Provérbios. Não vivemos sem eles e nem damos por isso

Provérbios. Não vivemos sem eles e nem damos por isso


Andam de boca em boca desde o início dos tempos, mas nem por isso se fazem velhos. A Tavira, um dos tesouros mais bem escondidos do Algarve, rumam todos os anos mais de 30 estudiosos do tema, naquela que é já reconhecida como ‘a capital mundial dos provérios’. 


Não haverá, seguramente, ninguém que tenha chegado à idade adulta sem aprender pelo menos uma mão-cheia deles. São repetidos incessantemente por pais, avós, tios, professores, amigos e colegas de trabalho. De boca em boca, propagam-se e perpetuam-se no tempo. Falamos de provérbios, que desde há 11 anos têm, uma vez por ano, em Portugal a sua capital mundial: Tavira, um dos tesouros mais bem conservados do Algarve.

Ali, nas margens do rio Gilão, professores universitários, historiadores, investigadores, sociólogos, estudantes ou apenas curiosos pela matéria vindos dos quatro cantos do mundo juntam-se no Colóquio Interdisciplinar sobre Provérbios para falar sobre sabedoria popular. A edição deste ano, por exemplo, decorreu de 5 a 12 do mês passado e contou com a presença de personalidades como Wolfgang Mieder, considerado o maior especialista mundial em provérbios, ou a professora jubilada holandesa Mineke Schipper, que tem editado em Portugal o livro «Nunca cases com uma mulher de pés grandes», no qual apresenta provérbios sobre a condição feminina recolhidos em mais de 150 países.

Rui Soares é o homem que encabeça o projeto. Professor de matemática «aposentado mas não reformado», preside à Associação Internacional de Paremiologia – assim se chama a ciência que estuda os provérbios -, entidade organizadora do evento que teve a sua primeira edição em 2007. Este ano, marcaram presença oradores e assistentes de países tão díspares como Alemanha, Polónia, Japão, Taiwan, Estados Unidos, Albânia, Angola ou China, numa demonstração cabal da relevância e do interesse que o tema gera a nível mundial – ainda que pareça, por vezes, que os provérbios estão a cair em desuso, havendo até quem defenda que com o tempo vão acabar por desaparecer. Rui Soares não acredita nesse cenário apocalíptico: «Se a mensagem permanecer válida, pode até parecer que estão a cair em desuso, mas na verdade acabarão sempre por se adaptar e renovar. Os provérbios são uma representação da vida quotidiana, pelo que haverá sempre essa transmissão e manifestação na oralidade.»

Filipe Neto Lopes, advogado que participou na conferência deste ano e ainda este mês defendeu na Faculdade de Direito de Lisboa uma tese de Mestrado em História do Direito sobre a relação entre o Direito e os provérbios, tem a mesma opinião. «Os provérbios estão em constante renovação. Há uma área específica do estudo dos provérbios, na paremiologia, que é o anti-provérbio, ou improvérbio, nas palavras de Mia Couto. Vê-se muito nas estampagens de t-shirts, nos cafés. Alguns poderão vir a tornar-se provérbios, caso o original caia em desuso. Os provérbios encontram maneira de se renovar. Veja-se o exemplo ‘Deitar cedo e cedo erguer dá um sono de morrer’, que já vai sendo utilizado por algumas crianças, em contraponto com o tradicional com conclusão ‘Dá saúde e faz crescer’».

Os provérbios no Direito

Mas afinal, o que é um provérbio? Quais as suas características e como se originam? «Um provérbio é uma frase curta e conhecida popularmente que contém sabedoria, verdade, moral e uma visão tradicional numa forma metafórica, fixa e memorizável que é transmitida de geração em geração»: esta é a definição dada por Wolfgang Mieder, nascido na Alemanha mas radicado em Vermont, nos Estados Unidos. Rui Soares não tem uma definição precisa e garante mesmo que tal coisa… não existe, tal como Filipe Neto Lopes. «Os provérbios vêm da cultura popular. Há quem diga que são relatos de experiências de vida e sobretudo têm de ser transmitidos pela tradição e transmissão – como nas estafetas. Oiço aqui, oiço ali, oiço acolá e isso dá-me um indício de que pode estar ali um provérbio. Não existe um criador de provérbios. Alguns têm origens conhecidas, nomeadamente na Bíblia (’Olho por olho, dente por dente’, ‘dar pérolas a porcos’, ‘A César o que é de César’). ‘Há tempos de coruja e tempos de falcão’ é atribuído a D. João II; ‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades’ é de Camões. Em relação a como surgem, há um provérbio inglês que diz ‘A inteligência de um, a sabedoria de muitos’. Há outra característica que muitos – não todos – têm: a rima. Uns são curtos, outros mais compridos, mas têm uma forma mais ou menos fixa ou fixável. Um provérbio distingue-se de um adágio ou de outras expressões populares porque tem de ter uma primeira parte, onde vem o público a quem se dirige, e uma segunda parte, consequência da primeira. ‘Quem tudo quer’ é a primeira parte, ‘Tudo perde’ é a consequência. ‘Tintim por tintim’, por exemplo, não tem uma consequência, é uma formulação mais simples – o que não quer dizer que não possa ser relevante: pode, claro. Apenas não deve ser considerado provérbio», explica.

Rui Soares explica que a criação e implementação de um provérbio na sociedade tem, acima de tudo, de respeitar duas máximas: «É preciso ser publicado e espalhado e tem de passar por uma barreira fundamental: a do tempo. Não se constrói um provérbio de hoje para amanhã.»

Amante da ciência, Filipe Neto Lopes decidiu debruçar-se sobre o tema e a sua relação com o Direito – algo ainda completamente por desbravar em Portugal, embora o advogado rebata tal facto… da melhor maneira possível: «Não diria isso, pois não há nada de novo debaixo do sol». Mais a sério, explica o porquê de ter enveredado por este caminho. «A tese é sobre a utilização de provérbios nos tribunais portugueses. Saber de que forma são utilizados os provérbios. São utilizados pelas partes, pelas testemunhas, mas muitas vezes pelos próprios juízes. Não como base das decisões, mas para explicar às pessoas o significado das mesmas em linguagem mais acessível e compreensível. No meio académico há quem entenda que as leis devem vir de cima, devem ser impostas, mas há quem entenda também que se deve ter em conta o respeito pelas vivências próprias de cada comunidade. No início do século XVIII, havia o Código de Napoleão, código civil francês, que estava a ser imposto por toda a Europa. Houve um professor alemão, o Savigny, conhecido por todos os juristas, que achava que não, que devia ser o jusnaturalismo e a cultura de cada povo a ser tida em conta. Por isso incumbiu um aluno de estudar a sabedoria popular: os contos, as adivinhas, os provérbios. Mais tarde, um irmão desse aluno foi também para a Faculdade de Direito e também ele foi estudar a mesma coisa. O professor, nenhum leigo conhece; os alunos eram os irmãos Grimm. Isto é muito importante porque os adeptos do naturalismo consideram que os princípios jurídicos vão para além do que está escrito, ao contrário do positivismo, que diz que só o que está escrito na lei é que deve ser tido em consideração. Alguns anos depois, houve uns senhores que vieram dizer que não tinham cometido nenhuns crimes, pois nada na lei diziam que não podiam fazer aquilo. Foram os nazis. Não havia nada escrito no ordenamento deles, mas havia os princípios gerais. Se uma lei disser que um cigano não é uma pessoa, teoricamente eu posso fazer o que me apetecer porque a lei me permite, mas depois vêm os jusnaturalistas dizer que temos de ter em conta os princípios gerais, que vão para além do que está escrito e que estão inseridos no quotidiano – entre os quais os provérbios. Muitas vezes, para fundamentar as decisões, as partes (leia-se, os advogados) utilizam excertos de casos já julgados e costuma acontecer a citação de provérbios. Não só não os retiram como até voltam a utilizá-los.»

E tal não poderá ser desvalorizado ou considerado ambíguo? «Por vezes, sim. Mas há alguma coisa mais ambígua que a lei? Dois casos iguais, ou praticamente iguais, decididos por dois juízes, um tem uma decisão e outro tem outra! Isto é que é ambíguo!», considera.

Os cabritos que entalaram Sócrates

Um dos casos mais recentes – e mediáticos – onde a utilização de um provérbio deu que falar foi no caso da Operação Marquês, em que o antigo primeiro-ministro José Sócrates esteve em prisão preventiva. «Esse foi o tema da minha intervenção na conferência realizada em Tavira. Na decisão judicial, foi incluído o provérbio ‘Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem’, apontando para indícios de sinais de corrupção. Na área judicial, muitas vezes é mais fácil chegar aos clientes e outras partes com provérbios. O exemplo de José Sócrates também foi nesse sentido, para explicar o raciocínio. Ninguém utiliza provérbios no sentido em que utiliza o artigo 440º do Código Civil. O tribunal considerava, sim, que existiam muitos indícios e que esses indícios eram suficientes para manter o arguido na prisão. O acórdão foi contestado no Tribunal Constitucional, sobretudo por causa da linguagem, por utilizar expressões populares, mas o tribunal não acolheu a opinião dos advogados, dizendo que essas expressões eram meros recursos estilísticos utilizados para explicar a decisão», refere Filipe Neto Lopes.

O gosto pelos provérbios, esse vem de longe. «A professora de português colocava diariamente provérbios no quadro para nos incentivar ao gosto pelos provérbios. São utilizados diariamente, toda a gente os conhece e os utiliza. É muito interessante ver a influência que os provérbios exercem sobre muitos políticos importantes, que até acabam por obter melhores resultados por dessa forma conseguirem chegar mais facilmente ao povo, como Barack Obama, Bernie Sanders ou Martin Luther King. No caso português, Marques Mendes usa provérbios em todas as semanas no seu programa!». Assim, a pergunta impõe-se: vai continuar a utilizar os provérbios na vida profissional? «Não mais do que até aqui, isto é, utilizando sempre no mesmo sentido que os tribunais utilizam: como ajuda para explicar os mecanismos e caminhos legais. Se alguém perder alguma coisa, por exemplo uma caneta, e outra pessoa a encontrar no chão, a lei estabelece que se faz seu o achado, considera que quem encontrou se torna o possuidor. Se eu explicar simplesmente que ‘Achado não é roubado’, toda a gente percebe, não é preciso grande explicação.»

De braço dado com a UNESCO

A AIP-IAP – a sigla para Associação Internacional de Paremiologia – encerra ainda outra curiosidade: é uma das poucas associações portuguesas que se pode gabar de ter uma parceria com a UNESCO, e a única do género a nível mundial. Sediada em Tavira, conseguiu esse reconhecimento fruto do trabalho considerado meritório a nível mundial na luta pela preservação e divulgação dos provérbios. «Foi quase por convite da UNESCO que conseguimos essa distinção. Não há, pelo mundo fora, quem tenha feito um trabalho assim nesta área», garante Rui Soares, que começou, como quase todos nós, a ouvir provérbios em criança, transmitidos por familiares e professores – «Porque é de pequenino que se torce o pepino», ressalva -, e se lançou mais a sério no estudo e divulgação dos provérbios em 2002, quando começou uma recolha que chegou a mais de 5 mil provérbios – acabou por compilá-los em livro. Em 2006, publicou outro livro, agora com provérbios europeus, após uma viagem à Finlândia. Foi, portanto, com naturalidade que surgiu a ideia de criar uma associação que reunisse os amantes desta ciência. «Palavras, leva-as o vento: lá diz o provérbio. Por isso, decidimos passar das palavras à ação».

Todos os anos, mais de 30 pessoas, das mais diversas proveniências, rumam a Tavira para dar uma perspetiva sobre a utilização de provérbios em cada um dos respetivos países. «Curiosamente, com o passar das edições, os próprios participantes acabaram por adaptar um provérbio reconhecido mundialmente como ‘Todos os caminhos vão dar a Roma’. Agora, para eles, ‘Todos os caminhos vão dar a Tavira’, pois é lá que se reúnem anualmente. Este é um exemplo de como um provérbio pode ser renovado e adaptado em função das circunstâncias, das experiências e das vivências de cada pessoa», realça Rui Soares.

A primeira edição, que teve lugar em 2007, contou com uma homenagem a Teófilo Braga, autor de muitos estudos jurídicos na área da sabedoria popular. «Não é por acaso que, ainda hoje, os miúdos na escola leem contos ‘recolhidos por Teófilo Braga’», indica Filipe Neto Lopes, referindo ainda outros benefícios associados à divulgação e transmissão oral de provérbios. «Estudos recentes indicam que a utilização e transmissão de provérbios junto de doentes com Alzheimer ajuda-os a recuperar a memória, a exercitá-la. Os provérbios têm um contributo maior para a vida das pessoas do que elas se apercebem», realça o advogado. E, provavelmente, com razão.