‘O artista tem de destruir e deixar só o essencial’

‘O artista tem de destruir e deixar só o essencial’


A propósito de uma exposição em Lisboa, o artista catalão Antoni Muntadas falou-nos sobre pesquisa, criação, seleção e destruição. E conta o que viu no meio artístico nova-iorquino na década de 70.


A imagem que passa na tela mostra um político de Marselha da década de 90. Não sabemos quem é (não lhe vemos a cara), não sabemos o que diz – mas os gestos falam por si. «Nós, os latinos, usamos muito as mãos para falar», explica o autor do vídeo, Antoni Muntadas. «Estava a fazer um projeto em Marselha. Quando apareceu este político percebi que gesticulava muito e então decidi mudar a câmara para lhe filmar só as mãos. Temos aqui sete minutos de repertório gestual, desde o gesto erótico ao gesto de negociação». Ao ralenti, a voz do político transforma-se numa espécie de rugido.

Em frente, encontra-se uma série de serigrafias que também não revelam o rosto dos retratados, apenas a boca e um microfone, que surge como símbolo de poder e de amplificação da mensagem. «Estes trabalhos questionam a ideia da representação do retrato», continua o artista. «Não sabemos quem são, eu próprio sei apenas que são políticos e cantores que recortei de jornais».

Estamos na exposição Espectáculo/ Poder/ Mass Media, que tem curadoria de Carolina Grau e se mantém até 7 de abril na galeria Cristina Guerra. Além destas metáforas do poder, há uma reflexão sobre o futebol como espetáculo, em trabalhos sobre «os arruaceiros» e a agressividade ou sobre o momento de celebração do golo.

Apesar do seu olhar crítico, o autor diz que aprecia o desporto-rei. «Ainda esta semana estive a ver o Paris Saint-Germain contra o Real Madrid. Vejo o jogo um pouco como um bailado. Julgo que o espetáculo por si não é negativo, o que se passa é que grande parte está manipulada».

Antoni Muntadas nasceu em Barcelona em 1942. Estudou Engenharia e ainda experimentou a pintura. Em 1971 mudou-se para os Estados Unidos. Durante perto de quatro décadas deu aulas no Massachussetts Institute of Tecnology (MIT). Como artista tem exposto em todo o mundo, do Canadá ao Japão. Conversamos numa sala dos bastidores da galeria. «Nas galerias é nestas salas dos fundos que se fazem os negócios», comenta o artista com ironia. Bem a propósito, na parede à nossa frente encontra-se um quadro seu com uma pergunta: «How much?».
 

O seu trabalho debruça-se muito sobre o poder e os seus símbolos. Existe um longo historial de intimidade entre a arte e o poder. Hoje continua a ser assim?
 

Claro. Em 1982 apresentei um trabalho sobre o sistema da arte que se chamava Between the Frames [Entre as Molduras]. Entrevistei 150 pessoas – críticos, jornalistas, técnicos de museus, colecionadores, etc. – que estão entre a arte e o artista e o público. Uma coisa são os produtores da arte – os artistas e as pessoas que trabalham no meio – e outra coisa são aqueles que estão à volta do sistema, que tem mais a ver com o poder e a economia. Não nego que o museu tem uma função, que a galeria tem uma função, que o colecionador tem uma função. Aquilo que contesto é quando tomam uma posição excessiva de decisão. E vemos que hoje, nos Estados Unidos, há dez galerias que decidem e dominam.

E você hoje não faz parte desse sistema?

Claro, por isso há uma parte paradoxal ou contraditória. De qualquer modo, faço parte mas mantenho-me um outsider. Tento olhar sempre de fora. Há muitas coisas a que digo que não – apesar de tudo cabe-me sempre a última palavra.

Estudou engenharia, não é verdade?

Sim, isso foi nos anos 60. Estudava Engenharia e pintava. Vejo tudo isso como um período de formação. Só nos anos 70 comecei a mostrar o que fazia.

Mudou-se para Nova Iorque em 1971. Porque saiu de Espanha? Por motivos políticos?

Digo sempre os três P: privado, político, profissional. Na minha geração, aos fins-de-semana íamos comprar livros a Perpignan ou ver exposições a Montpellier. Estávamos numa situação muito limitada para desenvolver o trabalho. Franco morreu em 75, começava a vislumbrar-se alguma coisa mas não se sabia o que ia acontecer. Em Espanha a normalização na arte só começa no final dos anos 70, anos 80. Hoje há museus por todo o lado, às vezes em excesso, porque se acha que cada cidade tem de ter um aeroporto e um museu, e tudo tinha de ser em grande. Penso que é importante termos pequenas instituições, em geral, e grandes só quando o justifique. Mas há questões de dinheiro e de representação do poder envolvidas. Nos Estados Unidos todos os políticos constroem bibliotecas. Aqui, o museu é muitas vezes o ponto final de um mandato.

Porque foi para Nova Iorque e não para Paris ou Londres?

Tinha possibilidade de ter uma bolsa durante um ano e Nova Iorque estava a viver um momento muito bom. Havia coisas a crescer, os artistas formavam uma comunidade interessante, não competitiva, como é agora, porque há dinheiro, e quando há dinheiro as coisas mudam.

Naquela altura não havia dinheiro?

Não, os artistas procuravam espaços alternativos, havia muito intercâmbio, tudo isso foi um estímulo.

Os artistas conheciam-se todos?

Sim, toda a gente se conhecia. Conheci o [Vito] Acconci – o funeral do Acconci foi agora no MoMA… terrível –, o Hélio Oiticica, o Gordon Matta-Clark, que na altura era tudo gente anónima. O primeiro a despontar um pouco foi talvez o Bruce Nauman, e havia a galeria do Leo Castelli, claro, mas não tínhamos acesso a ela. Só pouco a pouco as galerias começaram a absorver esses artistas. Agora os jovens artistas entram diretamente no museu. Já não lhes interessam os espaços alternativos.

Disse que não havia dinheiro. Era difícil vender os trabalhos?

Não se vendia. Muitas vezes fazíamos coisas num espaço alternativo e deixávamos lá. Anos mais tarde percebíamos que alguém tinha ido lá buscar as coisas porque elas apareciam num museu.

Se não vendiam, como pagavam a renda e a alimentação?

Tínhamos outros trabalhos. Eu fiz de guia no Metropolitan. Com o tempo comecei a dar aulas e pareceu-me interessante o diálogo entre a pedagogia e o meu trabalho. Tive a sorte de entrar numa universidade grande, o MIT, de início como research fellow. Em 84 Reagan fechou a torneira do dinheiro para as universidades e disseram-me: ‘Tens de contribuir dando aulas’. Pareceu-me interessante e continuei lá. Estive no MIT desde 77 até 2015.

E quando está no MIT todas as portas se abrem, não?

Não. A uma galeria ou a um museu pode não dizer muito que estejas no MIT ou em Harvard. O mundo da docência e o mundo do sistema da arte são muito diferentes. Não há canais comunicativos. O que se passa é que, como artista, me interessava fazer research [pesquisa], e ali podia fazer. 

Aliás todo o seu trabalho tem muito de research…

Para cada trabalho abro sempre ficheiros, arquivos, mas arquivos que têm de ser ativados. Quando fiz o projeto Between the Frames, que era composto por 150 entrevistas, abri um arquivo com 150 horas e reduzi tudo a quatro horas e três minutos. Todo o meu trabalho tem que ver com a edição. O editing faz o trabalho. E todos os artistas o fazem. O Jackson Pollock espalhava 40 trabalhos pelo chão e escolhia. O editing não é só edição de vídeo ou de áudio. São decisões.

O arquivo é a matéria-prima a partir da qual faz os trabalhos?

Exato. Esse arquivo é feito de textos, imagens recolhidas em revistas ou na internet.

E tem um arquivo físico?

Há um arquivo físico, mas são sobretudo ficheiros. A qualquer momento um artista pode morrer e hoje em dia os estates [legados] dos artistas são muito valiosos… Estou sempre a dizer que é preciso destruir muito. Se não, vem um filho ou uma viúva – não tenho filho nem viúva, mas pode vir qualquer outro – e, como estamos a viver uma síndrome da ‘scanerização’, tudo se digitaliza e tudo se guarda. E há coisas que eu não quero guardar. Por isso digo muitas vezes que o artista tem de destruir e deixar só o essencial.

Fala muito em ‘projetos’, em ‘constelações’, em ‘pesquisas’. Não lhe interessa a obra como objeto?

No meu trabalho tudo está ligado em séries ou em sistemas, há sempre uma estrutura por trás que cria uma certa construção. Dificilmente lhe chamo obra: chamo-lhes ‘construções pessoais’ ou ‘artefactos’. Antes dos anos 70 chamava-lhes ‘experiências’ ou ‘atividades’. Detesto a palavra peças. Peça faz-me pensar num fragmento.

Mas nos Estados Unidos é uma expressão muito usada…

O vocabulário nos Estados Unidos e na Europa é diferente. Embora eu viva nos EUA há muito tempo ainda mantenho certos valores europeus.

Conserva traços de identidade espanhola ou catalã?

Sim. O que se passa é que acredito muito no contexto e os trabalhos refletem onde são feitos. Quando alguém me pergunta ‘Os teus trabalhos são americanos ou catalães?’ eu respondo ‘São de onde são feitos’. É a ideia do filme: se é produzido no Brasil, pago pelo Brasil, então é brasileiro.

O que o estimula a criar?

Começo sempre pela curiosidade, o desejo de saber mais. Acredito que através de um projeto podemos chegar a um certo conhecimento das coisas.

Sempre a pesquisa…

Sim, e quando falo com os meus alunos digo: primeiro a biblioteca e depois a internet. Não o contrário. Mas é difícil convencê-los.

Nos seus trabalhos coloca-se sempre de fora a observar.

Quando eu dizia que sou um outsider é isso. Pode ser distância em relação ao sistema da arte ou distância face às galerias.

Isso implica um certo ceticismo. Tem um olhar sempre crítico?

Questiono as coisas. Em 78 escrevi um texto que se chamava ‘Subjetividade Crítica’, porque nos anos anteriores, em que trabalhava sobre a televisão, procurava uma objetividade, mas dei-me conta de que na televisão a objetividade não existe. E pouco a pouco percebi que não é só na televisão. A objetividade não existe em nada. Mas podes ter um olhar subjetivo desde que mantenhas uma aproximação crítica em relação às coisas.

É pessimista?

Não. Sou realista, creio.

E não se torna um pouco cínico?

Irónico. A ironia está em todo o meu trabalho, isso é certo, mas não vale a pena eu dizê-lo. Se os outros não repararem… Politicamente a ironia é muito importante. Aprendi isso na época de Franco. Os cartoons e os desenhos diziam mais coisas que qualquer discurso político ou qualquer comentário.