‘Em Portugal depende-se demasiado da água no combate aos fogos’

‘Em Portugal depende-se demasiado da água no combate aos fogos’


Pedro Palheiro pertenceu ao Grupo de Análise e Uso de Fogo (GAUF). Emigrou para a Austrália, onde é responsável pela prevenção e combate aos incêndios em sete parques nacionais da região de Pilbara. Sem planos para regressar, acredita que este é o momento para o país pôr a tónica na prevenção e perceber que a…


Como foi  parar à Austrália?

Quando o GAUF foi criado, em 2007, tinha tido essa oportunidade, mas acabei por não vir para a Austrália para fazer parte das equipas e por concordar completamente com o que estava a ser feito. Parecia-me um projeto muito aliciante e acabou por influenciar a minha decisão de não sair de Portugal nessa altura. Depois, em 2013, quando o grupo cessou as suas funções, retomei os contactos para trabalhar na Austrália. E consegui. Inicialmente, em 2014, estive um ano a trabalhar como sapador no sul de Perth e depois mudámos para o estado do oeste australiano, em 2015, e vim trabalhar para o Parks and Wildlife Service, o departamento que gere a prevenção e o combate aos fogos no estado do oeste australiano.

O que faziam no GAUF?

O grupo trabalhou entre 2007 a 2013, sendo que nos últimos dois/três anos já estava em velocidade mais descendente. As equipas foram constituídas e organizadas pelo eng. António Salgueiro e tinham técnicos florestais especializados na análise e uso de fogo durante todo o ano. Durante o inverno fazíamos fogo controlado, trabalhávamos na prevenção de incêndios com apoio de equipas de sapadores e bombeiros e aproveitávamos esses fogos para dar formação aos sapadores e também porque são uma técnica de limpeza da floresta, para remover a vegetação. 

E durante o verão?

Apoiávamos os comandantes dos bombeiros na análise de incêndios e táticas de supressão.

Competência que os peritos que analisaram o fogo de Pedrógão dizem que atualmente não existe.

Pois, possivelmente. Durante os incêndios, o que fazíamos também era apoiar os bombeiros na aplicação dos contrafogos. Era a nossa especialidade. O contrafogo sempre foi usado como ferramenta de gestão de incêndios florestais, tanto pelos bombeiros como pelos sapadores. A mais valia que nós trazíamos era o apoio técnico que dávamos. 

Perceberam por que se optou por extinguir o GAUF?

Acredito que tenha sido por falta de apoio político. Inicialmente, as equipas tinham seis técnicos florestais e trabalhávamos todo o ano e começaram gradualmente a perder força.

Coincide com o período de crise no país e um início de década que não teve muita área ardida.

Pois e isso faz com que algumas pessoas comecem a questionar se vale a pena continuar com este tipo de equipas.

Houve negligência política na desvalorização desse trabalho?

Não posso caracterizar como negligência política, o que acho é que o trabalho não foi devidamente valorizado. Talvez o sistema não se tivesse apercebido do valor que tinha e sobretudo do valor a longo prazo da prevenção estratégica que nós fazíamos ao nível dos combustíveis com o fogo controlado. Vivemos numa sociedade que se centra no imediato e o trabalho de prevenção de incêndios é algo que tem pensado num horizonte temporal de anos para evitar situações como a deste ano em Portugal.

O que aconteceu ao pessoal das equipas do GAUF?

Eram técnicos altamente especializados e, tanto quanto sei, quase todos acabaram por enveredar por outros caminhos na área florestal, não estão tanto no combate a incêndios. Eu saí porque queria continuar nesta área da gestão de fogo e combate a incêndios e em Portugal essa oportunidade estava a ser cada vez mais reduzida. Aqui, na Austrália, proporcionaram-me condições excelentes para evoluir neste tipo de funções. 

Como viu à distância os fogos deste ano em Portugal, com quase 500 mil hectares de área ardida?

É um valor completamente absurdo. Tendo em conta a dimensão do país, nunca devia acontecer. Mas, falando apenas desta área ardida e não das mortes, acaba por não me surpreender, porque é o resultado do acumular de anos de um sistema baseado apenas no combate a incêndios e em que a prevenção foi residual.

Há tragédias deste dimensão na Austrália?

Não é muito fácil fazer comparações. Temos diferentes tipos de clima no país. O clima mediterrânico, como existe aí em Portugal, é o que temos na região de Perth e eu vivo a uma distância que é quase como de Lisboa a Londres. Mas comparando com uma mesma realidade de clima mediterrâneo, nunca aqui se viu uma área ardida dessa dimensão. O país tem, de uma vez por todas, de decidir uma estratégia de futuro, com continuidade, que assente numa política de prevenção muito sólida e que se mantenha independentemente do partido político que está no Governo.

Que diferenças mais saltam à vista no sistema australiano?

Mais uma vez não podemos comparar diretamente as duas realidades. Mas vamos ao exemplo do departamento onde trabalho: somos responsáveis pela gestão do fogo, prevenção com fogo controlado e combate a incêndios. Ou seja, toda a resposta aos incêndios na área que controlamos é feita por nós.

Portanto, a prevenção e a ativação de meios de combate é decidida no mesmo departamento, o que não acontece em Portugal.

Sim, no fundo seria o equivalente ao Instituto de Conservação da Natureza e Floresta, que no nosso caso abrange todo o estado do oeste australiano. Todos os meios são geridos pelo departamento. Existem bombeiros profissionais da Proteção Civil e existe também um sistema de voluntariado mas que estão responsáveis pelo combate a incêndios na envolvente a cidades e na propriedade privada. Claro que isto é uma realidade diferente: aí a propriedade privada representa 98% do país e aqui não.

Está em cima da mesa em Portugal essa separação de águas no combate a incêndios. Tem sido um problema, como acreditam alguns peritos, o sistema de combate aos incêndios florestais assentar sobretudo no voluntariado?

Acredito que um problema tão complexo como os incêndios e com o potencial para causar mortes tem de ser gerido por profissionais, por pessoas formadas especificamente na área, para que possam tomar as decisões corretas e usar todos os instrumentos disponíveis com eficácia.

Pode dar um exemplo de decisões que fazem a diferença na evolução de um fogo?

O sistema de combate baseado só na supressão que é feito pela Proteção Civil é baseado na maioria dos casos no uso de água e em andar atrás do incêndio. Coloca-se uma viatura em cada zona povoada, o que é correto, porque é preciso proteger as pessoas, mas isso faz com os incêndios fiquem maiores. O incêndio progride, afeta uma povoação e depois outra. Em vez de andarmos em cima do problema, andamos atrás. Aqui o trabalho que fazemos baseia-se na combinação de máquinas de rasto com água, mas a prioridade nos incêndios florestais são os equipamentos. Usam-se meios aéreos, mas as máquinas de rasto são mais usadas para travar o fogo.

Em Portugal dependemos demasiado da água? 

Sem dúvida que se depende demasiado da água.

Mas a água é essencial ou pode ser considerada algo secundário?

O essencial para travar o fogo é termos uma barreira ao solo mineral. Ter uma estrada ou um pequeno aceiro feito com uma máquina que faça com que o fogo ao chegar a essa zona não passe dali. A partir do momento em que deitamos água, continua a haver vários tipos de progressão de fogo, por exemplo os fogos subterrâneos. Deitamos água agora mas, como há matéria orgânica, o incêndio vai progredir na mesma.

Em Portugal há a dificuldade da área florestal ter muitas pequenas povoações.

Precisamente. Trabalhei na região centro 12 anos e conheço bem a realidade. O que quero dizer é que as equipas mais ligadas à proteção civil têm um papel extremamente importante mas tem de passar a haver equipas que se preocupem com o incêndio em si e não estejam preocupadas com as casas. Repare, isto não é uma ideia nova. É o que os técnicos florestais sempre têm defendido.

Por que razão nunca avançou?

Porque nunca saímos do combate para a ideia de que tem de haver um trabalho com fogo durante todo o ano. Isso faz com que haja uma série de técnicas que se perdem e depois sistematicamente as pessoas não as usam e coloca-se a segurança das populações e das equipas em risco.

Tendo trabalhado na região centro, que foi a mais fustigada este ano, tinha perceção deste barril de pólvora a formar-se?

Não vi ao detalhe as áreas afetadas, mas em 2003 e 2005, quando os fogos fizeram 30 mortos e arderam nestas duas épocas cerca de 700 mil hectares, foi também essa zona afetada e uma grande parte desta área penso que voltou agora a arder. É o período de retorno de fogo, são dez a doze anos, 14 anos. A partir daí, sem gestão dos espaços florestais, é o que acontece. 

Podemos esperar dez anos mais calmos ou com as alterações climáticas nem isso é certo?

Não exatamente e o trabalho de prevenção deve começar a ser feito a partir de hoje. Nas áreas adjacentes a esses 500 mil hectares ardidos existem muitas zonas que importa definir como zonas estratégicas de intervenção e onde tem de se assumir que a produção não pode ser o objetivo mas sim gerir zonas que travem a progressão em caso de incêndio.

A discussão em torno do eucalipto tem estado muito polarizada. Cá é uma espécie exótica, aí é uma espécie natural. Faz sentido centrar a discussão nesta espécie?

Estamos a falar de espécies diferentes. O eucalipto que ocorre aqui de forma natural é um eucalipto que é gerido com recurso a fogo controlado. O fogo faz parte da ecologia da planta, precisa do fogo para sobreviver. Mas é curioso que tenho falado com vários técnicos florestais na Austrália, com dezenas de anos de experiência, e ao referirem-se ao eucalipto globulus – que é a tal espécie que é usada em Portugal para a pasta de papel – referem que desde que as áreas estejam bem geridas, as áreas de eucalipto são barreiras à progressão de incêndios.

Essa é uma afirmação de incêndio. Cá quando se fala de barreiras naturais pensa-se nos carvalhos, nos sobreiros…

O problema está na gestão das áreas. São, se estiverem bem geridas. Uma correta gestão das áreas florestais acontece numa pequena parte em Portugal. Na grande maioria não existe, o que faz com que o mato acumulado por baixo torne o eucaliptal uma verdadeira bomba relógio. Começa na acumulação de combustível, que faz com que o incêndio chegue à copa das árvores e passe a ser um fogo de copas, que evolui de forma muito violenta e difícil de controlar. Mas o problema não é a espécie em si, mas a ausência de gestão florestal.

É possível dissociar as coisas quando sabemos que muitos particulares plantam os eucaliptos porque é o que rende ainda assim mais depressa e nem sempre limpam os terrenos?

Pois, esse é outro problema. As pessoas plantam os eucaliptos hoje e só voltam às parcelas quando é hora de tirar rendimentos mas no entretanto estamos a falar de dez a doze anos de acumulação de vegetação.

Na Austrália a população está mais sensibilizada?

As pessoas, tanto aqui como aí, sabem o que é o fogo. Nas povoações mais rurais sempre se usou queimadas. Aqui o fogo também é muito usado para queimar restos agrícolas e as regras são idênticas: é preciso pedir uma autorização e informar as autoridades. Talvez as pessoas aqui sejam um bocado mais disciplinadas e efetivamente comunicam as queimadas que vão fazer. Em Portugal há mais pessoas que fazem e só quando foge ao controlo é que chamam as autoridades.

O engenheiro que vai liderar a estrutura de missão que vai repensar o combate aos fogos falou em pedir ajuda internacional, por exemplo, a peritos na Austrália. Estaria disponível para regressar?

Neste momento o regresso não faz parte dos nossos planos. Temos um filho de três anos e um filho de dez meses que nasceu cá. Estamos muito bem integrados e, à parte disso, tem sido um grande privilégio para mim fazer parte do Parks and Wildlife Service, é uma estrutura de prevenção muito sólida e é nisso que acredito.

Mas gostava que a história tivesse sido diferente?

Como é óbvio, houve todo um investimento que todos nós, técnicos que trabalhámos no GAUF, fizemos durante aqueles anos. Não sou um exemplo especial nesse aspeto. Houve ali um empenho pessoal e profissional para que o projeto avançasse. Ao não avançar, foi uma oportunidade para que procurássemos outros caminhos. A mim permitiu-me conhecer pessoas com muita experiência e tenho tido espaço para dar continuidade a esse trabalho que é feito no departamento há 40 anos.

Que contributo gostava de deixar à discussão em curso em Portugal?

Essa discussão é inevitável dadas as consequências dos incêndios, mas espero que de uma vez por todas se consiga demonstrar que a prevenção é um pilar essencial. Está provado no mundo inteiro que o combate a incêndios sem prevenção é inviável, não pode ter sucesso a longo prazo. Falar de floresta é falar do longo prazo, não  é falar de amanhã.

É uma ilusão pensar que as medidas que estão a ser pensadas agora vão ter efeitos no próximo verão?

Claro que não vão. Isto é como nas casas. Se construir uma casa numa semana, a probabilidade dela cair é maior. Na floresta é igual.

Mas para alguém que acompanhou estas discussões no passado, desconfia-se das intenções? Acabam por esmorecer?

Foi o que aconteceu com os incêndios de há 14 anos, foi o que aconteceu com o GAUF. No fundo, os programas ao começarem a ter sucesso, a existir incêndios que começam a parar nessas áreas estratégicas de gestão de combustíveis que definimos e que por isso se tornam menos problemáticos, algumas pessoas começam a pensar que está tudo bem, a perguntar se vale a pena estarmos a investir tanto no inverno. 

É uma consequência perversa.

Pois: está tudo bem, então vamos parar. É preciso ter noção de que um programa de gestão de combustíveis, até surtir efeito numa escala de paisagem, vai demorar cinco a dez anos. Qualquer política de prevenção que seja pensada tem de ter este horizonte de planeamento. Óbvio que tem de haver metas anuais, mas o plano tem de ser transversal a diferentes governos. Se as alterações climáticas apontam que as condições adversas serão mais frequentes, a prevenção nunca teve tanta importância. Sabemos que incêndios que aconteçam no período crítico à partida serão muito difíceis de controlar. São um alerta para a necessidade urgente que o país tem de implementar uma politica de prevenção.

Trabalha na prevenção do fogo em zonas protegidas. Como vê o desaparecimento da mata de Leiria?

É muito triste. Foi uma coisa que já tinha acontecido no passado. Os serviços florestais fizeram um trabalho que permitiu a sua regeneração, mas a ausência de prevenção a uma escala significativa faz com que, no caso de incêndios extremos, a mata arda toda.

O que fazem em termos de prevenção nos vossos espaços?

Temos o tal programa de fogo controlado, com ignição aérea.

Aérea?

No fundo são cápsulas largadas de um helicóptero que iniciam pequenos focos no chão. É utilizado em várias partes do mundo para gestão de combustíveis.

Cá também podia ser ou não temos dimensão?

Acho que existe território mas numa fase inicial, se calhar, mais vale começar pela base e também por sensibilizar as pessoas para que o aceitem.

Mas imagina um fogo assim numa das suas áreas? 

Evidente que não, até pelo valor que têm e que é completamente reconhecido. No fundo, o departamento gere os parques naturais e tem uma séria de preocupações: existem equipas de investigação, de conservação da fauna e flora, de gestão dos parques marinhos, de gestão dos visitantes e turismo e depois a vertente dos incêndios. Sabemos que o fogo tem de existir, mas não podemos deixá-lo tomar proporções que comprometam tudo o resto.

Aí ainda têm um período critico de fogos ou já não existe essa rigidez de calendário, como criticam cá os peritos?

Ainda existe essa rigidez, muito por motivos políticos, mas, por exemplo, o nosso departamento pode fazer fogo no período crítico se isso for necessário. Há áreas do país onde só no período crítico é que se pode gerir combustível, se não estão muito húmidas. Mas isso do período crítico é algo que há cada vez mais pessoas a questionar. 

Por que fala de motivos políticos? Porque implicaria gastar mais dinheiro todo o ano?

Pois, mas este ano talvez tenha sido um muito mau exemplo. Tiveram incêndios na primavera e agora ainda não tiveram precipitação em condições e o risco mantém-se alto. Em 2008, salvo erro, chegámos a novembro e tínhamos metade do norte a arder. Só mostra que estarmos fixados em períodos rígidos, sem capacidade de adaptação à meteorologia, talvez não seja a melhor forma de encarar o problema dos incêndios.