LX80. E o sonho fez-se consumo

LX80. E o sonho fez-se consumo


Nos anos 80, Lisboa era a cidade onde tudo parecia possível mas onde tudo estava por fazer. O terceiro volume da série em que Joana Stichini Vilela conta, com Pedro Fernandes, a história de Lisboa a partir da década de 1960 chega amanhã às livrarias.


As Amoreiras continuam no sítio, como continuam a Migacho e Loja das Meias que inauguraram com a abertura do centro comercial, em setembro de 1985. Edifício que condensa o espírito de uma época como provavelmente nenhum outro. O consumo, o poder, a materialização da felicidade e do progresso que se alcançavam a cada dia, tudo em três torres para as quais a palavra polémica não será suficiente. Basta dizer que as assinou Tomás Taveira, também ele incontornável, pelo mamarracho “piroso e arrivista”, “a parolice do kitsch com arquinhos” mas não só (e já lá vamos), que na altura, dizendo não querer comparar-se, se comparava a Miguel Ângelo em Roma, “cidade que se adaptou ao génio do artista”. Assim achava Taveira que devia ser.

Pode ser nas Amoreiras então esta conversa com a autora Joana Stichini Vilela, que bem podia ter sido no Frágil (com Cabrita Reis, Rosa Carvalho e Manuela Gonçalves numa das festas deste “catalisador de uma transformação cultural, boémia e artística e que é quase o sítio onde nasceu uma revolução urbana comandada pelo Manuel Reis”) se ele existisse sem ser na capa de “LX80 – Lisboa Entra Numa Nova Era”, terceiro volume da série que a jornalista começou em 2012 com “LX60 – A Vida em Lisboa Nunca Mais Foi a Mesma” e terminará por aqui. Lugar que 30 anos depois e quando já todos nos fartámos de subir e descer escadas rolantes continua surpreendentemente ruidoso, mesmo numa tarde de dia de semana, e que é ponto de partida para várias das histórias que se contam nesta cápsula do tempo que nos leva à Lisboa da década de 1980.

“Os anos 60 eram mais idealistas, nos anos 70 temos um lado mais de ação e de política e nos anos 80 [a vontade de] materializar isso. E isto tem muito a ver com o dinheiro. Nos anos 80, Portugal era um país ainda muito em crise, muito a tentar recuperar, a tentar ganhar pé. Em 83 veio o FMI ainda, a morte do Sá Carneiro foi em 1980, estava tudo muito instável. E, aos poucos, a sensação que dá é que a década é uma rampa ascendente em termos de conforto material, em termos de estabilidade. Depois entramos para a CEE e há quase uma década antes e uma década depois, porque veio o dinheiro”, resume Joana Stichini Vilela, que para este livro, à semelhança dos anteriores, partiu dos jornais e das revistas da época e de livros, e fez uma série de entrevistas a “uma série de personagens que foram grandes protagonistas dos anos 80”. A figuras como Otelo Saraiva de Carvalho, Paulo Portas ou Pedro Caldeira, corretor ícone “do sucesso, do boom da bolsa, do dinheiro”, personagem “muito simbólica porque de facto encarnou o momento do país”.

Não a Tomás Taveira, o arquiteto desaparecido depois do escândalo sexual que terá sido o maior que este país já viu e cujas repercussões se prolongaram pela década seguinte e que “LX80” nos apresenta numa banda desenhada assinada por João Maio Pinto e que é a maneira certa para se contar a história do anti-herói de uma época: “A 2 de outubro de 1989 rebenta em Lisboa o escândalo-sensação da década: sexo, mentiras, vídeo – e toneladas de papel vendido. O protagonista é Tomás Taveira, ‘architecte-terrible’ da capital”, lê-se no princípio de “Tomás Taveira, o Arquiteto Hard-
-Cor”, que continua: “Já o elenco involuntário são as variadíssimas ‘partenaires’ do videógrafo, filmadas à sorrelfa numa das torres das Amoreiras… Sempre no mesmo escritório… Sempre no mesmo cadeirão.” O resto são cassetes e uma primeira pessoa do arquiteto montada com citações das muitas entrevistas que dava. Antes do escândalo, pois claro.

Bigodes, Cicciolina e elefantes. “Quem é responsável? Alguma coisa deve passar pela cabeça do portuga que decide deixar crescer o bigodinho… Serão as mulheres? Creio que não. As mulheres devem gostar tanto da sensação de encostar os lábios a um bigode como nós, se fôssemos guardas-florestais na barragem de Tomar, de praticar sexo oral com um castor”, escrevia Miguel Esteves Cardoso em “Explicações de Português”, e talvez por isso não tivesse ele um – bigode claro, como António Sala, João César Monteiro, Chalana, Rui Veloso ou Guterres. MEC só mesmo papillon ao lado de Paulo Portas, na fotografia que recorda a fundação d’ “O Independente”, em 1988.

Pouco depois de Cicciolina, esse “caso tremendo que abalou o parlamento” com Ilona Staller abraçada a Natália Correia e o Rocky num poster de hipermercado, porque eles também vieram daqui. Os anos 80 foram a década dos Kispos e do lima-limão, mais a “Lambada”, o Vitinho que era para ser o boneco da Milupa e se transformou na “hora da caminha” de toda uma geração, a Rua Sésamo e as roupas da Cenoura, mas também dos bairros de lata que eram 98, dos quais 18 sem luz.

Ao mesmo tempo que apareciam os yuppies, sobretudo liberais e elitistas, o mais possível, com o squash, a Benetton e os Ray-Ban Wayfarer, mais o Filofax, o Porsche 930, a cocaína “essencial para quem quer ganhar dinheiro todo o dia e gastá-lo toda a noite”, no Banana Power, de preferência. E não esquecer o tijolo que já por essa época aí andava, a dar pelo nome de telemóvel – é verdade que não foi coisa dos anos 90 afinal, os primeiros apareceram em 1989, com preços que variavam entre os 600 e os mil contos (entre três e cinco mil euros) e que por isso não espanta que fossem objetos para ser possuídos por pouco mais de 2 mil pessoas.

A década em que apareceu o rock português e de “Kilas, o Mau da Fita” foi a mesma em que a taxa de analfabetismo era de 18,6%, em que as mulheres tinham o primeiro filho aos 23 anos e as licenças de maternidade duravam apenas três meses. O salário mínimo era de sete contos e meio, trocado para a moeda atual, que o exercício já se exige inverso, pouco mais de 37 euros. Era também o tempo em que umas legislativas mobilizavam 85% dos eleitores para as urnas.

Também o tempo em que nos foi dado (ou se nos deu) Cavaco. E aqui importa citar: Cavaco, substantivo masculino; cavaquista, adjetivo; cavaquistão, substantivo bem mais concreto que significa “372 dias como ministro das Finanças e do Plano, 157 dias como líder da oposição, 3643 dias como primeiro-ministro, 3653 dias como Presidente da República”. Tudo somado, dá um total de 7825 dias, do “não político mais político do país recente” que não era mais bolos, era mais Citroën ( e uma curiosa rodagem à Figueira da Foz).

Episódio que ficou tão para a história como as campanhas loucas de que este foi o tempo também, de Soares que era “fixe” e Freitas que levava elefantes para a rua. Pois. Tão verosímil como um candidato à câmara de Lisboa a dar um mergulho no Tejo. Ainda bem que, ao contrário da ficção, a realidade não precisa de ser credível para fazer sentido.