Tribunal da Relação de Lisboa, são defendidos a liberdade de imprensa e o acesso livre à informação.


Os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), Ricardo Cardoso e Artur Conceição, constituíram a jornalista Felícia Cabrita, novamente, como assistente no Processo Operação Marquês. Contrariando a posição de Ivo Rosa que, citando excertos da edição de janeiro-março da Revista de Concorrência e Regulação, defendera que “ao permitir o ingresso do jornalista no processo como assistente, não se pode retirar dele o exercício de suas funções laborais, presumindo-se, então, que utilizará as informações ali colhidas para divulgá-las, como é imanente à sua atividade”, os magistrados apreciaram que Felícia Cabrita fora admitida como assistente, ao abrigo da alínea e) do n.o 1 do artigo 68º do CPP, segundo a qual “podem constituir-se assistentes no processo penal (…) qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção."

De acordo com o Processo de Inquérito no 122/13.8TELSB, do tribunal anteriormente mencionado, e por despacho datado de 21 de Novembro de 2019, foi decidido que “face a todo o exposto, por falta de interesse em agir e verdadeiro abuso de direito na posição processual e atribuições de assistente, retira-se a Felícia Cabrita, Luis Miguel Albano dos Santos Rosa e António Azenha a qualidade de assistente nos presentes autos”. No despacho desta terça-feira, constata-se que Ricardo Cardoso não vai ao encontro da opinião de Ivo Rosa que havia imputado aos jornalistas anteriormente mencionados, “de forma global e não individualizada e concreta, a falta de interesse em agir e o abuso de direito” algo que, para Ricardo Cardoso, “parece ter como substrato, aliás, o entendimento de que o recorrente, por ser jornalista, não poderia constituir-se assistente no processo”, acrescentando que “a liberdade de imprensa constitui também uma garantia de scrutinium (escrutinio) das instituições democráticas e dos seus servidores”.

Em outubro do ano passado, a jornalista, que conta com mais de 30 anos de carreira, interpôs recurso apresentando justificações para tal. Em primeiro lugar, a profissional explicitou que, caso o recurso não subisse “em separado, imediatamente e com efeito meramente devolutivo, porque a sua retenção o tornaria absolutamente inútil”, decorreria a violação dos artigos 20º – em que estão consagrados o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, à informação e consulta jurídicos para todos os cidadãos assim como a adequada proteção do segredo de justiça – e 32º – integra as garantias de processo criminal como a defesa (como o recurso) e a noção de que “o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os atos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória” – da Constituição da República Portuguesa [CRP].

Por outro lado, a jornalista esclareceu que “o despacho recorrido (…) retirou o estatuto de assistente à Recorrente, sem lhe atribuir a prática de um facto concreto que violasse as regras de conduta previstas no CPP [Código de Processo Penal], que pudesse ser considerado com abuso de direito”. A jornalista refere ainda que “o despacho recorrido não cumpriu o princípio do contraditório, a que estava obrigado” sendo que este princípio “impõe que seja dada oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afete”. Finalmente, na qualidade de recorrente, evocou que “jamais e em circunstância alguma, na fase de instrução, revelou informação, escreveu qualquer notícia ou praticou qualquer ato, do qual se pudesse concluir que tivesse abusado do direito de assistente” e concluiu com a ideia de que o despacho acabou por levar a que “o exercício dos seus direitos” lhe fosse vedado.

No mês seguinte, já o semanário SOL noticiava que Ivo Rosa considerava “que intervenção de jornalistas se limitou à recolha de informação. Decisão surge depois de a Relação de Lisboa ter dado um cartão vermelho ao juiz e considerado que assistentes tinham direito a estar presentes” e, efetivamente, Ivo Rosa reiterara que “existe inclusive uma deliberação da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista [CCPJ], proferida em 3 de novembro de 2015, em que esta comissão considerou "incompatível" o exercício da profissão de jornalista com a ‘constituição como assistente em processos penais sobre os quais [se] desenvolva trabalho’”. De facto, em conformidade com a informação disponível no site oficial da CCPJ, é possível ler que as temáticas jornalísticas exploradas que se prendam com processos em que os jornalistas tenham a função de assistentes acabam por comprometer “a independência, integridade profissional e dever de imparcialidade” dos mesmos. Em concordância com a CCPJ, no despacho recorrido do TRL, pode constatar-se que “(…) não resta qualquer dúvida que a intervenção/atuação dos assistentes/jornalistas nos presentes autos limitou-se à recolha de informação contida no processo” sendo Felícia Cabrita, na opinião do juiz, uma das jornalistas acusada de ter subvertido a sua figura e posição processuais que lhe haviam sido atribuídas.

Em fevereiro deste ano, em entrevista ao semanário SOL, Felícia Cabrita afirmou: “Eles falam muito de mim nas escutas telefónicas, que não são nada abonatórias, mas há uma coisa que eu quero muito ser: o ‘programa’ que não vão conseguir cortar da vida deles” referindo-se, inclusivamente, ao então Procurador-Geral da República Fernando José de Matos Pinto Monteiro. Mas importa realçar igualmente que o magistrado Ricardo Cardoso contraria, mais uma vez, o juiz Ivo Rosa: em fevereiro de 2019, Cardoso acusou o juiz de quebrar a “legalidade democrática” após ter violado “flagrantemente o limite das competências do juiz de instrução” tal como a “autonomia do Ministério Público” durante a fase de inquérito do processo. Depois desta forte censura ao magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal, Ricardo Cardoso não esqueceu a referência à citação “Quando a imprensa não fala, o povo é que não fala. Não se cala a imprensa. Cala-se o povo”, do poeta inglês William Blake, no despacho em questão, para defender a relevância da preservação da liberdade de imprensa e do acesso livre à informação.

Recorde-se que no centro da investigação da Operação Marquês estão os mais de 23 milhões de euros arrecadados por Carlos Santos Silva, amigo de infância de José Sócrates, na Suíça, sendo que o mesmo transferiu para Portugal – no ano de 2004 e no período compreendido entre 2010 e 2011 – uma parcela do dinheiro que foi declarado, a nível fiscal, por Santos Silva, no âmbito dos Regimes Excecionais de Regularização Tributária I e II.

É importante destacar que, em nome de Sócrates, não foi detetada a receção direta de quantias com origem ilícita. Não obstante, o Ministério Público acredita que as contas criadas por Santos Silva em nomes de offshores são fruto da corrupção do amigo de infância por variados motivos, como o facto do antigo primeiro-ministro pagar férias, despesas correntes, uma casa em Paris e até fazer empréstimos aos amigos com extrema facilidade. Negando ser proprietário dos mais de 23 milhões de euros, o antigo secretário de estado-adjunto do Ministério do Ambiente e Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território, no governo de António Guterres, esclareceu que recebera empréstimos de Santos Silva embora nunca tenha conseguido revelar o valor exato dos mesmos.

Tudo começou em 21 de novembro de 2014, quando José Sócrates foi detido por agentes da Autoridade Tributária e Aduaneira à chegada ao Aeroporto da Portela, quando regressava de Paris. Volvidos três anos, em março de 2017, o processo contava com 28 arguidos, 19 pessoas singulares e 9 coletivas. No rol de arguidos, constam nomes como o de José Sócrates – esteve nove meses em prisão preventiva e é acusado dos crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e falsificação de documento – João Perna – motorista do antigo primeiro-ministro, que executava a função de “ponte” entre Carlos Santos Silva e o então governante, transportando envelopes com dinheiro e recebendo igualmente quantias nas suas contas bancárias. Foi acusado dos crimes de branqueamento de capitais e detenção de arma proibida – e Gonçalo Trindade Ferreira – advogado que trabalhava com Carlos Santos Silva e foi acusado dos crimes de branqueamento de capitais e falsificação de documentos.