Legado de Obama. O prejuízo do otimismo

Legado de Obama. O prejuízo do otimismo


Ainda é demasiado cedo para julgar o legado de Barack Obama. Porém, para um dos presidentes mais consequentes na história americana, a sua herança é demasiado frágil. E a sua marca no mundo, ambígua.


Barack Obama começa a sua presidência mais mito do que homem: o primeiro presidente afro-americano num país concebido em escravatura, o político imaculado, o filho de um queniano e de uma americana que transporta consigo a enganadora promessa da era pós-racial e de um mundo fundamentalmente humanista. Nasce no Havai – o que para ele é indispensável, como conta anos mais tarde –, onde as feridas raciais americanas não estão a descoberto como noutras partes no país e onde pode crescer sem o fardo da desconfiança do homem branco. Os seus avós garantem-no, os seus anos na Indonésia reforçam-no, e o homem que há mais de dez anos discursa na convenção democrata para defender a candidatura de John Kerry fá-lo com um otimismo honesto e não decorativo. O seu discurso tem intenção onde os de outros têm cálculo. Os seus adversários desvendam a diferença, mas não o conseguem imitar. Os seus aliados, tão-pouco. “Não existe uma América negra e uma América branca, uma América latina ou uma América asiática;_existem os Estados Unidos da América”, lançou em 2004. “Vão até aos bairros do interior e as pessoas vão dizer-vos que o governo sozinho não consegue ensinar os seus filhos a ler. Eles sabem que os pais têm de ensinar, que as crianças não vão ter sucesso na vida a não ser que elevemos as suas expectativas e desliguemos os seus televisores e erradiquemos a calúnia que diz que um jovem negro com um livro está a fingir-se branco”, afirma. “No final de tudo, é disto que esta eleição se trata. Participamos nas políticas do cinismo ou participamos nas políticas da esperança?”

Doze anos depois, Obama preserva o mesmo otimismo que nas suas campanhas ficou estampado em cartazes, na promessa de que, “sim, conseguimos”. O presidente americano que hoje deixa de o ser promete, em privado como em público – a acreditar na sua palavra –, que está hoje tão confiante como há três meses no que diz respeito à ideia de que o país progride, a democracia americana é robusta e o volumoso legado de reformas que construiu ao longo de oito anos de uma das presidências mais consequentes das últimas décadas está vivo e de boa saúde, quase ignorando que o seu sucessor e a montanha de congressistas republicanos que tem às suas costas prometem diariamente demoli-lo num ápice. Se Donald Trump perturba Barack Obama – ou o preocupa a ideia de que a eleição daquele foi possível apesar dos tons racistas, xenófobos e misóginos da sua campanha –, o presidente americano não o deixa vislumbrar. Promete defender os seus valores mais centrais, não se resguardando na reforma passiva dos presidentes mais velhos, mas advoga com mais fervor ainda a sua própria interpretação do excecionalismo americano: a de que os Estados Unidos são um país profundamente imperfeito, sim, mas também indispensável no mundo, com quem caminha numa irreversível marcha de progresso, leve isso o tempo que levar. Ou, como Obama afirmou no seu discurso de despedida, em Chicago, há apenas alguns dias: “O labor da democracia foi sempre árduo. Foi sempre disputado. Por vezes, foi sangrento. Por cada dois passos em diante, parecemos muitas vezes dar um para trás. Mas o longo arco do que é a América define-se por um movimento para a frente, por uma constante abertura dos nossos princípios fundadores, para que abracem todos e não apenas alguns.”

Castelo de cartas?

A presidência de Obama foi indisputavelmente transformadora, como ele próprio a concebeu desde o início. Caem-lhe nas mãos os trapos em que George W. Bush e a implosão do mercado especulativo deixam a economia americana, sangrando diariamente milhares de empregos, enquanto, do outro lado do Atlântico, a Europa se desmorona a passo rápido. O mercado imobiliário está destruído e o mesmo está para acontecer à indústria automóvel.
O défice orçamental bate quase nos 10% do_PIB e o desemprego anda pela mesma casa. Tudo se agrava antes de ficar melhor, mas há poucas dúvidas de que é isso que acontece. Obama tira proveito de um congresso de maioria democrata – o seu pacote de estímulo económico é aprovado sem um único voto republicano – e lança um gigantesco programa de investimento no valor de 831 mil milhões de dólares que injeta nos transportes, infraestruturas e outras áreas públicas.
A economia titubeia nos primeiros quatro anos, mas aguenta-se e, mais tarde, desperta. Obama despede-se de Washington com o défice reduzido para menos de um terço do que recebeu, nos 2,8% do PIB; o desemprego cai para metade do que era, para a ordem dos 5%. Muitos dos empregos são precários e a desigualdade cresce nos oito anos em que é presidente. Os dividendos aparecem agora.

À parte a economia, Barack Obama avança rapidamente para a sua grande política de bandeira:_uma reforma do sistema de saúde americano que lhe ganha o nome e fica conhecida como Obamacare. Não é o modelo de sistema público de segurança social que existe nas outras economias avançadas e que Obama deseja, mas altera profundamente a forma como a saúde é encarada nos Estados Unidos. As seguradoras já não podem recusar cobertura com base em doenças passadas; começam a existir planos de saúde subsidiados; pelo meio, o processo estagna, torna-se burocrático e complexo; mas, contas feitas, há hoje mais de 20 milhões de americanos com seguros de saúde graças ao Obamacare. Apesar de os seus defeitos, o programa tem muita popularidade e pode ser mais difícil do que os republicanos pensam anulá-lo por completo, principalmente não tendo um plano alternativo. Algo semelhante pode acontecer com as grandes medidas ambientais que a administração aprovou com maior subtileza e que criaram um novo mercado pelas energias renováveis. A cidadania para milhões de filhos de imigrantes nascidos nos Estados Unidos é irrevogável e o mesmo acontece com o casamento para pessoas do mesmo sexo. O resto, porém, pode descambar ainda como um pesado castelo de cartas, culpa do otimismo de Obama, que deixou para um seu sucessor as pontas soltas das suas reformas e não investiu numa plataforma política democrata que assegure a sobrevivência do seu legado. Trump tentará destruí-lo e os seus aliados republicanos também, mesmo que os mais otimistas garantam que o progresso social é mais duradouro do que parece.

Retraimento mundial

A herança de Obama pode tombar em casa. No exterior, por outro lado, os seus perigos são outros. A palavra de ordem para a sua política externa nasce dos anos intervencionistas de Bush e das duas guerras destruidoras e impossíveis de vencer que Obama herda – uma vez mais. “Não fazer merdas estúpidas”, repete o presidente americano em privado. Defende-o também publicamente, mas por outras palavras. Como resume a “National Review”:_“A América, disse, seria protegida, próspera e livre, não por travar guerras intermináveis, mas saindo delas. Bateria os seus adversários não confrontando-os, mas estendendo-lhes a mão do diálogo. Venceria o terrorismo não moldando as sociedades em que o terrorismo vinga, mas aumentando os esforços americanos para os atacar os militantes diretamente.” Obama chegou a presidente querendo fazer mais com menos. Mas isso trouxe-lhe duas críticas contraditórias mas persistentes. A primeira acusa-o de ter interferido em demasia, incentivando uma mudança de regime na Ucrânia e invadindo a esfera de influência russa; financiando e, acima de tudo, defendendo os méritos democráticos das incipientes revoluções árabes, provocando revoluções sangrentas como as da Síria e, com bombas americanas e europeias, da Líbia. Mas a crítica oposta também existe e é mais comum no mundo ocidental. Obama, dizem os seus opositores, fez coisas a menos, como abandonar o poder americano no Médio Oriente, abrindo vazios de poder que hoje são ocupados pelos governos russo e iraniano; não foi suficientemente agressivo com as operações chinesas no mar da China Meridional; e deixou degradarem-se alianças importantes, como a israelita e a saudita. Retirou precipitadamente as suas tropas do Iraque e abriu caminho à ascensão do grupo Estado Islâmico e à mais importante ameaça terrorista de hoje. Acima de tudo, não interveio na Síria, ou fê-lo ambiguamente, tardiamente e em doses demasiado pequenas, permitindo que Bashar al-Assad e os seus aliados contribuíssem para a morte de qualquer coisa como 400 mil pessoas. Obama prometeu bombardear o regime sírio caso este usasse armas químicas contra a sua própria população. Quando isso aconteceu, a linha desenhada na areia foi espezinhada e o presidente americano contentou-se com a eliminação do arsenal químico de Assad – algo duvidoso. O ditador sírio está hoje por cima no conflito e parece seguro no seu lugar. O poder americano, argumenta-se, está enfraquecido.

Obama e a sua administração defendem-se dizendo que os rebeldes sírios não eram relevantes ao ponto de fazer diferença o envio de armas e que o país não estava preparado para uma nova guerra no Médio Oriente depois do Iraque e do Afeganistão – onde os talibâs estão hoje mais fortes do que em qualquer momento depois da invasão americana. O presidente americano argumenta também que o seu plano inicial foi a viragem para o Pacífico e que só não o fez por influência do Médio Oriente e pelo facto de os seus aliados não terem ocupado os espaços que o seu governo deixou – de novo, presa do seu otimismo. Os mesmos críticos conservadores que se queixaram do retraimento de Obama, porém, têm agora pela frente o presidente que promete o mais profundo isolamento desde o fim da Guerra Fria.