Maria Conceição. Não é a super mulher, mas quase

Maria Conceição. Não é a super mulher, mas quase


Maria deixou de ser hospedeira quando, há 12 anos, fez escala no Bangladesh. Perceber o nível de pobreza das 600 crianças que viviam na favela que visitou fez com que levasse o corpo ao limite para angariar o suficiente para as ver terminar o 12º ano. Depois de seis ironmans feitos quase de seguida, planeia…


Acabou de concluir um périplo de seis ironmans em seis continentes diferentes em 56 dias. Para quem tem dúvidas sobre o que este triatlo engloba, deixamos os números: 3,86 quilómetros de natação, 180,25 quilómetros de ciclismo e uma maratona (42,2 quilómetros), feitos consecutivamente e em menos de 17 horas. Antes disso, já correu cinco maratonas em cinco dias em cinco estados norte-americanos, correu sete maratonas em sete dias em sete continentes, já subiu o Kilimanjaro, o Everest e só não atravessou o Canal da Mancha porque as correntes fortes a traíram depois de sete horas a nadar. Ficou cansado só de ler? É normal, a Maria Conceição de antigamente também ficaria. Afinal, há 12 anos, o seu único desporto era andar para lá e para cá nos corredores dos aviões da Emirates a perguntar «chicken or beef?». 

Mesmo que a profissão de hospedeira tenha ficado para trás, foi exatamente numa escala entre as muitas viagens que fez em trabalho que a sua vida mudou para poder mudar também a de mais 600 crianças. «Aquilo com que me deparei não deixa ninguém indiferente», garante ao BI, à margem das Conferências do Estoril, nas quais participou como oradora. Eram 111 famílias a viver numa pobreza extrema e onde as hipóteses de uma criança terminar o 12º ano estavam próximas do zero.

Nesse mesmo dia, ainda no avião, ouvia, já com dificuldade, as queixas das colegas sobre a almofada pouco confortável do hotel ou a falta de qualidade do pequeno-almoço. «Comecei a sentir uma coisa cá dentro que não sei explicar», conta. Mas o click deu-se à noite, quando pegou no pote de gelado que habitualmente acompanhava a jornada de filmes no sofá. «Comecei a fazer contas e percebi que os 22 dirams que aquele gelado me tinha custado dava para comprar 22 quilos de arroz no Balngladesh». E pronto, nunca mais a Maria voltou a ser a mesma.

 

De hospedeira a atleta

Maria diz ao BI que ainda hoje o médico que a acompanha considera «paranormal» algumas das coisas que faz com o corpo. «Eu nem sequer pareço uma atleta», admite. Mas a verdade é que, aos 40 anos, já conseguiu mais que muitos que têm o desporto nos genes. Entre maratonas, subidas a montanhas inalcançáveis, horas e horas em águas frias, Maria não parece ter limites, até porque é com a divulgação desses desafios a que se propõe que angaria fundos para ajudar as crianças. «Eu sabia que mandar emails a pedir dinheiro era sinónimo de spam. Pesquisei muito e percebi que o desporto é a melhor forma de entrar em casa das pessoas sem ser convidada», refere. Mesmo assim, essa invasão tem sido lenta e difícil de concretizar. «Só para ter uma noção de como este hábito é comum em Inglaterra, Tedd Jackson, que se dedica a ajudar crianças com Esclerose Múltipla, ainda não tinha feito as sete maratonas que eu fiz e já tinha angariado 777 mil libras. Eu fiz seis ironmans e não passei dos 5 mil», lamenta. E é por isso que, mesmo esgotada fisicamente, a cabeça já trabalha no próximo desafio. Afinal, Maria só descansa quando vir estas 600 crianças com os estudos completos. «Já só faltam 127», lembra Maria, o que monetariamente se converte em 479 mil dólares. «Quando chegar a esse objetivo posso finalmente descansar».

 

Levar o corpo ao limite

Apesar de recorrer à palavra «descanso», já há muito tempo que não o pratica. Começa por traçar o objetivo e escolher a data de concretização, para depois dar início a um plano de treinos que, nos últimos tempos, quando preparava os ironmans, a obrigavam a acordar todos os dias às quatro da manhã para alternar entre corrida, bicicleta e natação. Antes de tudo isso, foi obrigada a voltar ao básico. «Eu não sabia nadar nem nadar de bicicleta. Tive que aprender tudo do zero», confessa. E não só aprendeu como reuniu condições para se candidatar à travessia do Canal da Mancha, o que implica provar que se aguenta seis horas em águas com temperaturas abaixo de 15 graus. Apesar de, na hora H ter, cedido à força das correntes, não cede ao cansaço. «Talvez volte a tentar. Quero fazer algo impactante para que, de uma vez por todas, as pessoas acordem para esta realidade».

Não admira que, com esta força de vontade, escolha a «resiliência» como o seu superpoder e garanta que não esta característica não surge como obra do acaso. «Eu sou a junção de uma série de mulheres fortes com as quais cresci», conta.

Maria Conceição tinha apenas dois anos quando a mãe adoeceu. Uma imigrante africana, que trabalhava nas limpeza para criar os seis filhos, concordou em criá-la até que a mãe melhorasse, o que nunca chegou a acontecer. «Prometeu à minha mãe que tomava conta de mim e, antes de morrer, fez com que as filhas continuassem a cumprir essa promessa. Perante isto, como é que eu ia deixar de cumprir a promessa que fiz a estas crianças?». A pergunta é retórica e a resposta está na fundação Maria Cristina – nome da mãe adotiva – criada para que Maria dê a conhecer o que faz falta a estas crianças, se lance em desafios e espere pela solidariedade das pessoas. «Vou levar isto até ao fim», garante.