Uma das formas mais diretas de chegar ao tom de uma reportagem é ler livros, muitos livros. Muitas vezes está na pena dos escritores e poetas locais a compreensão daquilo que observamos, outras vezes está nos ensaios que lemos. Fiz, há muito tempo, duas grandes reportagens para a SIC sobre os GAL (Grupos Antiterroristas de Libertação, um esquadrão da morte pago pelo governo espanhol) e a ETA (Euskadi Ta Askatasuna, País Basco e Liberdade, organização armada basca que foi criada nos anos 60 a partir de setores nacionalistas católicos que se radicalizaram na luta contra o franquismo). Para isso, li dezenas de livros de investigação, incontáveis páginas de processos, vários historiadores e politólogos, mas o que para mim resumia o que pensava sobre o que via durante as «filmagens» estava condensado nos romances de Bernardo Atxaga e nas páginas do poeta Joseba Sarrionandia.
O autor do Não Sou Daqui tem, além de todo o picante de ter fugido de uma cadeia espanhola nas colunas de uma aparelhagem de um músico (aventura imortalizada na canção basca Sarri, Sarri), estes versos que capturam como nada o conflito basco: «El viajero se aventura a través del labirinto aunque apenas sí recuerda cuándo ni por dónde entró. Supone que el camino ha de ser un laberinto pues advino en lo nuevo reflejos del ayer. Mas no son reflejos amables, son vástagos del miedo pues le revelan que cae, que se derrumba hacia el centro. Pero hay un centro acaso? No cae hacia los bordes?»
Um ano depois entrei nas zonas dominadas pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional, passando pela bela cidade colonial, do estado mexicano de Chiapas, San Cristóbal de las Casas. Aí, no meio do entrançado de prédios antigos e senhoriais, encontrei uma pequena livraria dirigida por uma avozinha norte-americana. Comprei um romance intitulado Ocosingo, que narrava os combates tidos um ano antes, quando os zapatistas ocuparam várias localidades e um livro muito bem feito sobre a história dos zapatistas: La Rebelión de Las Cañadas. Nesta última obra relata-se a evolução de uma geração de ativistas estudantis, formados pela agitação que levou ao massacre de centenas de estudantes pelo exército em 1968. Esses militantes fizeram uma imersão de décadas em comunidades rurais e indígenas em vários estados mexicanos. Em Chiapas, esse processo foi acelerado com ajuda dos bispos e padres afetos à teologia da libertação e temperado pelas formas políticas de organização dos indígenas. Os zapatistas misturavam um movimento de tipo novo: o marxismo-leninismo com a democracia por consenso dos nativos e as tradições de ligação à terra das tribos locais com a utilização da internet.
Uma entrada numa livraria é como penetrar numa zona mágica que nos dá mapas e pontos de vista diversos sobre vários universos em exploração. Foi ao perder-me na bela livraria Laie, no número 85 da carrer Pau Claris, que tropecei no El Processo Separatista da Cataluña. Nesse dia, levei também Plvs vltra, una Crónica Gràfica de L’espanyolisme a Catalunya, do fotógrafo e jornalista Jordi Borràs. Ambos livros que permitem ler a Catalunha, para além da aparência, permitindo-nos entender muito do que está a decorrer. Percebemos como o independentismo catalão adormecido acorda sobretudo pela crise económica; como se reorganiza o espanholismo em torno da criação dos Ciudadanos, cujo o grande tema é o seu anti-catalanismo e vai ficando mais forte, à medida que o independentismo vai crescendo; as camadas etárias e as classes sociais que se vão envolvendo no processo nacionalista catalão; como, de alguma maneira, a questão da necessidade da autodeterminação está ligada a um esgotamento do modelo constitucional de 1978 e à substituição da luta entre esquerda e a direita pela luta contra o PP; e como a guinada para o nacionalismo catalão, em reação ao espanholismo do PP, pode ser também uma estratégia de manutenção no poder de algumas elites catalães desacreditadas que vinham da Convergência e União. Como dizia o filósofo Nassim Taleb, citado nas conclusões do livro sobre el Proceso: «prever o futuro através de um livro de História é como conduzir um carro usando o retrovisor». Não nos diz tudo, mas ajuda muito.